De acordo
com nota da Sala de Imprensa da Santa Sé, o Papa recebeu, ao longo de duas
audiências sucessivas, na manhã deste dia 28 de março, na Biblioteca
Apostólica, no Vaticano, dois grupos de representantes dos povos indígenas
canadenses, cerca de 10 delegados dos Métis e cerca de 8 dos Inuit,
acompanhados por alguns bispos da Conferência Episcopal do Canadá, manifestando
o desejo de ouvir as histórias dos sobreviventes das ações violentas que
aniquilaram aqueles povos, e de lhes dar espaço para que elas sejam conhecidas,
refletidas e delas captemos as lições necessárias. Os ditos grupos permanecerão
em Roma até ao dia 1 de abril, numa atividade de narrativa, reflexão e
divulgação sob o lema “Juntos com Francisco por um percurso de verdade, justiça
e reconciliação”.
Segundo a predita
nota da Sala, “cada encontro durou cerca de uma hora e foi marcado pelo desejo
do Papa de ouvir e dar espaço às histórias dolorosas contadas pelos visitantes”,
continuando os encontros e a escuta nos próximos dias de acordo com as
informações atempadamente fornecidas.
Para entendimento
do contexto desta iniciativa, é preciso reportar-nos à recitação do Angelus de 6 de junho de 2020 em que
Francisco compartilhou com o mundo a consternação com as dramáticas notícias,
que chegaram algumas semanas antes, da descoberta no Canadá de uma vala comum
numa escola, a Escola Residencial Indígena Kamloops (Kamloops
Indian Residential School), com mais
de 200 restos humanos de nativos canadenses. Uma descoberta chocante, símbolo
de um passado de crueldade residencial no país, quando, de 1880 às últimas
décadas do século XX, em instituições financiadas pelo governo e administradas maioritariamente
por organizações cristãs, o objetivo era, através de abusos sistemáticos,
educar e converter os indígenas jovens e assimilá-los na sociedade canadense
tradicional.
Efetivamente, entre 1863 e 1998, mais de 150 mil
crianças indígenas foram tiradas às famílias e internadas nas escolas
residenciais onde não lhes permitiam falar a sua língua nativa ou realizar
quaisquer gestos caraterísticos da sua cultura. O internamento nestas
instituições que se propunham assimilar à força as crianças autóctones
tornou-se obrigatório na década de 1920, passando os pais a enfrentar a ameaça
de prisão caso não cumprissem tal obrigação. Estimativas de várias fontes
apontam que mais 6.000 crianças morreram durante o internamento forçado e um
número muito maior foi vítima de maus-tratos, abusos sexuais e outras
violências. No Canadá chegou a haver mais de 130 escolas residenciais
financiadas pelo Governo e administradas por autoridades religiosas, sendo a
Igreja Católica responsável por cerca de 70%.
Essa
descobertas levaram o episcopado canadense a fazer imediato “mea culpa” e a ativar uma série de
projetos de apoio às comunidades indígenas, num processo de reconciliação cujo
ápice agora é representado pela disponibilidade do Papa de receber as
comunidades no Vaticano, nestes dias 28 de março e 1 de abril, tendo em vista
uma futura viagem apostólica àquele país norte-americano, já anunciada, mas ainda
não confirmada.
Assim, em 1
de abril, o Pontífice receberá, na Sala Clementina, as várias delegações e a
Conferência Episcopal Canadense.
Como
referiram ao “Vatican News” Salvatore Cernuzio e Mariangela Jaguraba, nesta manhã, Francisco recebeu os membros do Conselho
Nacional Métis, num encontro repleto de palavras, histórias e recordações, mas
também de muitos gestos: do Papa e dos indígenas que se viram a percorrer o
caminho comum da “verdade, justiça, cura e reconciliação”. Obviamente que os
males do passado estão feitos e nada se resolve passando por cima deles a esponja
do esquecimento ou a da ocultação ou desvalorização, nem afiando as setas
contra os seus autores, a maioria dos quais já se encontram nos escaninhos da
eternidade. Nem se pode dizer que era a mentalidade epocal. Há efetivamente coisas
que são injustificáveis em qualquer tempo e lugar, muito menos se praticadas em
nome do cristianismo e da civilização ou de outros objetivos larvados pelos apregoados
valores cristãos e ou civilizacionais. É, pois, o reconhecimento dos erros, a
cura possível e a reconciliação com o passado e das pessoas e grupos entre si
que deve ditar a postura que devemos assumir nos dias de hoje, de modo que
erros deste jaez jamais se repitam.
Saindo da
Residência Apostólica ao som de dois violinos, símbolo da sua identidade e
cultura, os indígenas encontraram-se com a imprensa internacional do lado de
fora da Praça São Pedro para contar os detalhes do encontro com o Papa esta
manhã.
Cassidy
Caron, jovem presidente dos Métis, foi porta-voz, através da leitura de um
comunicado, do “número incalculável de pessoas que nos deixaram sem que a sua
verdade jamais tivesse sido ouvida e a sua dor reconhecida, sem nunca receber a
humanidade e o cuidado básico que mereciam”. Mais disse que o reconhecimento,
as desculpas, veio tudo muito atrasado, mas “nunca é tarde demais para fazer a
coisa certa”.
De facto, foi
iniciado pela Nação Métis um “trabalho difícil, mas essencial” de ouvir e
compreender as vítimas e as suas famílias. O que foi recolhido foi apresentado
a Francisco, que “se sentou e ouviu, acenou com a cabeça quando os nossos
sobreviventes contaram as suas histórias”. E o referido porta-voz confessou que
sentiu dor nas reações do Papa quando se tratava de crianças e disse que “os
sobreviventes fizeram um trabalho incrível ao contar as suas verdades, foram
muito corajosos…”. Mais revelou Caron que fizeram um trabalho difícil de
preparação para a viagem e encontro com o Papa: traduziram as palavras dos
autóctones com as que entenderia. A esperança é que o Pontífice e a Igreja no
mundo prossigam agora com um trabalho de “tradução” das palavras ouvidas “em
ações reais pela verdade”. Com efeito, quando convidaram o Papa Francisco para
se unir a eles, respondeu-lhes na língua que domina e repetiu “verdade,
justiça, cura e reconciliação”, o que eles tomaram como “um compromisso pessoal”.
Várias vezes
o presidente dos Métis repetiu a palavra “orgulho”:
“Estamos orgulhosos de estar aqui, junto com
os Inuit e as Primeiras Nações. Temos orgulho da nossa história e cultura.”.
Também
informou que apresentara um pedido de acesso a documentos mantidos no Vaticano
sobre as escolas residenciais:
“Continuamos e continuaremos apoiando tudo
aquilo de que a nação Métis precisa para entender a verdade plena. Falaremos
sobre os documentos com o Papa na audiência de sexta-feira.”.
Angie
Crerar, 85 anos, também estava presente no grupo na Praça de São Pedro. Cabelo
curto, óculos escuros, faixa multicolorida sobre um vestido preto, chegou em
cadeira de rodas, mas levantou-se a compartilhar trechos da sua história, a que
relatou ao Papa. Assim os mais de dez anos passados com as suas irmãzinhas
numa escola residencial nos territórios do Noroeste em 1947, onde perderam
tudo, “menos a língua”. Quando partiram, levou mais de 45 anos para recuperar o
que perdera. Angie, porém, diz não querer ser esmagada pelas lembranças do
passado, mas olha o presente e diz:
“Agora estamos mais fortes. Eles não nos
quebraram, ainda estamos aqui. Esperamos muito tempo, mas parece que todos
trabalharão connosco agora. Para mim é uma vitória, a vitória do nosso povo por
todos os anos perdidos.”.
Na audiência
deste dia 28 com Francisco, revelou que chegara ao Vaticano “muito nervosa”,
mas que encontrou “a pessoa mais dócil e gentil que já conheceu”. O Papa deu-lhe
um abraço que, segundo ela, apagou décadas de sofrimento:
“Eu estava ao lado dele. Tiveram que me
afastar (risos). Foi maravilhoso. Eu estava muito nervosa, mas depois que ele
falou comigo, mesmo que eu não entendesse tudo o que ele dizia, o seu sorriso, as
suas reações, a sua linguagem corporal, fizeram-me sentir esse homem amigo.”.
***
O “7 Margens”, a 27
de março, referia que parte das delegações das tribos
indígenas do Canadá chegou, nesse dia, a Roma onde iniciou, a 28, uma série
excecional 4 encontros com o Papa no âmbito do processo que culminará com o
pedido de perdão da Igreja pelos graves abusos cometidos nas escolas
residenciais que, nos séculos XIX e XX, participaram no processo de assimilação
forçada dos povos nativos.
Os
representantes das organizações índias e alguns descendentes de sobreviventes
das escolas residenciais são acompanhados por bispos canadianos nas audiências
que se prolongarão por toda esta semana, uma iniciativa prevista para dezembro
de 2021, mas adiada por causa da pandemia.
Francisco recebe mais de cem índios em 4
encontros à porta fechada, de uma hora cada, duração referida como “excecional”
no jornal “La Croix”. E terminarão
a 1 de abril num encontro geral do Papa com o conjunto das delegações na Sala
Clementina do Palácio Apostólico, no Vaticano.
Neste dia 28, o Papa teve, como se disse,
encontros com a delegação Métis e com a delegação Inuit e, no dia 31, será o
encontro com a delegação Primeiras Nações (tudo antes de 1 de abril).
“Penso
que o Papa vai pedir perdão” pelos crimes cometidos nas escolas residenciais e “assumir
o que ali aconteceu” disse ao jornal canadiano “La Presse” Mandy Gull-Masty, grande chefe do Grande Concelho
dos Cris du Québec, a única mulher da região do Quebeque (língua francesa) a integrar a delegação a
Roma e que não tem dúvidas de que Francisco pedirá perdão às Nações Índias na
sua viagem ao Canadá no final deste ano” para que “muitas pessoas o oiçam”.
***
Enfim, coisas que não podiam ter acontecido, mas que
lamentavelmente aconteceram!
2022.03.28
– Louro de Carvalho
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