segunda-feira, 28 de março de 2022

“Juntos com Francisco por um percurso de verdade, justiça e reconciliação”

 

De acordo com nota da Sala de Imprensa da Santa Sé, o Papa recebeu, ao longo de duas audiências sucessivas, na manhã deste dia 28 de março, na Biblioteca Apostólica, no Vaticano, dois grupos de representantes dos povos indígenas canadenses, cerca de 10 delegados dos Métis e cerca de 8 dos Inuit, acompanhados por alguns bispos da Conferência Episcopal do Canadá, manifestando o desejo de ouvir as histórias dos sobreviventes das ações violentas que aniquilaram aqueles povos, e de lhes dar espaço para que elas sejam conhecidas, refletidas e delas captemos as lições necessárias. Os ditos grupos permanecerão em Roma até ao dia 1 de abril, numa atividade de narrativa, reflexão e divulgação sob o lema “Juntos com Francisco por um percurso de verdade, justiça e reconciliação”.

Segundo a predita nota da Sala, “cada encontro durou cerca de uma hora e foi marcado pelo desejo do Papa de ouvir e dar espaço às histórias dolorosas contadas pelos visitantes”, continuando os encontros e a escuta nos próximos dias de acordo com as informações atempadamente fornecidas.

Para entendimento do contexto desta iniciativa, é preciso reportar-nos à recitação do Angelus de 6 de junho de 2020 em que Francisco compartilhou com o mundo a consternação com as dramáticas notícias, que chegaram algumas semanas antes, da descoberta no Canadá de uma vala comum numa escola, a Escola Residencial Indígena Kamloops (Kamloops Indian Residential School), com mais de 200 restos humanos de nativos canadenses. Uma descoberta chocante, símbolo de um passado de crueldade residencial no país, quando, de 1880 às últimas décadas do século XX, em instituições financiadas pelo governo e administradas maioritariamente por organizações cristãs, o objetivo era, através de abusos sistemáticos, educar e converter os indígenas jovens e assimilá-los na sociedade canadense tradicional.

Efetivamente, entre 1863 e 1998, mais de 150 mil crianças indígenas foram tiradas às famílias e internadas nas escolas residenciais onde não lhes permitiam falar a sua língua nativa ou realizar quaisquer gestos caraterísticos da sua cultura. O internamento nestas instituições que se propunham assimilar à força as crianças autóctones tornou-se obrigatório na década de 1920, passando os pais a enfrentar a ameaça de prisão caso não cumprissem tal obrigação. Estimativas de várias fontes apontam que mais 6.000 crianças morreram durante o internamento forçado e um número muito maior foi vítima de maus-tratos, abusos sexuais e outras violências. No Canadá chegou a haver mais de 130 escolas residenciais financiadas pelo Governo e administradas por autoridades religiosas, sendo a Igreja Católica responsável por cerca de 70%.

Essa descobertas levaram o episcopado canadense a fazer imediato “mea culpa” e a ativar uma série de projetos de apoio às comunidades indígenas, num processo de reconciliação cujo ápice agora é representado pela disponibilidade do Papa de receber as comunidades no Vaticano, nestes dias 28 de março e 1 de abril, tendo em vista uma futura viagem apostólica àquele país norte-americano, já anunciada, mas ainda não confirmada.

Assim, em 1 de abril, o Pontífice receberá, na Sala Clementina, as várias delegações e a Conferência Episcopal Canadense.

Como referiram ao “Vatican NewsSalvatore Cernuzio e Mariangela Jaguraba, nesta manhã, Francisco recebeu os membros do Conselho Nacional Métis, num encontro repleto de palavras, histórias e recordações, mas também de muitos gestos: do Papa e dos indígenas que se viram a percorrer o caminho comum da “verdade, justiça, cura e reconciliação”. Obviamente que os males do passado estão feitos e nada se resolve passando por cima deles a esponja do esquecimento ou a da ocultação ou desvalorização, nem afiando as setas contra os seus autores, a maioria dos quais já se encontram nos escaninhos da eternidade. Nem se pode dizer que era a mentalidade epocal. Há efetivamente coisas que são injustificáveis em qualquer tempo e lugar, muito menos se praticadas em nome do cristianismo e da civilização ou de outros objetivos larvados pelos apregoados valores cristãos e ou civilizacionais. É, pois, o reconhecimento dos erros, a cura possível e a reconciliação com o passado e das pessoas e grupos entre si que deve ditar a postura que devemos assumir nos dias de hoje, de modo que erros deste jaez jamais se repitam.   

Saindo da Residência Apostólica ao som de dois violinos, símbolo da sua identidade e cultura, os indígenas encontraram-se com a imprensa internacional do lado de fora da Praça São Pedro para contar os detalhes do encontro com o Papa esta manhã.

Cassidy Caron, jovem presidente dos Métis, foi porta-voz, através da leitura de um comunicado, do “número incalculável de pessoas que nos deixaram sem que a sua verdade jamais tivesse sido ouvida e a sua dor reconhecida, sem nunca receber a humanidade e o cuidado básico que mereciam”. Mais disse que o reconhecimento, as desculpas, veio tudo muito atrasado, mas “nunca é tarde demais para fazer a coisa certa”.

De facto, foi iniciado pela Nação Métis um “trabalho difícil, mas essencial” de ouvir e compreender as vítimas e as suas famílias. O que foi recolhido foi apresentado a Francisco, que “se sentou e ouviu, acenou com a cabeça quando os nossos sobreviventes contaram as suas histórias”. E o referido porta-voz confessou que sentiu dor nas reações do Papa quando se tratava de crianças e disse que “os sobreviventes fizeram um trabalho incrível ao contar as suas verdades, foram muito corajosos…”. Mais revelou Caron que fizeram um trabalho difícil de preparação para a viagem e encontro com o Papa: traduziram as palavras dos autóctones com as que entenderia. A esperança é que o Pontífice e a Igreja no mundo prossigam agora com um trabalho de “tradução” das palavras ouvidas “em ações reais pela verdade”. Com efeito, quando convidaram o Papa Francisco para se unir a eles, respondeu-lhes na língua que domina e repetiu “verdade, justiça, cura e reconciliação”, o que eles tomaram como “um compromisso pessoal”.

Várias vezes o presidente dos Métis repetiu a palavra “orgulho”:

Estamos orgulhosos de estar aqui, junto com os Inuit e as Primeiras Nações. Temos orgulho da nossa história e cultura.”.

Também informou que apresentara um pedido de acesso a documentos mantidos no Vaticano sobre as escolas residenciais:

Continuamos e continuaremos apoiando tudo aquilo de que a nação Métis precisa para entender a verdade plena. Falaremos sobre os documentos com o Papa na audiência de sexta-feira.”.

Angie Crerar, 85 anos, também estava presente no grupo na Praça de São Pedro. Cabelo curto, óculos escuros, faixa multicolorida sobre um vestido preto, chegou em cadeira de rodas, mas levantou-se a compartilhar trechos da sua história, a que relatou ao Papa. Assim os mais de dez anos passados ​​com as suas irmãzinhas numa escola residencial nos territórios do Noroeste em 1947, onde perderam tudo, “menos a língua”. Quando partiram, levou mais de 45 anos para recuperar o que perdera. Angie, porém, diz não querer ser esmagada pelas lembranças do passado, mas olha o presente e diz:

Agora estamos mais fortes. Eles não nos quebraram, ainda estamos aqui. Esperamos muito tempo, mas parece que todos trabalharão connosco agora. Para mim é uma vitória, a vitória do nosso povo por todos os anos perdidos.”.

Na audiência deste dia 28 com Francisco, revelou que chegara ao Vaticano “muito nervosa”, mas que encontrou “a pessoa mais dócil e gentil que já conheceu”. O Papa deu-lhe um abraço que, segundo ela, apagou décadas de sofrimento:

Eu estava ao lado dele. Tiveram que me afastar (risos). Foi maravilhoso. Eu estava muito nervosa, mas depois que ele falou comigo, mesmo que eu não entendesse tudo o que ele dizia, o seu sorriso, as suas reações, a sua linguagem corporal, fizeram-me sentir esse homem amigo.”.

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O “7 Margens”, a 27 de março, referia que parte das delegações das tribos indígenas do Canadá chegou, nesse dia, a Roma onde iniciou, a 28, uma série excecional 4 encontros com o Papa no âmbito do processo que culminará com o pedido de perdão da Igreja pelos graves abusos cometidos nas escolas residenciais que, nos séculos XIX e XX, participaram no processo de assimilação forçada dos povos nativos.

Os representantes das organizações índias e alguns descendentes de sobreviventes das escolas residenciais são acompanhados por bispos canadianos nas audiências que se prolongarão por toda esta semana, uma iniciativa prevista para dezembro de 2021, mas adiada por causa da pandemia.

Francisco recebe mais de cem índios em 4 encontros à porta fechada, de uma hora cada, duração referida como “excecional” no jornal “La Croix”. E terminarão a 1 de abril num encontro geral do Papa com o conjunto das delegações na Sala Clementina do Palácio Apostólico, no Vaticano.

Neste dia 28, o Papa teve, como se disse, encontros com a delegação Métis e com a delegação Inuit e, no dia 31, será o encontro com a delegação Primeiras Nações (tudo antes de 1 de abril).

“Penso que o Papa vai pedir perdão” pelos crimes cometidos nas escolas residenciais e “assumir o que ali aconteceu” disse ao jornal canadiano “La Presse” Mandy Gull-Masty, grande chefe do Grande Concelho dos Cris du Québec, a única mulher da região do Quebeque (língua francesa) a integrar a delegação a Roma e que não tem dúvidas de que Francisco pedirá perdão às Nações Índias na sua viagem ao Canadá no final deste ano” para que “muitas pessoas o oiçam”.

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Enfim, coisas que não podiam ter acontecido, mas que lamentavelmente aconteceram!

2022.03.28 – Louro de Carvalho

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