segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Uma obra póstuma de Bruto da Costa

 

A 17 de outubro deste ano de 2021, “Dia Internacional da Erradicação da Pobreza” e em que se assinalam os 25 anos da criação do rendimento mínimo garantido, hoje rendimento social de inserção, foi apresentado, na sala de extrações da Misericórdia de Lisboa (instituição de que Bruto da Costa foi provedor), em edição póstuma da Cáritas Portuguesa, o livro “Que Fizeste do Teu Irmão? – Um olhar de fé sobre a pobreza no mundo”, de Alfredo Bruto da Costa, Ministro dos Assuntos Sociais do V Governo Constitucional, liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo, e que foi, juntamente com Manuela Silva, pioneiro nos estudos sobre a pobreza em Portugal.

A apresentação propriamente dita esteve a cargo de Guilherme d’Oliveira Martins. Porém, as filhas, Margarida e Madalena, fizeram uma evocação do autor; foram passadas videomensagens do Cardeal José Tolentino e de António Guterres; e o Presidente da República, que agraciou postumamente o homenageado com a Ordem da Liberdade, fez o discurso de encerramento. 

O Chefe de Estado justificou a atribuição desta condecoração póstuma ao “profeta” Alfredo Bruto da Costa com a ideia de que “quem luta para acabar com a pobreza luta pela liberdade” e, ainda, por ter sido “aquilo que Portugal pediu para que lhe entregasse”, porque – o livro é “mais um testemunho do profeta” – “uma forma de viver a profecia é viver a libertação da pobreza e [Bruto da Costa] transformou isso no desígnio da sua vida” (disse Marcelo).

E o Presidente falou da importância da sessão e do ato que representava: a homenagem a “um profeta que pensava com rigor científico e que agia” não dissociando “a ciência e a fé”, pelo que aceitou ser presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica, bem como do Conselho Económico e Social. Assim, para Marcelo, “este testemunho de profeta convoca-nos para o mundo e para Portugal” e a palavra de Bruto da Costa, ora colocada neste livro, “destina-se a lembrar que não há nada mais radical, mais subversivo que o Evangelho”. Na verdade, a fé cristã “tem necessariamente implicações políticas, senão, é uma fé coxa”, sendo impossível não ver as implicações políticas dessa intervenção “cada vez que que se discutem questões da pobreza ou de justiça”, disse o Presidente.

Rebelo de Sousa, que referiu o facto de Bruto da Costa, que morreu a 11 de Novembro de 2016, aos 78 anos, e muitas outras pessoas terem vivido o compromisso político da sua fé em grande parte do tempo durante a ditadura, mais se justificando que, em democracia, os cristãos entendam a dimensão política da sua fé, destacou as três ideias principais do pensamento de Bruto da Costa: enfrentar a privação de quem não tem meios para subsistir, garantir a autonomia dessas pessoas e agir no combate às causas da pobreza e da miséria – ideias consubstanciadas no último parágrafo do livro ora editado e que o Presidente leu:

Temos de reconhecer que o nexo entre a fé cristã e a política tem sido pouco valorizado e praticamente não existe para a maior parte dos cristãos. Menos ainda se verifica que o problema da pobreza tenha o lugar que merece entre os critérios em que assentam as respetivas opções políticas. Ao abster-se da intervenção política, o cristão demite-se do exercício consistente da caridade e da justiça, ambas dotadas de uma dimensão interpessoal particularmente importante, mas que permanecem limitadas nas suas consequências quando as suas exigências e implicações não chegam a penetrar na esfera política. Doutro modo, o exercício do amor ao próximo não chega às origens e às causas estruturais da pobreza.

Neste “Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza”, o Presidente da República referiu os 2,2 milhões de pobres em Portugal – número que aumentou em relação aos dois milhões de antes da pandemia e que é superior aos 1,6 milhões referidos em várias notícias sobre o levantamento da Pordata, a partir do número de pessoas que vivem com menos de 540 euros por mês e que Rita Valadas, presidente da Cáritas Portuguesa, também presente na sessão, considera poderem estar camuflados.

Também o país assinala os 25 anos do Rendimento Mínimo Garantido (antecessor do Rendimento Social de Inserção), em cuja origem estiveram Alfredo Bruto da Costa e Manuela Silva, o que é recordado por António Guterres, autor de um dos prefácios do livro e Primeiro-Ministro à época, que enviou uma mensagem em vídeo para a sessão.

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Oliveira Martins, administrador da Fundação Gulbenkian, apresentou o livro, como se disse, destacando o desafio do autor a que ninguém baixe os braços no “caminho no sentido da cidadania e da dignidade da pessoa humana”.

O livro e a personalidade de Bruto da Costa” é o título da intervenção de Oliveira Martins, que fala de “uma vida feita dom que nunca baixou os braços”. O livro constitui um testemunho fundamental do autor sobre o momentoso problema da pobreza. E o orador não hesita em dizer que se trata de “um documento precioso e original, sobre um tema que ocupou intensamente o autor”, em que “se unem o rigor da análise e o alerta atualíssimo relativamente a uma situação dramática da pobreza na atualidade”.

Desde logo, emerge a contradição entre a espera de um libertador e a recusa do mesmo, como se vê na atitude do Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky, “a dizer a Jesus Cristo, inesperadamente regressado, que deveria desaparecer rapidamente por ser indesejado”. Não sendo a pobreza o tema do grande equívoco, mas “a partilha e a exigência do cuidado dos outros e da não indiferença, marcantes na essência da novidade cristã”, o autor pergunta “quem pode ousar falar do Amor de Deus”. E “a pobreza surge como exigência de disponibilidade, como obrigação de compreender o outro e de ter respostas”.  

Por isso, os pobres da Bíblia são os que o são no seu íntimo, o que exige disponibilidade, não podendo haver elogio da pobreza sociológica. Tanto assim é que, segundo os Atos dos Apóstolos, na comunidade cristã, “ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum”. Assim é imperativo “compreender o sentido e o alcance do direito de uso e do direito de posse”, aliás, como afirma a encíclica "Laborem Exercens", de São João Paulo II, “a propriedade adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho”. Cá está a importância do desapego ao material, para que dele não nos tornemos escravos, de modo que “a necessidade do outro, como outra metade de nós, para usar a expressão do padre Mateo Ricci, significa a possibilidade de ter resposta ao outro, não nos fechando sobre nós mesmos”.

Não obstante, é cada vez mais desigual a distribuição de bens da terra. Em 1960, o rendimento dos 20 % mais ricos da população mundial era 30 vezes o rendimento dos 20 % mais pobres, mas, em 2000, essa relação passara a 75 vezes. E “as desigualdades no domínio das capacidades avançadas estão a agravar-se. Por exemplo, apesar dos desafios no tocante aos dados, as estimativas apontam para ganhos ao nível da esperança média de vida aos 70 anos, entre 1995 e 2015, dez vezes superiores nos países com nível muito elevado de desenvolvimento humano, em relação aos países com baixo nível de desenvolvimento humano. E há elementos que demonstram a presença do mesmo padrão de divergência num vasto leque de capacidades avançadas. As divergências no acesso a conhecimento mais avançado e à tecnologia são ainda mais vincadas”. Daí a exigência, para Bruto da Costa, duma leitura evangélica da pobreza no mundo. A noção de cidadania mundial reforça a urgência de alargamento do horizonte do nosso pensamento além das fronteiras nacionais assumindo o princípio da subsidiariedade, isto é, tratando e solucionando os problemas o mais próximo possível das pessoas, sempre a um nível adequado. O pensamento “glocal” é simultaneamente global e local, centrífugo e centrípeto. Se os problemas do ambiente e das pandemias, do aquecimento global e da cultura da paz têm de ser tratadas acima das fronteiras nacionais, as opções conexas com a organização local ou com os cuidados das pessoas concretas têm de ter “dimensão local e comunitária”, pois, como lembra Bruto da Costa: “a globalização é demasiado importante para ser deixada ingovernada”, porque “tem capacidade de fazer extraordinário mal como bem”. Exige-se, pois, “coesão social, sustentabilidade cultural, económica, social e ambiental, conhecimento e aprendizagem”.

E libertar os pobres de hoje “é combater e resolver a privação” (fome, sede, nudez, falta de abrigo) e “a falta de recursos”, de modo a garantir autossuficiência, autonomia e defesa do bem comum. Neste sentido, a definição de pobreza “conduz-nos a duas conclusões da maior relevância teórica e prática”. Uma tende a resolver a privação, sem resolver a pobreza, bastando que o pobre tenha acesso aos bens e serviços básicos por via de apoios extraordinários, que resolvem a privação, mas mantêm o pobre em situação de dependência, pois, apesar de sair da privação, continua sem os recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas como o comum dos cidadãos, ou seja, não é autónomo. A outra entende que “a pobreza só é vencida quando o pobre sai da situação de privação por seus próprios meio, isto é, “o pobre só vence a pobreza quando não precisa de recorrer a medidas e políticas de luta contra a pobreza”.

Por conseguinte, há que agir em vários tabuleiros: na igualdade de oportunidades, na correção das desigualdades, na justiça distributiva, na equidade intergeracional, no desenvolvimento sustentável. Por isso é que o primeiro objetivo das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável é a erradicação da pobreza.

A partir do princípio do destino universal dos bens da terra e da exigência de sobriedade, o combate à pobreza obriga a metas claras e à definição de meios que levem a superar as condicionantes que nos afetam, sobretudo depois da pandemia, que agravou as disparidades e tornou mais difíceis os objetivos anteriormente definidos. E Bruto da Costa deixou o desafio de não baixarmos os braços no caminho da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

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A videomensagem do Cardeal Tolentino retomou várias afirmações do segundo prefácio do livro. Recordando os primeiros encontros com Bruto da Costa quando era seminarista, o cardeal bibliotecário do Vaticano disse que Alfredo Bruto da Costa distinguia o direito de todas as pessoas à casa, ao trabalho, à propriedade e a uma vida digna do que é a realidade de posse desses bens, em que só alguns os têm. Rita Valadas acrescentou que as obras de misericórdia são de grande atualidade e Edmundo Martinho, provedor da Misericórdia, deu um exemplo da terrível atualidade duma delas: mais de 200 pessoas foram sepultadas no último ano pela instituição e pela Irmandade de São Roque, “sem qualquer acompanhamento de algum familiar ou amigo”. António Silva Soares, presidente do Fórum Abel Varzim – Desenvolvimento e Solidariedade, a outra entidade coorganizadora da sessão, destacou o facto de Bruto da Costa juntar a ciência e a fé, recordando a conversa que tivera com o autor, quando lhe perguntou se ele não queria publicar um livro com as suas ideias. E as filhas evocaram o legado do pai:

Deixa-nos a todos as sementes do seu pensamento, da coerência de vida, da sua voz inconformada que nos convida a ampliar o nosso olhar e alargar a nossa tenda”. 

Referiram o que ele explica no capítulo “À guisa de justificação”:

“Não é sem alguma hesitação que decido publicar este texto. Sou um cristão comum, que, como os demais cristãos comuns, vive no meio do mundo. Cursei engenharia, tenho trabalhado em assuntos económicos e sociais, tenho exercido alguma docência universitária e investigado sobretudo em domínios relacionados com a pobreza.”.

E, mais adiante, assegura:

“No que fica dito, encontrará o leitor uma ideia aproximada do que me levou a admitir que o facto de ter passado por essa experiência profissional diversificada suscite um certo sentimento de dever de registar a reflexão que tive a oportunidade de realizar e que no desenvolvimento deste livro tive de aprofundar”.

De facto, Bruto da Costa sentiu uma grande necessidade de não se calar sobre os temas que o preocupavam a sério e “fazia-o com muita naturalidade e entusiasmo”.

Revelaram as filhas que foi pedida ao Cardeal José Tolentino de Mendonça e ao engenheiro António Guterres a redação dos prefácios, ficando a família com o ónus de redigir a biografia, a que pôs mãos o Dr. Adelino Rodrigues da Costa, e o posfácio, em que tentaram descrever o Pai nas diferentes facetas que enriquecem as vidas de cada um, esposa, filhas e netos.

Diz o poeta D. Tolentino Mendonça, perante a interpelação “Qual será o meu legado?”:

“Não há maior legado do que o de uma vida feita dom; e quando isso acontece a vida revela-se no que tem de fundo e flagrante, de grácil e arrebatador, de esperançoso e possível. Não há maior legado do que transmitir uma dessas centelhas, quaisquer que elas sejam, onde o infinito reluza. (…) Um fragmento de infinito é a única coisa sem preço que nos pode ligar para lá do espaço e do tempo.”.

Recordam as filhas “um homem feliz, olhar vivo, sorriso aberto”; e “um colo seguro”, não só relativamente às suas vidas, mas “em relação à humanidade”. Lembram tantas conversas com o grupo de amigos, em que o Pai apresentava com entusiasmo os fundamentos da Doutrina Social da Igreja e outros documentos de referência. Falava sobre “o destino universal dos bens e as suas implicações profundas na organização da sociedade, mas também nas opções de vida de cada um”.  “Deixa-nos a semente para que germinasse em nós o desejo de ir ao encontro do outro, principalmente dos mais frágeis, e o empenho em construir a “forma justa” de que nos fala tão bem Sophia de Mello Breyner.

Era cativante a forma como se deixava interpelar pela infância e o amor por cada um dos netos.

Recordam “um homem de fé, um profeta, um homem livre, uma voz incansável na luta contra a pobreza e a injustiça social e na defesa dos direitos dos mais pobres e dos excluídos”, que “lutava por um presente e por um futuro mais justos e mais transparentes com enorme fidelidade e firmeza”. Enfim, era um homem que “viveu sempre uma simplicidade interpeladora e uma coerência desconcertante e encantadora” e que deixa a todos “as sementes do seu pensamento, da coerência de vida, da sua voz inconformada que nos convida a ampliar o nosso olhar e alargar a nossa tenda”.

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Um profeta teórico-prático. Cremos que, graças a Deus, não será o único dos nossos tempos, mas que é justo e salutar rever e seguir.

2021.10.18 – Louro de Carvalho

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