quinta-feira, 31 de março de 2022

Idosos, jovens, crianças, guerra e refugiados no coração do Papa

A 30 de março, Francisco continuou o seu ciclo de catequeses sobre a velhice, na Audiência Geral, realizada na Sala Paulo VI, com o tema “Fidelidade à visita de Deus para a geração futura”.

Estiveram no centro da catequese do Pontífice os idosos Simeão e Ana, cuja razão de vida, “antes de se despedirem deste mundo, é aguardar a visita de Deus”. Simeão sabe, através de premonição do Espírito Santo, que não morrerá sem ter visto o Messias e Ana vai ao Templo todos os dias, dedicando-se ao seu serviço. Ambos reconhecem a presença do Senhor no Menino que enche de consolação a sua longa espera e tranquiliza a sua despedida da vida – “cena de um encontro com Jesus e de despedida”, no dizer do Papa.

Segundo o já idoso Bispo de Roma, de Simeão e Ana “aprendemos que a fidelidade da espera aguça os sentidos”. Com efeito, o Espírito Santo “ilumina os nossos sentidos, aguça os sentidos da alma, apesar dos limites e das feridas dos sentidos do corpo: um mais cego, outro mais surdo”.

Embora a velhice debilite a sensibilidade do corpo, a velhice que se exerça na expectativa da visita de Deus não perderá a sua passagem, antes estará mais pronta para a acolher, terá mais sensibilidade para acolher o Senhor quando Ele passar em sintonia com o que o comportamento do cristão postula: estar atento às visitas do Senhor, porque o Senhor passa, em nossa vida, com as inspirações, com o convite para sermos melhores. Por isso, dizia Santo Agostinho: “Tenho medo de Deus quando ele passa, tenho medo de não perceber e deixá-lo passar”. Ora, é o Espírito Santo que prepara os sentidos para entendermos quando o Senhor nos visita, como fez com Simeão e Ana.

No dizer do Papa, precisamos “duma velhice dotada de sentidos espirituais vivos e capazes de reconhecer os sinais de Deus, ou melhor, o Sinal de Deus, que é Jesus”, que nos põe em crise sempre, porque é “sinal de contradição”, mas que nos enche de alegria. Na verdade, para Francisco, “estar em crise enquanto se serve ao Senhor dá paz e alegria, muitas vezes”. Assim, o problema é a “anestesia dos sentidos espirituais”, uma síndrome generalizada numa sociedade que cultiva a ilusão da juventude eterna, cuja caraterística mais perigosa consiste em ser-se quase inconsciente, ou seja, não se ter a consciência de estar anestesiado.

Segundo o Pontífice, se perdemos a sensibilidade do tacto ou do paladar, damo-nos conta disso imediatamente, mas a perda da sensibilidade da alma “podemos ignorá-la por muito tempo”. Tal insensibilidade dos sentidos espirituais não atinge só o pensamento de Deus ou da religião, mas também “a compaixão e a piedade, a vergonha e o remorso, a fidelidade e a dedicação, a ternura e a honra, a responsabilidade própria e a dor pelo próximo”.

Considerando que “os sentidos espirituais anestesiados confundem tudo e a pessoa não sente espiritualmente”, o Papa reconhece que a velhice se torna “a primeira vítima desta perda de sensibilidade” e que, “numa sociedade que exerce a sensibilidade sobretudo por prazer, só pode haver a perda de atenção pelos mais frágeis e prevalecer a competição dos vencedores”. Assim, a retórica da inclusão não passa de “fórmula ritual de cada discurso politicamente correto”, não trazendo “uma verdadeira correção nas práticas da normal convivência”. Por consequência, “uma cultura da ternura social tem dificuldade em crescer” e o espírito da fraternidade humana “é como uma peça de vestiário descartada, para admirar, sim, mas... num museu”.

Verifica o Pontífice que podemos observar, na vida real, muitos jovens capazes de honrar até ao fundo esta fraternidade, mas que existe, a par disso, “um descarte culpado, entre o testemunho desta linfa vital da ternura social e o conformismo, que obriga a juventude a contar a sua história de modo completamente diferente”.

Ao invés, a revelação que estimula a sensibilidade de Simeão e Ana consiste, segundo Francisco, “em reconhecer numa criança, que eles não geraram e que veem pela primeira vez, o sinal certo da visita de Deus”, aceitando não serem eles protagonistas, mas apenas testemunhas. Na verdade, no dizer do Papa, “quando alguém aceita não ser protagonista, mas se envolve como testemunha, vai tudo bem”: o homem ou a mulher amadurece bem. Já quando se tem o desejo de ser sempre protagonista, o caminho rumo à plenitude da velhice nunca amadurecerá. E, por conseguinte, “a visita de Deus não se encarna na sua vida, não os põe em cena como salvadores: Deus não se encarna na sua geração, mas na geração vindoura”.

Porém, “a velhice que cultivou a sensibilidade da alma extingue toda a inveja entre as gerações, todo o ressentimento, toda a recriminação pelo advento de Deus na geração seguinte, que chega com a despedida da própria”. E isso acontece a um idoso aberto como um jovem aberto: despede-se da vida, mas entrega a sua vida à nova geração. Como Simeão dirá: “Agora posso ir em paz”.

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A um idoso jovem, como é o Papa, não falta o fôlego nem dói a voz, mesmo que seja trémula, para bradar pelo fim da guerra e ansiar pelo dom e esforço da paz.  

Assim, após a catequese da Audiência Geral, Francisco dirigiu “uma saudação particularmente afetuosa, acompanhada de longo aplauso, às crianças ucranianas, acolhidas pela Fundação ‘Ajude-as a viver’, pela Associação ‘Puer’ e pela Embaixada da Ucrânia junto à Santa Sé’, acompanhando a saudação com nova condenação do horror que ensanguenta o Leste Europeu e exortando à renovação das nossas orações para que esta crueldade selvagem, que é a guerra, pare.

Neste sentido, recomendou que, “esta última etapa do caminho quaresmal, olhemos para a Cruz de Cristo, expressão máxima do amor de Deus, e nos esforcemos por estarmos sempre perto dos que sofrem, dos que estão sozinhos, dos frágeis que sofrem violência e não têm quem os defenda”.

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A associação ‘Puer’ visa a aplicação de medidas de apoio a situações sociais precárias, prestando especial atenção à proteção de menores em dificuldade. Uma história que se entrelaça com um evento dramático, ocorrido a 26 de abril de 1986, que levou à explosão dum reator na central nuclear Chernobyl. Desde então, milhares de crianças foram acolhidas em áreas não contaminadas, provenientes sobretudo de Belarússia, uma das nações mais afetadas pela radiação. E a fundação ‘Ajude-as a viver’ foi animada pela inestimável contribuição de pessoas de boa vontade que espontaneamente começaram a trabalhar para ajudar as populações infantis afetadas pelo desastre nuclear de Chernobyl. Nos últimos dias, uma delegação desta fundação foi a países de fronteira com a Ucrânia para levar ajuda humanitária, incluindo alimentos, roupas, cobertores, sapatos e medicamentos.

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Pelo menos 144 crianças morreram na Ucrânia por causa da guerra que eclodiu a 24 de fevereiro, relatam fontes ucranianas, sublinhando que quase metade das vítimas estão em Kiev.

Segundo a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), são pelo menos 4 milhões e 300 mil as crianças deslocadas: mais de 1 milhão e 800 mil chegaram aos países vizinhos como refugiadas e 2 milhões e 500 mil as crianças deslocadas internamente. No dizer de Catherine Russell, diretora-geral da Unicef, “a guerra causou um dos mais rápidos deslocamentos em larga escala de crianças desde a II Guerra Mundial” – “um triste resultado que pode ter consequências duradouras para as gerações futuras”.

A guerra causa consequências devastadoras na infraestrutura civil. Atinge hospitais e escolas. A este respeito, o Ministério da Educação e Ciência da Ucrânia informou que mais de 500 estruturas educacionais foram danificadas. Estima-se que pelo menos 1 milhão e 400 mil pessoas na Ucrânia não tenham acesso a água potável. E a Unicef salientou que há, neste país, uma redução na cobertura para as vacinações de rotina e principalmente para as vacinações infantis, incluindo sarampo e poliomielite, o que pode levar rapidamente a surtos de doenças evitáveis com vacinas, especialmente em áreas superlotadas onde a população se refugia durante bombardeios e ataques aéreos. A guerra chegou ao seu 36.º dia e continua a causar traumas e devastação: destrói o futuro, especialmente o das novas gerações que precisam de paz e proteção.

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Paralelamente, foi apresentada na Sala de Imprensa da Santa Sé a 36.ª viagem apostólica do Papa, desta vez para a ilha de Malta. E, como disse aos jornalistas em conferência de imprensa Matteo Bruni, diretor da Sala de Imprensa, será “difícil não levar em conta a guerra na Ucrânia”. 

Adiada por causa da pandemia, a visita concentrar-se-á nos temas do acolhimento – Malta é um local de desembarque para muitos migrantes que tentam atravessar o Mediterrâneo vindos do norte da África – e do legado apostólico de São Paulo, que naufragou na ilha a caminho de Roma.

Nos termos do programa, serão feitos cinco discursos em dois dias, a partir da manhã de sábado, 2 de abril, no palácio do Grão Mestre em Valeta, dirigido às autoridades maltesas e ao corpo diplomático, seguido de encontro de oração no Santuário Mariano de Ta’inu, na ilha de Gozo. No domingo, dia 3, Francisco reunirá com os jesuítas de Malta em encontro privado e depois rezará nas grutas de São Paulo em Rabat. Ainda pela manhã, será celebrada a Santa Missa no Largo dei Granai em Floriana que será seguida pela oração do Angelus e, à tarde, ocorrerá a visita ao centro de migrantes “João XXIII Peace Lab”, onde o Pontífice se encontrará com cerca de duzentas pessoas, provavelmente provenientes da África.

Referindo-se à dor no joelho que forçou o Papa Francisco a cancelar alguns eventos nas últimas semanas foi dito: “Não haverá precauções especiais, mas certamente os cuidados de sempre”.

Assim, na Audiência Geral do dia 30 de março, Francisco saudou os malteses em vista da sua viagem apostólica, que será uma oportunidade para “ir às fontes do Evangelho” e a uma nação que abre as suas portas para aqueles que “buscam refúgio”.

De facto, Malta é um lugar de desembarque para muitas pessoas que tentam atravessar o mar a partir do norte da África e o país onde se conserva a memória do naufrágio do Apóstolo dos Gentios que foi o primeiro a levar a fé do Evangelho a esta ilha.

Este país, localizado na bacia do Mediterrâneo, é o destino da próxima viagem apostólica do Papa Francisco, uma peregrinação que será marcada por encontros, orações e um abraço com os migrantes. E o Pontífice vincou isto após a catequese da Audiência Geral:

Irei a Malta. Nessa terra luminosa serei peregrino nos passos do Apóstolo Paulo, que ali foi acolhido com grande humanidade depois de ter naufragado no mar no caminho para Roma. Esta Viagem Apostólica será assim uma oportunidade para ir às fontes do anúncio do Evangelho, para conhecer pessoalmente uma comunidade cristã com uma história milenar e vivaz, para encontrar os habitantes de um país que está no centro do Mediterrâneo e no sul do continente europeu, hoje ainda mais comprometido em acolher tantos irmãos e irmãs em busca de refúgio. Já agora saúdo de coração todos vós, malteses: tende um bom dia. Agradeço a todos aqueles que trabalharam para preparar esta visita e peço a cada um que me acompanhe em oração.”.

O lema da viagem apostólica do Papa Francisco “Eles trataram-nos com rara humanidade” (At 28,2) é tirado do versículo dos Atos dos Apóstolos com as palavras de São Paulo descrevendo a maneira como ele e os companheiros foram tratados quando naufragaram na ilha no ano 60, durante a viagem que os levava a Roma.

Francisco é o terceiro Pontífice a visitar Malta depois de São João Paulo II, em 1990 e 2001, e Bento XVI, em 2010. Assim, apesar da sua idade provecta, o Papa é incansável na luta pela paz e no apoio aos que se sentem sós e/ou deslocados.

2022.03.31 – Louro de Carvalho 

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