domingo, 20 de março de 2022

Se não vos arrependerdes…

 

No centro da marcha cristã somos intensamente chamados à conversão. Tal como os hebreus foram libertados da escravidão do Egipto pela mediação de Moisés, hebreu de sangue e egípcio por adoção infançã, agora Jesus, nestes tempos que são os últimos, quer libertar o homem todo e todos os homens do pecado do mundo, no que se incluem tanto os pecados pessoais como a raiz e as estruturas (políticas, sociais, económicas, financeiras, militares e religiosas) que incrementam e sustentam o mal e os males.

A liturgia dominical apresenta-nos, da parte do Antigo Testamento (Ex 3,1-8a.13-15), o Deus que não suporta as injustiças e as arbitrariedades e que está sempre presente naqueles que lutam pela libertação. É o Deus libertador que exige de nós uma luta permanente contra tudo o que nos escraviza e que impede a manifestação da vida em plenitude.

Na verdade, o livro do Êxodo, nos capítulos 1 a 18, refere um conjunto de tradições atinentes à libertação do Egipto: narra a iniciativa de Javé, que escutou os gemidos dos escravos hebreus e se compadeceu deles (cf Ex 2,23-24). E a perícopa em referência na liturgia da III dominga da Quaresma foca a vocação de Moisés para face visível da libertação que Javé quer empreender.

Moisés deixara o Egipto e encontrara abrigo no deserto do Sinai, depois de ter morto um egípcio que maltratava um hebreu – o deserto era o retiro usual dos opositores à política faraónica. Acolhido por uma tribo de beduínos, casou e refez a sua vida em calma e tranquilidade após o incidente que lhe arruinara os sonhos duma carreira no aparelho administrativo egípcio (cf Ex 2,11-22). E é nesse oásis de serenidade que Javé Se revela, mobiliza Moisés e o envia em missão.

O enunciado “Javé tirou Israel do Egipto”, central na perícopa em referência, será a primitiva profissão de fé de Israel e o facto mobilizador da fé israelita.

O trecho em causa pode dividir-se em duas partes. A primeira (vv 1-8) relata a vocação de Moisés. O contexto é teofânico: o “anjo do Senhor”, o fogo, a omnipotência, a santidade e a majestade de Deus, a apresentação de Deus, o sentimento de temor que o homem experimenta ante o divino; e Deus manifesta-Se para comprometer Moisés, enviando-o em missão e fazendo dele o seu instrumento da libertação. A vocação de Moisés surge por iniciativa do Deus libertador, determinado em salvar o seu Povo. Deus age na história através de homens generosos e disponíveis para a aceitação dos seus desafios. A segunda parte (vv 13-15) apresenta a revelação do nome de Deus, um sinal de confirmação de que Moisés foi chamado por Deus e enviado por Ele em missão: “Eu sou aquele que sou”. Este nome não é uma tautologia, mas uma definição existencial de Deus e a afirmação inequívoca da presença contínua de Deus na vida do seu Povo, presença viva, ativa, dinâmica e perpétua – no presente e no futuro – como libertação e salvação.

Deste modo, os israelitas descobriram que Javé esteve no fulcro daquela tentativa humana de libertação e conduziu o processo de tal forma que um povo vítima da opressão passasse a ser livre. Javé não ficou de braços cruzados ante a opressão, mas iniciou um longo processo de intervenção na história que se traduziu em libertação e vida para um povo antes condenado à morte por fadiga e eliminação populacional.

O Êxodo fica para a posteridade como o modelo e paradigma de todas as libertações. A partir dali, fica patente a pedagogia do Deus libertador e a certeza de que o Senhor está vivo e atuante na história humana, a agir no coração de quantos lutam para fazer deste um mundo melhor.

É de anotar que, se a vocação de Moisés é iniciativa de Deus, a revelação do Deus que é acontece por graça de Deus, mas a pedido de Moisés, que desejava saber quais as credenciais que devia apresentar quer ao povo quer ao faraó. Com efeito, Moisés não podia operar a libertação sem a vontade do provo oprimido; e manda o bem senso que, antes de qualquer medida drástica a tomar se necessário, se entabulassem negociações com a autoridade política. E Deus é pronto na revelação do seu nome e claro nas indicações sobre as atitudes a tomar por Moisés, bem como nas resistências que este há de encontrar da parte do faraó.

Em todo o caso, Israel descobriu – e procurou dizer-no-lo – que para Deus não tem cabimento aquilo que oprime e destrói os homens; e, sempre que alguém luta para ser livre, Deus está e age. Na libertação do Egito, os israelitas – e, por osmose, toda a humanidade – descobriram a realidade do Deus salvador e libertador, o Deus connosco, visível e epifanicamente concretizado no Senhor Jesus Cristo.

***

O Papa Francisco, comentando o trecho evangélico que a liturgia propõe (Lc 13,1-9), levanta a questão do sentido da culpa tão presente no juízo comum sobre os maus acontecimentos.

À memória viva entre as pessoas do colapso duma torre de que resultaram 18 vítimas mortais, contrapõe-se o relato a Jesus dos galileus que Pilatos mandara matar fazendo derramar o seu sangue juntamente com o das vítimas que imolavam.  

E o Pontífice salienta a pergunta que parece acompanhar tal notícia. Da execução ordenada pelo governador romano parecia óbvio que a culpa estaria nos condenados. E, no colapso da torre, a culpa estaria em quem? Em Deus?

Talvez todas aquelas pessoas fossem mais culpadas que outras e Deus as tenha punido. Face a esta hipótese, Francisco observa:

Quando a notícia do crime nos oprime e nos sentimos impotentes diante do mal, muitas vezes nos perguntamos: será talvez um castigo de Deus? É Ele quem envia uma guerra ou uma pandemia para nos punir por nossos pecados? E porque não intervém o Senhor?”.

Sucede que, se o mal nos oprime, corremos o risco da perda da lucidez e tantas vezes encontramos a resposta fácil culpando a Deus. Daqui o mau hábito das blasfémias presente em muitas pessoas e povos. Porém, é injusto e blasfemo atribuirmos as nossas desgraças e as do mundo a Deus, quando Ele sempre nos deixa livres e, portanto, nunca intervém impondo-se, mas propondo-se. Ele nunca usa a violência e sofre por nós e connosco. E Jesus contesta fortemente a ideia de imputarmos os nossos males a Deus: as pessoas mortas por Pilatos e as que morreram sob a torre não eram mais culpadas que outras e não são vítimas dum crime impiedoso e vingativo. O mal nunca pode vir de Deus porque Ele “não nos trata de acordo com os nossos pecados” (Sl 103,10), mas segundo a sua misericórdia. É o seu estilo. Por outro lado, a asserção de Jesus não fecha a porta à responsabilidade culposa inerente às estruturas sociais, políticas e religiosas, à má conceção dos projetos, à má construção, ao erro de quem acusa, de quem julga e de quem condena.   

Todavia, o Papa reconhece que devemos olhar para dentro: é o pecado que produz a morte; é o nosso egoísmo que despedaça os relacionamentos; são as nossas escolhas erradas e violentas que desencadeiam o mal. 

Por isso, torna-se pertinente o aviso de Jesus e o seu apelo à conversão: “Se não vos converterdes (se não vos arrependerdes), todos perecereis do mesmo modo” (“all’ mê metavoêsête, pántes ôsaútôs apoleîsthe”:Lc 13,5). É um pertinente alerta e um convite urgente, sobretudo na Quaresma, que nos há de mobilizar para a renúncia ao pecado que nos seduz e nos há de abrir à lógica do Evangelho, pois, “onde reinam o amor e a fraternidade, o mal já não tem poder”.

Jesus, sabendo que a conversão não é fácil, quer ajudar-nos. Ele sabe que muitas vezes caímos nos mesmos erros e talvez nos pareça que o nosso compromisso com o bem seja inútil num mundo onde o mal parece reinar. A isto vem o encorajamento com a parábola da figueira e do seu tratador, que fala da paciência de Deus: devemos pensar na paciência de Deus, na paciência que Deus tem para connosco, espelhada na imagem consoladora da figueira que não dá frutos no período estabelecido, mas que não é cortada: é-lhe dado mais tempo, outra oportunidade. E diz o Papa que um belo nome de Deus seria “o Deus de outra possibilidade”, pois dá-nos sempre outra oportunidade. Assim é a sua misericórdia. Não nos separa de seu amor, não desanima, não se cansa de nos devolver a confiança com ternura.

Deus confia em nós: é bom que Nele confiemos, pois Ele merece porque está sempre connosco: em Portugal, em Moçambique, na Síria, na Rússia, na Ucrânia… sempre e em toda a parte!

2022.03.20 – Louro de Carvalho

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