A 14 de março, o Vaticano respondeu, através do editorial do jornal
da Santa Sé, “L’Osservatore Romano”, a
críticas de setores católicos a questionar o Papa por condenar a guerra na
Ucrânia sem referência explícita a Putin e à Rússia, “como se as palavras do
pastor da Igreja universal tivessem de refletir os ditames de um programa
noticioso de TV”.
Porque Francisco não fez como alguns queriam, a sua voz não
recebeu grande atenção, pois os seus apelos não correspondiam ao cliché
desejado de pontífice ‘capelão’ do Ocidente, pronto para alistar Deus e
abençoar a guerra em seu nome”.
Em 2006, por decisão de Bento XVI, o Papa deixou de usar o título
de “Patriarca do Ocidente”, não fosse alguém fazer dele uma figura
instrumentalizada como foi o Patriarca de Lisboa ao ser criado para gáudio e
capelão do Rei Magnânimo Dom João V, “o Fidelíssimo”.
O predito jornal cita as
várias intervenções de Francisco, desde o início da invasão russa, a 24 de
fevereiro, que o Papa considerou, no dia 13 de março, como “agressão armada
inaceitável”. Mais sublinha que Francisco foi pessoalmente à Embaixada da
Federação Russa junto da Santa Sé, para apresentar “a sua preocupação com a
guerra”, e no Angelus de 6 de março rejeitou a
“hipocrisia do Governo russo”, descartando que estivesse em causa apenas uma
“operação militar especial”.
O susodito editorial realça que, na história recente,
“os pontífices nunca chamaram o agressor pelo nome, não por covardia ou excesso
de prudência diplomática, mas para não fechar a porta, para deixar aberta uma
fresta à possibilidade de deter o mal e salvar vidas humanas”. E adianta:
“Se ele puder fazer algo a nível político e diplomático, será possível
precisamente porque os líderes russos sabem que ele não é um mediador
tendencioso, um agente camuflado do Ocidente, com o qual entraram numa rota de
colisão apocalíptica”.
Como vinca o texto, o Papa
“está sempre com os inocentes que sofrem como Jesus sofreu na cruz” e “cada
palavra que diz, cada tentativa que faz, tem como objetivo salvar vidas
humanas, não ceder à lógica do mal, combater o mal com o bem”.
Por fim, o editorialista sublinha o que já estamos a
esquecer, ou seja, que “no coração da Europa, nesta guerra suja que sentimos
estar tão perto de nós, assim como nas periferias do mundo, onde nos últimos
anos foram travadas guerras esquecidas e ainda estão a ser travadas,
com a sua contagem diária de mortos, feridos e deslocados”, temos a gora a
guerra na Ucrânia.
***
O que disse o Papa a 13 de março?
À recitação
do Angelus no 9.º aniversário da eleição
como Bispo de Roma, pronunciou palavras inequívocas sobre o “assassinato bárbaro
de crianças, de inocentes” em curso, apelando ao fim do “massacre” e do que chamou
de “agressão armada inaceitável” contra a Ucrânia. E disse que apoiar a
violência por motivos religiosos é profanar o nome de Deus, “o único Deus de
paz”.
Já antes do
início da invasão pelo exército russo, Francisco vincara, no Angelus de 20 de fevereiro, “como é
triste quando pessoas e povos que se orgulham de ser cristãos veem os outros
como inimigos e pensam em fazer guerra uns contra os outros”. Assim, pediu que
a Quarta-feira de Cinzas, início do caminho quaresmal, fosse dedicada ao jejum
e à oração pela paz. No dia seguinte ao início do conflito, após os primeiros
bombardeios na Ucrânia, foi pessoalmente à Embaixada da Federação Russa junto à
Santa Sé, para apresentar ao representante do Kremlin toda a sua preocupação
com a guerra, pedindo que se seguisse o caminho da negociação e se poupassem os
civis. No Angelus de 6 de março, excluiu
toda a hipocrisia do governo russo, que insiste em chamar a guerra em curso de “operação
militar especial”, mascarando atrás de jogos de palavras a sua verdadeira e
crua realidade, a duma guerra de agressão.
Para tornar
concreta a sua proximidade com as vítimas e os milhões de desalojados que fogem
da guerra, enviou dois cardeais a levar ajuda e apoio aos refugiados e a quem
generosamente os acolhe. Ao mesmo tempo, o Secretário de Estado Pietro Parolin
expressou repetidamente a disposição da Santa Sé de ajudar de qualquer forma
possível em qualquer forma de mediação e pediu ao Ministro das Relações
Exteriores russo Sergey Lavrov para cessar os ataques e garantir verdadeiros
corredores humanitários. A diplomacia do Vaticano continua a repetir que nunca
é tarde para iniciar negociações reais, nem para o cessar-fogo numa guerra com
consequências incalculáveis e incalculadas que corre o risco de levar a uma
terrível escalada bélica.
Só porque
não referiu os nomes de Putin e da Rússia, há quem tenha acusado o Papa de “silêncio”,
esquecendo que, quando as guerras começaram, os pontífices nunca chamaram o
agressor pelo nome. Também São João Paulo II, nascido numa nação martirizada
como a Polónia, vítima do nazismo e do comunismo, quando ocorreu a guerra no
Kosovo em 1999, nunca mencionou o nome dos autores da limpeza étnica, mantendo
sempre aberto um canal de contacto com a Sérvia. A Santa Sé acreditava que
deveriam ser feitos esforços para pôr um fim aos massacres contra a população
albanesa, embora lamentasse a dor e os ferimentos causados pelo recurso maciço
aos bombardeios da NATO. João Paulo II não mencionou os nomes dos chefes
de Estado ocidentais que queriam entrar em guerra com o Iraque em 2003 com base
em informações falsas sobre armas de destruição em massa. Tentou impedir os
ataques, a limpeza étnica e as guerras, incentivar a abertura de corredores
humanitários e garantir que tudo fosse feito para evitar o recurso a armas.
Isto não significa colocar os agressores e os agredidos no mesmo nível.
É paradoxal
que esqueçamos estas páginas da história recente, querendo indicar ao Bispo de
Roma as palavras certas a usar, após anos de desconsideração das palavras que
ele realmente proferiu inúmeras vezes, advertindo contra a corrida ao
rearmamento nuclear, o tráfico de armas, a guerra e o terrorismo, a economia
que descarta e mata e a destruição da criação.
A voz do
Papa é voz que grita no deserto. Nos 9 anos de pontificado, Francisco falou
muitas vezes sobre a III Guerra Mundial, que já está em curso, mesmo que “aos
pedaços”. Muitas vezes trovejou contra os traficantes de armas, a corrida
armamentista e a guerra. A guerra “destrói”, disse o Santo Padre em setembro de
2014 no santuário militar de Redipuglia no centenário do início da I Guerra
Mundial, “destrói também o que Deus criou de mais belo: o ser humano”. Distorce
tudo, até mesmo a ligação entre irmãos. É “uma loucura, o seu plano de
desenvolvimento é a destruição” e é o paradoxo de querer desenvolver através da
destruição. Nesta profecia, inaudita para os grandes, mas recebida por tantas
pessoas em todo o mundo, Francisco segue os passos dos antecessores do século
passado, que como ele tiveram que enfrentar guerras mundiais, guerras em
diferentes partes do planeta, violência e terrorismo.
Agora, que
as pessoas estão a ser mortas vítimas da guerra, pode o Papa rezar e fazer
rezar “implorando o milagre de encurtar a dor dos pobres, de acabar com o
massacre”, e poderá fazer algo no nível político e diplomático, pois os líderes
russos sabem que não é mediador tendencioso, agente camuflado do Ocidente, com
o qual entraram em rota de colisão apocalíptica. O Sucessor de Pedro não tem o
problema de dar a conhecer de que lado está, porque o Vigário de Cristo, como o
seu Senhor, está sempre com os inocentes que sofrem como Jesus sofreu na cruz.
E todos os
apelos deste âmbito a que possa emprestar a sua voz são urgentes, pois, como lembrou
o jornalista Michele Serra, cerca de cinquenta bombas atómicas são suficientes
para destruir o mundo, mas no mundo não existem cinquenta bombas atómicas:
existem quinze mil.
***
Que diríamos
duma Cruz Vermelha, Crescente Vermelho ou Médicos sem Fronteiras que apenas tratassem
dos feridos de guerra dum só lado da beligerância? Também as Igrejas e os
crentes devem rezar pela paz abrangendo todas as partes. Embora sejam legítimas
solidariedades políticas por um dos lados, tal não dispensa do lamento e da oração
por todos os mortos e feridos de todos os lados, bem como por todos os soldados
que são obrigados pelas chefias ao combate, por todos os civis e crianças
mortos, feridos, deslocados ou refugiados e pelos povos a quem os decisores
políticos impõem o esforço de guerra de múltiplos modos.
Recordo-me
de que em setembro de 1973, na tarde da véspera do meu regresso de Estrasburgo
a Portugal, depois da visita que fiz à Catedral, passei numa das pontes sobre
um dos canais do Reno. Do grupo de argelinos que ali estava a conversar destacou-se
um que me pediu um franco. E eu, sem pestanejar e sorridente, peguei num franco
e dei-lho. Agradeceu, mas perguntou de que país eu era. Quando lhe respondi que
era de Portugal, reagiu dizendo: “Não
quero o teu franco, porque és dum país que está em guerra por causa de Caetano
e vou rezar a Alá que livre da guerra o teu país e as colónias, pois a guerra é
o mal pior que existe no mundo”.
Foi para mim
uma boa lição: rezar por quem está em guerra independentemente de quem a tenha
provocado. Os povos não decidem a guerra, mas os chefes, e quem se manifestar
contra pode sofrer represálias. Hoje os generais não morrem em batalha, mas
morrem muitos militares, muitos civis e muitas crianças. E as mortes de civis e
crianças não podem ser reduzidas a meros danos colaterais. Nem esta guerra pode
obnubilar as outras. Os ucranianos são nossos irmãos, mas também o são os sírios,
os afegãos, os africanos e tantos outros.
E nada
resolvem as sanções, a proibição de atletas e clubes adversos participarem em competições
desportivas ou de canais televisivos emitirem a partir do Ocidente. Na guerra
não vale tudo!
2022.03.15 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário