terça-feira, 12 de outubro de 2021

Congresso Internacional do Bicentenário da Revolução de 1820

 

Está a decorrer, de 11 a 13 de outubro na Assembleia da República e na Fundação Calouste Gulbenkian, depois de ter sido adiado de 2020 para 2021 por causa da pandemia, mas que não podia deixar de se realizar sob pena de se subvalorizar um significativo movimento da História Contemporânea que acabou por institucionalizar o fim do absolutismo régio.

Na verdade, o bicentenário da Revolução de 1820 constitui uma oportunidade e um desafio para revisitar e melhor compreender um período crucial da história contemporânea portuguesa. E o congresso internacional que assinala este acontecimento procurar apontar as grandes linhas de interpretação que integram o amplo legado historiográfico existente e estimular a apresentação de novas abordagens e perspetivas de análise.

Segundo os organizadores, a Revolução de 1820, que se constitui em acontecimento fundador do liberalismo em Portugal e no Brasil, insere-se num amplo movimento que, percorrendo a Europa do Sul, abrangeu os dois impérios latino-americanos do Atlântico. Todos os casos tiveram como epicentro constituições políticas, inspiradas no modelo espanhol da Constituição de Cádis de 1812. A Nação, enquanto fundamento político do poder constituinte das Cortes, está na base do conceito de soberania nacional que carateriza a primeira Constituição Portuguesa de 1822, tendo a independência nacional sido um objetivo inscrito nos propósitos da Revolução de 1820, como sucedeu noutros países meridionais. A pari, a simultânea eclosão do movimento pela independência nas colónias da América Latina revelaria de forma conflitual a natureza imperialista do liberalismo ibérico. Este movimento liberal na Europa do Sul ocorreu em contraciclo com a situação política da Europa do Centro e do Norte, nomeadamente a França e a Inglaterra, inseridas na Santa Aliança, constituída para garantir a estabilidade política na Europa pós-napoleónica. Foi neste enquadramento internacional desfavorável que se inseriu o complexo processo da independência das colónias sul-americanas. E o programa do Congresso promove a reflexão aprofundada sobre esta perspetiva geopolítica do movimento revolucionário.

Uma caraterística do movimento revolucionário foi a prudência formal. Ao termo “revolução” preferiu-se, não raro, a palavra “regeneração”, que sugeria moderação. Com efeito, o espectro da violência da Revolução Francesa pairava sobre ambos os lados, os que desejavam uma mudança e os que defendiam a conservação do status quo. A vontade de moderação e o receio de desencadear conflitos foram visíveis na atividade das Cortes de 1821-22. Não obstante, a proclamação das Bases da Constituição e dos direitos de cidadania constituía um profundo abalo na sociedade coeva. O conceito de cidadania era revolucionário em si e representava uma profunda inovação na relação entre o indivíduo e o Estado, pondo em questão a sociedade de ordens e corporativa. E uma constituição a definir os poderes constituía uma rutura com a conceção pré-existente de poder real, como o entenderam os inimigos do novo regime. Por conseguinte, revolução e contrarrevolução constituem as duas faces da época e entrelaçam os eixos temáticos que estruturam o programa do Congresso em curso.

Diferentes gerações de ensaístas e historiadores têm-se debruçado sobre a Revolução de 1820. Apesar da considerável bibliografia existente sobre o acontecimento e a época, a comemoração do bicentenário constitui um desafio para a sua revisitação à luz da historiografia atual, bem como um estímulo à apresentação de novas abordagens e perspetivas de análise. Por isso, além da vastidão e pertinência dos temas do programa, os organizadores fizeram saber que, no final, haverá uma mesa-redonda sobre o tema O antigo regime em questão: continuidades e mudança, que contará com a participação de Guilherme d’Oliveira Martins, Gabriel Paquette e Miriam Halpern Pereira. Porém, atempadamente foi divulgada a lista os painéis temáticos, que se discriminam: As revoluções na América d Sul; As revoluções na Europa do Sul; Cortes e constituição; Cultura e redes políticas de exílio; Economia e finanças públicas; Educação, cultura e ciência; Estado e poderes periféricos; Estado, Igreja e religião; Ideologias e correntes de pensamento político; Indivíduos, grupos e movimentos sociais; Linguagem, representações e opinião pública; Nação e Império; e Processo político e contrarrevolução.

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O Presidente da Assembleia da República, falando na sessão solene de abertura a que presidiu, salientou ser seu “dever” e “responsabilidade” abordar “os acontecimentos, as figuras e, mais que tudo, os valores e princípios que representa a tradição liberal e constitucionalista aos quais se deve a existência do Parlamento tal como o conhecemos”. E sustentou que a revolução de 1820, apesar da sua “curta duração”, teve uma “enorme repercussão” histórica, sendo a tradição liberal e constitucionalista responsável pela existência do Parlamento”.

De facto, como vincou, “a fragilidade e a incerteza da revolução de 1820 e a sua própria curta duração contrastam com a enorme repercussão que veio a ter na história, mesmo para além das fronteiras nacionais, ecos que chegaram à Rússia e à Índia como hoje podemos aferir”.

Segundo Ferro Rodrigues, o Congresso irá procurar “aprofundar as grandes linhas de interpretação que integram o amplo legado historiográfico” da revolução liberal de 1820, contando para tal com “um leque de apresentações e de oradores de excelência, nacionais e de além-fronteiras”. Por isso, durante três dias, as intervenções irão centrar-se “nas temáticas do desenvolvimento económico, das mudanças políticas e das transformações sociais que antecederam a revolução de 1820 e todas aquelas que lhe sucederam e que estão na base da formação do Portugal contemporâneo”.

Salientando que o grande objetivo do evento é o de “conhecer melhor” o legado da revolução liberal e “perceber o porquê da sua atualidade 200 anos depois”, Ferro Rodrigues destacou que o Congresso se enquadra no programa das comemorações do bicentenário do Constitucionalismo português, que começaram em 2017 e que terminarão em 2026 com a celebração dos 50 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, tendo como lema “Celebrar a liberdade, 200 anos de Constitucionalismo”. E defendeu que as comemorações em questão – que já contaram, entre outras iniciativas, com exposições dedicadas aos 150 anos da abolição da pena de morte e da escravatura – foram organizadas pela Assembleia da República com o objetivo de “contribuir para a divulgação pública da atualidade dos ideais liberais, republicanos e democráticos”.

Ferro Rodrigues, endereçando uma palavra ao professor Guilherme de Oliveira Martins, que presidiu às comemorações do Bicentenário do Constitucionalismo e, no passado dia 7, foi eleito pela Academia Brasileira de Letras como um dos quatro novos Sócios Correspondentes, agradeceu-lhe o “apoio, generosidade e empenho amigo” nas celebrações e afirmou:

Estou certo [que], tal como o seu antecessor, o saudoso professor Eduardo Lourenço, saberá honrar as cores nacionais e a cultura portuguesa de que é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores referências”.

O Congresso, que arrancou neste dia 11, na Assembleia da República, prosseguirá nos dias 12 e 13 na Fundação Calouste Gulbenkian, com historiadores nacionais e estrangeiros a debaterem a Revolução Liberal de 1820, considerada pela presidente da comissão organizadora, Miriam Halpern Pereira, como constituindo o “nascimento do regime liberal em Portugal”.

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Por seu turno, o Presidente da República avisou que algum “passado se pode repetir”, pelo que a democracia e a liberdade devem ser construídas permanentemente com “resultados efetivos” na vida das pessoas. E considerou:

Recordar hoje 1820 e a sua revolução é explicar o que ela representou de rutura essencial na História de Portugal. É explicar também o que foram as vicissitudes vividas entre 1820 e 1974. É, ao fim e ao cabo, e isto é o mais importante para o presente, fazer entrar na memória e na consciência dos portugueses o que esmagadoramente ignoravam ou ignoram.”.

Em seguida, a propósito deste acontecimento histórico, o Chefe de Estado defendeu que é preciso “não dar nunca como conquistadas a democracia e a liberdade, não dar nunca como garantido o que precisa de ser construído todos os dias, em palavras e em obras”. E acrescentou:

“Em obras, demonstrando que em liberdade e em democracia os direitos são mesmo direitos e não promessas, o controlo dos poderes os controla mesmo, e não há privilegiados que tudo ou quase tudo tenham e explorados que nada ou quase nada possuam”.

Na sua intervenção, Rebelo de Sousa enquadrou a Revolução Liberal de 1820 como uma “rutura decisiva” na ordem político-constitucional portuguesa, mas em relação à qual existe “algum descaso, para não dizer quase apagamento na visão de muitos, talvez a maioria” dos cidadãos.

Isso talvez se explique pelo caminho “longuíssimo e cheio de adversidades” que se seguiu até ao 25 de Abril de 1974 – disse o Presidente da República, que referiu:

Tudo medido, temos escassos anos de liberalismo mais avançado, mais ambicioso e mais transformador. Umas cerca de sete décadas de tensão constante entre esse liberalismo e o regime dominante, moderador ou limitador dos seus propósitos – seis em monarquia e pouco mais de uma em República. Uma meia dúzia de anos de guerra civil, meio século de ditaduras (…). Uma saga para a liberdade e para as liberdades.”.

De acordo com o Chefe de Estado, em todo este percurso uma parte considerável do país “nunca aderiu na fundamentação ao sentido político-constitucional, para não dizer também económico-social” da Revolução Liberal:

Era o mesmo país, com expressões jurídico-constitucionais diferentes, mas sempre antiliberal, antiparlamentar, antipartidário e antidemocrático, na qualificação do próprio António de Oliveira Salazar”.

Marcelo realçou que, em 1820, Portugal “era uma sociedade maioritariamente rural, e esse país rural, e com ele a Igreja Católica e, claro, os influentes locais, eram absolutistas e antiliberais” e que esse “país rural depois viveria como que na clandestinidade, no sentido de marginal ao constitucionalismo vigente, mas longe, muito longe de se encontrar morto: reviveria no apoio ao franquismo, ao sidonismo e ao salazarismo”. Referiu que, “mesmo nos anos 20 ou 30 a 60 do século passado, os monárquicos ativos e militantes mais depressa eram legitimistas ou integralistas do que liberais”. Frisou que, “em rigor, para a generalidade dos portugueses, a liberdade apareceu irmanada com a democracia em 1974”, no culminar de uma saga com “intermitências ou vivências circunscritas para minorias urbanas letradas ou económica e socialmente mais avançadas”. E reforçou:

Para o Portugal contemporâneo pós-1974, a memória pela liberdade começou na luta do 25 de Abril e concretizou-se com o 25 de Abril. Para alguns, pouco numerosos e menos jovens, mas com uma memória que importa não minimizar, no 5 de Outubro. De facto, não na Revolução de 1820.”.

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Que o Congresso ajude a avivar a memória histórica e a perceber a raiz da liberdade política com os direitos e garantias que exornam a cidadania.

2021.10.11 – Louro de Carvalho

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