A 17 de outubro deste ano de
2021, “Dia Internacional da Erradicação
da Pobreza” e em que se assinalam os 25 anos da criação do rendimento
mínimo garantido, hoje rendimento social de inserção, foi apresentado, na sala de extrações da Misericórdia de Lisboa (instituição
de que Bruto da Costa foi provedor), em edição póstuma da Cáritas Portuguesa,
o livro “Que Fizeste do Teu Irmão? – Um olhar de fé
sobre a pobreza no mundo”, de
Alfredo Bruto da Costa, Ministro dos Assuntos Sociais do V Governo
Constitucional, liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo, e que foi, juntamente
com Manuela Silva, pioneiro nos estudos sobre a pobreza em Portugal.
A
apresentação propriamente dita esteve a cargo de Guilherme d’Oliveira Martins. Porém, as filhas, Margarida e Madalena, fizeram uma evocação do autor; foram
passadas videomensagens do Cardeal José Tolentino e de António Guterres; e o
Presidente da República, que agraciou postumamente o homenageado com a Ordem da
Liberdade, fez o discurso de encerramento.
O Chefe de Estado justificou
a atribuição desta condecoração póstuma ao “profeta” Alfredo Bruto da Costa com
a ideia de que “quem luta para acabar com a pobreza luta pela liberdade” e,
ainda, por ter sido “aquilo que
Portugal pediu para que lhe entregasse”, porque – o livro é “mais um testemunho
do profeta” – “uma forma de viver a profecia é viver a libertação da pobreza e [Bruto da
Costa] transformou isso no desígnio da sua
vida” (disse Marcelo).
E o Presidente falou da importância da sessão e do ato
que representava: a homenagem a “um profeta que pensava com rigor científico e
que agia” não dissociando “a ciência e a fé”, pelo que aceitou ser presidente
da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica, bem como do Conselho
Económico e Social. Assim, para Marcelo, “este testemunho de profeta
convoca-nos para o mundo e para Portugal” e a palavra de Bruto da Costa, ora
colocada neste livro, “destina-se a lembrar que não há nada mais radical, mais
subversivo que o Evangelho”. Na verdade, a fé cristã “tem necessariamente
implicações políticas, senão, é uma fé coxa”, sendo impossível não ver as
implicações políticas dessa intervenção “cada vez que que se discutem questões
da pobreza ou de justiça”, disse o Presidente.
Rebelo de Sousa, que referiu o facto de Bruto da
Costa, que morreu a 11 de Novembro de 2016, aos 78 anos, e muitas outras
pessoas terem vivido o compromisso político da sua fé em grande parte do tempo
durante a ditadura, mais se justificando que, em democracia, os cristãos
entendam a dimensão política da sua fé, destacou as três ideias principais do
pensamento de Bruto da Costa: enfrentar a privação de quem não tem meios para
subsistir, garantir a autonomia dessas pessoas e agir no combate às causas da
pobreza e da miséria – ideias consubstanciadas no último parágrafo do livro ora
editado e que o Presidente leu:
“Temos de reconhecer que o nexo entre a fé cristã e a política tem sido
pouco valorizado e praticamente não existe para a maior parte dos cristãos.
Menos ainda se verifica que o problema da pobreza tenha o lugar que merece
entre os critérios em que assentam as respetivas opções políticas. Ao abster-se
da intervenção política, o cristão demite-se do exercício consistente da
caridade e da justiça, ambas dotadas de uma dimensão interpessoal
particularmente importante, mas que permanecem limitadas nas suas consequências
quando as suas exigências e implicações não chegam a penetrar na esfera
política. Doutro modo, o exercício do amor ao próximo não chega às origens e às
causas estruturais da pobreza.”
Neste “Dia
Internacional para a Erradicação da Pobreza”, o Presidente da República referiu
os 2,2 milhões de pobres em Portugal – número que aumentou em relação aos dois
milhões de antes da pandemia e que é superior aos 1,6 milhões referidos em
várias notícias sobre o levantamento da Pordata, a partir do número de
pessoas que vivem com menos de 540 euros por mês e que Rita Valadas, presidente
da Cáritas Portuguesa, também presente na sessão, considera poderem estar camuflados.
Também o país assinala os 25 anos do Rendimento Mínimo
Garantido (antecessor do Rendimento Social de Inserção), em cuja origem estiveram Alfredo Bruto da Costa e Manuela Silva, o que é recordado
por António Guterres, autor de um dos prefácios do livro e Primeiro-Ministro à
época, que enviou uma mensagem em vídeo para a sessão.
***
Oliveira Martins,
administrador da Fundação Gulbenkian, apresentou o livro, como se disse, destacando
o desafio do autor a que ninguém baixe os braços no “caminho no sentido da
cidadania e da dignidade da pessoa humana”.
“O livro e a
personalidade de Bruto da Costa” é o título da intervenção de Oliveira Martins,
que fala de “uma vida feita dom que nunca baixou os braços”. O livro constitui
um testemunho fundamental do autor sobre o momentoso problema da pobreza. E o
orador não hesita em dizer que se trata de “um documento precioso e original,
sobre um tema que ocupou intensamente o autor”, em que “se unem o rigor da
análise e o alerta atualíssimo relativamente a uma situação dramática da
pobreza na atualidade”.
Desde logo,
emerge a contradição entre a espera de um libertador e a recusa do mesmo, como
se vê na atitude do Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamazov”, de
Dostoievsky, “a dizer a Jesus Cristo, inesperadamente regressado, que deveria
desaparecer rapidamente por ser indesejado”. Não sendo a pobreza o tema do
grande equívoco, mas “a partilha e a exigência do cuidado dos outros e da não
indiferença, marcantes na essência da novidade cristã”, o autor pergunta “quem pode ousar falar do Amor de Deus”.
E “a pobreza surge como exigência de disponibilidade, como obrigação de
compreender o outro e de ter respostas”.
Por isso, os
pobres da Bíblia são os que o são no seu íntimo, o que exige disponibilidade,
não podendo haver elogio da pobreza sociológica. Tanto assim é que, segundo os
Atos dos Apóstolos, na comunidade cristã, “ninguém chamava seu ao que lhe
pertencia, mas entre eles tudo era comum”. Assim é imperativo “compreender o
sentido e o alcance do direito de uso e do direito de posse”, aliás, como
afirma a encíclica "Laborem Exercens", de São João Paulo II, “a
propriedade adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao
trabalho”. Cá está a importância do desapego ao material, para que dele não nos
tornemos escravos, de modo que “a necessidade do outro, como outra metade de
nós, para usar a expressão do padre Mateo Ricci, significa a possibilidade de
ter resposta ao outro, não nos fechando sobre nós mesmos”.
Não
obstante, é cada vez mais desigual a distribuição de bens da terra. Em 1960, o
rendimento dos 20 % mais ricos da população mundial era 30 vezes o rendimento dos
20 % mais pobres, mas, em 2000, essa relação passara a 75 vezes. E “as
desigualdades no domínio das capacidades avançadas estão a agravar-se. Por
exemplo, apesar dos desafios no tocante aos dados, as estimativas apontam para
ganhos ao nível da esperança média de vida aos 70 anos, entre 1995 e 2015, dez
vezes superiores nos países com nível muito elevado de desenvolvimento humano,
em relação aos países com baixo nível de desenvolvimento humano. E há elementos
que demonstram a presença do mesmo padrão de divergência num vasto leque de capacidades
avançadas. As divergências no acesso a conhecimento mais avançado e à tecnologia
são ainda mais vincadas”. Daí a exigência, para Bruto da Costa, duma leitura
evangélica da pobreza no mundo. A noção de cidadania mundial reforça a urgência
de alargamento do horizonte do nosso pensamento além das fronteiras nacionais
assumindo o princípio da subsidiariedade, isto é, tratando e solucionando os
problemas o mais próximo possível das pessoas, sempre a um nível adequado. O
pensamento “glocal” é simultaneamente global e local, centrífugo e centrípeto.
Se os problemas do ambiente e das pandemias, do aquecimento global e da cultura
da paz têm de ser tratadas acima das fronteiras nacionais, as opções conexas
com a organização local ou com os cuidados das pessoas concretas têm de ter “dimensão
local e comunitária”, pois, como lembra Bruto da Costa: “a globalização é demasiado importante para ser deixada ingovernada”,
porque “tem capacidade de fazer
extraordinário mal como bem”. Exige-se, pois, “coesão social, sustentabilidade
cultural, económica, social e ambiental, conhecimento e aprendizagem”.
E
libertar os pobres de hoje “é combater e resolver a privação” (fome, sede, nudez, falta de abrigo) e “a falta de recursos”, de modo a
garantir autossuficiência, autonomia e defesa do bem comum. Neste sentido, a
definição de pobreza “conduz-nos a duas conclusões da maior relevância teórica
e prática”. Uma tende a resolver a privação, sem
resolver a pobreza, bastando que o pobre tenha acesso aos bens e serviços
básicos por via de apoios extraordinários,
que resolvem a privação, mas mantêm o pobre em situação de dependência, pois, apesar de sair da privação, continua
sem os recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas como o
comum dos cidadãos, ou seja, não é autónomo. A outra entende que “a pobreza só
é vencida quando o pobre sai da situação de privação por seus próprios meio,
isto é, “o pobre só vence a pobreza quando não precisa de recorrer a medidas e
políticas de luta contra a pobreza”.
Por
conseguinte, há que agir em vários tabuleiros: na igualdade de oportunidades,
na correção das desigualdades, na justiça distributiva, na equidade
intergeracional, no desenvolvimento sustentável. Por isso é que o primeiro objetivo
das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável é a erradicação da
pobreza.
A
partir do princípio do destino universal dos bens da terra e da exigência de
sobriedade, o combate à pobreza obriga a metas claras e à definição de meios
que levem a superar as condicionantes que nos afetam, sobretudo depois da
pandemia, que agravou as disparidades e tornou mais difíceis os objetivos
anteriormente definidos. E Bruto da Costa deixou o desafio de não baixarmos os
braços no caminho da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
***
A videomensagem do Cardeal Tolentino retomou várias
afirmações do segundo prefácio do livro. Recordando os primeiros encontros com
Bruto da Costa quando era seminarista, o cardeal bibliotecário do Vaticano
disse que Alfredo Bruto da Costa distinguia o direito de todas as pessoas à
casa, ao trabalho, à propriedade e a uma vida digna do que é a realidade de
posse desses bens, em que só alguns os têm. Rita Valadas acrescentou que as
obras de misericórdia são de grande atualidade e Edmundo Martinho, provedor da
Misericórdia, deu um exemplo da terrível atualidade duma delas: mais de 200
pessoas foram sepultadas no último ano pela instituição e pela Irmandade de São
Roque, “sem qualquer acompanhamento de algum familiar ou amigo”. António Silva
Soares, presidente do Fórum Abel Varzim – Desenvolvimento e Solidariedade, a
outra entidade coorganizadora da sessão, destacou o facto de Bruto da Costa
juntar a ciência e a fé, recordando a conversa que tivera com o autor, quando
lhe perguntou se ele não queria publicar um livro com as suas ideias. E as
filhas evocaram o legado do pai:
“Deixa-nos a todos as sementes do seu pensamento, da coerência de vida, da
sua voz inconformada que nos convida a ampliar o nosso olhar e alargar a nossa tenda”.
Referiram
o que ele explica no capítulo “À guisa de
justificação”:
“Não é sem alguma hesitação que
decido publicar este texto. Sou um cristão comum, que, como os demais cristãos
comuns, vive no meio do mundo. Cursei engenharia, tenho trabalhado em assuntos
económicos e sociais, tenho exercido alguma docência universitária e
investigado sobretudo em domínios relacionados com a pobreza.”.
E, mais
adiante, assegura:
“No que fica dito, encontrará o
leitor uma ideia aproximada do que me levou a admitir que o facto de ter
passado por essa experiência profissional diversificada suscite um certo
sentimento de dever de registar a reflexão que tive a oportunidade de realizar e
que no desenvolvimento deste livro tive de aprofundar”.
De
facto, Bruto da Costa sentiu uma grande necessidade de não se calar sobre os
temas que o preocupavam a sério e “fazia-o com muita naturalidade e entusiasmo”.
Revelaram
as filhas que foi pedida ao Cardeal José Tolentino de Mendonça e ao engenheiro
António Guterres a redação dos prefácios, ficando a família com o ónus de
redigir a biografia, a que pôs mãos o Dr. Adelino Rodrigues da Costa, e o
posfácio, em que tentaram descrever o Pai nas diferentes facetas que enriquecem
as vidas de cada um, esposa, filhas e netos.
Diz o
poeta D. Tolentino Mendonça, perante a interpelação “Qual será o meu legado?”:
“Não há maior legado do que o
de uma vida feita dom; e quando isso acontece a vida revela-se no que tem de
fundo e flagrante, de grácil e arrebatador, de esperançoso e possível. Não há
maior legado do que transmitir uma dessas centelhas, quaisquer que elas sejam,
onde o infinito reluza. (…) Um
fragmento de infinito é a única coisa sem preço que nos pode ligar para lá do
espaço e do tempo.”.
Recordam
as filhas “um homem feliz, olhar vivo, sorriso aberto”; e “um colo seguro”, não
só relativamente às suas vidas, mas “em relação à humanidade”. Lembram tantas
conversas com o grupo de amigos, em que o Pai apresentava com entusiasmo os
fundamentos da Doutrina Social da Igreja e outros documentos de referência.
Falava sobre “o destino universal dos bens e as suas implicações profundas na
organização da sociedade, mas também nas opções de vida de cada um”. “Deixa-nos a semente para que germinasse em nós o desejo de ir ao
encontro do outro, principalmente dos mais frágeis”, e o empenho em construir a “forma justa” de que nos fala tão bem
Sophia de Mello Breyner.
Era
cativante a forma como se deixava interpelar pela infância e o amor por cada um
dos netos.
Recordam
“um homem de fé, um profeta, um homem livre, uma voz incansável na luta contra
a pobreza e a injustiça social e na defesa dos direitos dos mais pobres e dos
excluídos”, que “lutava por um presente e por um futuro mais justos e mais
transparentes com enorme fidelidade e firmeza”. Enfim, era um homem que “viveu
sempre uma simplicidade interpeladora e uma coerência desconcertante e
encantadora” e que deixa a todos “as sementes do seu
pensamento, da coerência de vida, da sua voz inconformada que nos convida a
ampliar o nosso olhar e alargar a nossa tenda”.
***
Um
profeta teórico-prático. Cremos que, graças a Deus, não será o único dos nossos
tempos, mas que é justo e salutar rever e seguir.
2021.10.18 – Louro de Carvalho
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