No centro da marcha cristã somos intensamente chamados à
conversão. Tal como os hebreus foram libertados da escravidão do Egipto pela mediação
de Moisés, hebreu de sangue e egípcio por adoção infançã, agora Jesus, nestes
tempos que são os últimos, quer libertar o homem todo e todos os homens do
pecado do mundo, no que se incluem tanto os pecados pessoais como a raiz e as
estruturas (políticas,
sociais, económicas, financeiras, militares e religiosas) que incrementam e sustentam o mal e
os males.
A liturgia dominical apresenta-nos, da parte do Antigo
Testamento (Ex
3,1-8a.13-15), o Deus
que não suporta as injustiças e as arbitrariedades e que está sempre presente
naqueles que lutam pela libertação. É o Deus libertador que exige de nós uma luta
permanente contra tudo o que nos escraviza e que impede a manifestação da vida em
plenitude.
Na verdade, o livro do Êxodo, nos capítulos 1 a 18, refere um
conjunto de tradições atinentes à libertação do Egipto: narra a iniciativa de
Javé, que escutou os gemidos dos escravos hebreus e se compadeceu deles (cf Ex 2,23-24). E a perícopa em referência na
liturgia da III dominga da Quaresma foca a vocação de Moisés para face visível
da libertação que Javé quer empreender.
Moisés deixara o Egipto e encontrara abrigo no deserto do
Sinai, depois de ter morto um egípcio que maltratava um hebreu – o deserto era
o retiro usual dos opositores à política faraónica. Acolhido por uma tribo de
beduínos, casou e refez a sua vida em calma e tranquilidade após o incidente
que lhe arruinara os sonhos duma carreira no aparelho administrativo egípcio (cf Ex 2,11-22). E é nesse oásis de serenidade que
Javé Se revela, mobiliza Moisés e o envia em missão.
O enunciado “Javé tirou Israel do Egipto”, central na
perícopa em referência, será a primitiva profissão de fé de Israel e o facto
mobilizador da fé israelita.
O trecho em causa pode dividir-se em duas partes. A primeira (vv 1-8) relata a vocação de Moisés. O contexto é teofânico: o
“anjo do Senhor”, o fogo, a omnipotência, a santidade e a majestade de Deus, a
apresentação de Deus, o sentimento de temor que o homem experimenta ante o
divino; e Deus manifesta-Se para comprometer Moisés, enviando-o em missão e
fazendo dele o seu instrumento da libertação. A vocação de Moisés surge por
iniciativa do Deus libertador, determinado em salvar o seu Povo. Deus age na
história através de homens generosos e disponíveis para a aceitação dos seus
desafios. A segunda parte (vv
13-15) apresenta a
revelação do nome de Deus, um sinal de confirmação de que Moisés foi chamado
por Deus e enviado por Ele em missão: “Eu
sou aquele que sou”. Este nome não é uma tautologia, mas uma definição existencial
de Deus e a afirmação inequívoca da presença contínua de Deus na vida do seu
Povo, presença viva, ativa, dinâmica e perpétua – no presente e no futuro –
como libertação e salvação.
Deste modo, os israelitas descobriram que Javé esteve no
fulcro daquela tentativa humana de libertação e conduziu o processo de tal forma
que um povo vítima da opressão passasse a ser livre. Javé não ficou de braços
cruzados ante a opressão, mas iniciou um longo processo de intervenção na
história que se traduziu em libertação e vida para um povo antes condenado à
morte por fadiga e eliminação populacional.
O Êxodo fica para a posteridade como o modelo e paradigma de
todas as libertações. A partir dali, fica patente a pedagogia do Deus
libertador e a certeza de que o Senhor está vivo e atuante na história humana, a
agir no coração de quantos lutam para fazer deste um mundo melhor.
É de anotar que, se a vocação de Moisés é iniciativa de Deus,
a revelação do Deus que é acontece por graça de Deus, mas a pedido de Moisés,
que desejava saber quais as credenciais que devia apresentar quer ao povo quer
ao faraó. Com efeito, Moisés não podia operar a libertação sem a vontade do provo
oprimido; e manda o bem senso que, antes de qualquer medida drástica a tomar se
necessário, se entabulassem negociações com a autoridade política. E Deus é
pronto na revelação do seu nome e claro nas indicações sobre as atitudes a
tomar por Moisés, bem como nas resistências que este há de encontrar da parte
do faraó.
Em todo o caso, Israel descobriu – e procurou dizer-no-lo –
que para Deus não tem cabimento aquilo que oprime e destrói os homens; e,
sempre que alguém luta para ser livre, Deus está e age. Na libertação do Egito,
os israelitas – e, por osmose, toda a humanidade – descobriram a realidade do
Deus salvador e libertador, o Deus connosco, visível e epifanicamente concretizado
no Senhor Jesus Cristo.
***
O Papa Francisco,
comentando o trecho evangélico que a liturgia propõe (Lc 13,1-9), levanta a questão do sentido da
culpa tão presente no juízo comum sobre os maus acontecimentos.
À memória viva
entre as pessoas do colapso duma torre de que resultaram 18 vítimas mortais, contrapõe-se
o relato a Jesus dos galileus que Pilatos mandara matar fazendo derramar o seu sangue
juntamente com o das vítimas que imolavam.
E o Pontífice
salienta a pergunta que parece acompanhar tal notícia. Da execução ordenada
pelo governador romano parecia óbvio que a culpa estaria nos condenados. E, no
colapso da torre, a culpa estaria em quem? Em Deus?
Talvez todas
aquelas pessoas fossem mais culpadas que outras e Deus as tenha punido. Face
a esta hipótese, Francisco observa:
“Quando
a notícia do crime nos oprime e nos sentimos impotentes diante do mal, muitas
vezes nos perguntamos: será talvez um castigo de Deus? É Ele quem envia
uma guerra ou uma pandemia para nos punir por nossos pecados? E porque não
intervém o Senhor?”.
Sucede que, se o mal nos
oprime, corremos o risco da perda da lucidez e tantas vezes encontramos a
resposta fácil culpando a Deus. Daqui o mau hábito das blasfémias presente em
muitas pessoas e povos. Porém, é injusto e blasfemo atribuirmos as nossas
desgraças e as do mundo a Deus, quando Ele sempre nos deixa livres e, portanto,
nunca intervém impondo-se, mas propondo-se. Ele nunca usa a violência e sofre
por nós e connosco. E Jesus contesta fortemente a ideia de imputarmos os nossos
males a Deus: as pessoas mortas por Pilatos e as que morreram sob a torre não
eram mais culpadas que outras e não são vítimas dum crime impiedoso e
vingativo. O mal nunca pode vir de Deus porque Ele “não nos trata de acordo com
os nossos pecados” (Sl 103,10), mas segundo a sua misericórdia. É
o seu estilo. Por outro lado, a asserção de Jesus não fecha a porta à responsabilidade
culposa inerente às estruturas sociais, políticas e religiosas, à má conceção
dos projetos, à má construção, ao erro de quem acusa, de quem julga e de quem
condena.
Todavia, o
Papa reconhece que devemos olhar para dentro: é o pecado que produz a morte; é
o nosso egoísmo que despedaça os relacionamentos; são as nossas escolhas
erradas e violentas que desencadeiam o mal.
Por isso,
torna-se pertinente o aviso de Jesus e o seu apelo à conversão: “Se não vos converterdes
(se não vos arrependerdes), todos perecereis do mesmo modo” (“all’
mê metavoêsête, pántes ôsaútôs apoleîsthe”:Lc 13,5). É um pertinente alerta e um convite urgente, sobretudo na
Quaresma, que nos há de mobilizar para a renúncia ao pecado que nos seduz e nos
há de abrir à lógica do Evangelho, pois, “onde reinam o amor e a fraternidade,
o mal já não tem poder”.
Jesus, sabendo que a
conversão não é fácil, quer ajudar-nos. Ele sabe que muitas vezes caímos
nos mesmos erros e talvez nos pareça que o nosso compromisso com o bem seja
inútil num mundo onde o mal parece reinar. A isto vem o encorajamento com a
parábola da figueira e do seu tratador, que fala da paciência de Deus: devemos
pensar na paciência de Deus, na paciência que Deus tem para connosco, espelhada
na imagem consoladora da figueira que não dá frutos no período estabelecido,
mas que não é cortada: é-lhe dado mais tempo, outra oportunidade. E diz o
Papa que um belo nome de Deus seria “o Deus de outra possibilidade”, pois dá-nos
sempre outra oportunidade. Assim é a sua misericórdia. Não nos separa
de seu amor, não desanima, não se cansa de nos devolver a confiança com
ternura.
Deus confia
em nós: é bom que Nele confiemos, pois Ele merece porque está sempre connosco:
em Portugal, em Moçambique, na Síria, na Rússia, na Ucrânia… sempre e em toda a
parte!
2022.03.20 – Louro de Carvalho
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