terça-feira, 15 de março de 2022

Em guerra a oração deve ser por todos os povos beligerantes

 

A 14 de março, o Vaticano respondeu, através do editorial do jornal da Santa Sé, “L’Osservatore Romano”, a críticas de setores católicos a questionar o Papa por condenar a guerra na Ucrânia sem referência explícita a Putin e à Rússia, “como se as palavras do pastor da Igreja universal tivessem de refletir os ditames de um programa noticioso de TV”.

Porque Francisco não fez como alguns queriam, a sua voz não recebeu grande atenção, pois os seus apelos não correspondiam ao cliché desejado de pontífice ‘capelão’ do Ocidente, pronto para alistar Deus e abençoar a guerra em seu nome”.

Em 2006, por decisão de Bento XVI, o Papa deixou de usar o título de “Patriarca do Ocidente”, não fosse alguém fazer dele uma figura instrumentalizada como foi o Patriarca de Lisboa ao ser criado para gáudio e capelão do Rei Magnânimo Dom João V, “o Fidelíssimo”.  

O predito jornal cita as várias intervenções de Francisco, desde o início da invasão russa, a 24 de fevereiro, que o Papa considerou, no dia 13 de março, como “agressão armada inaceitável”. Mais sublinha que Francisco foi pessoalmente à Embaixada da Federação Russa junto da Santa Sé, para apresentar “a sua preocupação com a guerra”, e no Angelus de 6 de março rejeitou a “hipocrisia do Governo russo”, descartando que estivesse em causa apenas uma “operação militar especial”.

O susodito editorial realça que, na história recente, “os pontífices nunca chamaram o agressor pelo nome, não por covardia ou excesso de prudência diplomática, mas para não fechar a porta, para deixar aberta uma fresta à possibilidade de deter o mal e salvar vidas humanas”. E adianta:

Se ele puder fazer algo a nível político e diplomático, será possível precisamente porque os líderes russos sabem que ele não é um mediador tendencioso, um agente camuflado do Ocidente, com o qual entraram numa rota de colisão apocalíptica”.

Como vinca o texto, o Papa “está sempre com os inocentes que sofrem como Jesus sofreu na cruz” e “cada palavra que diz, cada tentativa que faz, tem como objetivo salvar vidas humanas, não ceder à lógica do mal, combater o mal com o bem”.

Por fim, o editorialista sublinha o que já estamos a esquecer, ou seja, que “no coração da Europa, nesta guerra suja que sentimos estar tão perto de nós, assim como nas periferias do mundo, onde nos últimos anos foram travadas guerras esquecidas e ainda estão a ser travadas, com a sua contagem diária de mortos, feridos e deslocados”, temos a gora a guerra na Ucrânia.

***

O que disse o Papa a 13 de março?

À recitação do Angelus no 9.º aniversário da eleição como Bispo de Roma, pronunciou palavras inequívocas sobre o “assassinato bárbaro de crianças, de inocentes” em curso, apelando ao fim do “massacre” e do que chamou de “agressão armada inaceitável” contra a Ucrânia. E disse que apoiar a violência por motivos religiosos é profanar o nome de Deus, “o único Deus de paz”.

Já antes do início da invasão pelo exército russo, Francisco vincara, no Angelus de 20 de fevereiro, “como é triste quando pessoas e povos que se orgulham de ser cristãos veem os outros como inimigos e pensam em fazer guerra uns contra os outros”. Assim, pediu que a Quarta-feira de Cinzas, início do caminho quaresmal, fosse dedicada ao jejum e à oração pela paz. No dia seguinte ao início do conflito, após os primeiros bombardeios na Ucrânia, foi pessoalmente à Embaixada da Federação Russa junto à Santa Sé, para apresentar ao representante do Kremlin toda a sua preocupação com a guerra, pedindo que se seguisse o caminho da negociação e se poupassem os civis. No Angelus de 6 de março, excluiu toda a hipocrisia do governo russo, que insiste em chamar a guerra em curso de “operação militar especial”, mascarando atrás de jogos de palavras a sua verdadeira e crua realidade, a duma guerra de agressão.

Para tornar concreta a sua proximidade com as vítimas e os milhões de desalojados que fogem da guerra, enviou dois cardeais a levar ajuda e apoio aos refugiados e a quem generosamente os acolhe. Ao mesmo tempo, o Secretário de Estado Pietro Parolin expressou repetidamente a disposição da Santa Sé de ajudar de qualquer forma possível em qualquer forma de mediação e pediu ao Ministro das Relações Exteriores russo Sergey Lavrov para cessar os ataques e garantir verdadeiros corredores humanitários. A diplomacia do Vaticano continua a repetir que nunca é tarde para iniciar negociações reais, nem para o cessar-fogo numa guerra com consequências incalculáveis e incalculadas que corre o risco de levar a uma terrível escalada bélica.

Só porque não referiu os nomes de Putin e da Rússia, há quem tenha acusado o Papa de “silêncio”, esquecendo que, quando as guerras começaram, os pontífices nunca chamaram o agressor pelo nome. Também São João Paulo II, nascido numa nação martirizada como a Polónia, vítima do nazismo e do comunismo, quando ocorreu a guerra no Kosovo em 1999, nunca mencionou o nome dos autores da limpeza étnica, mantendo sempre aberto um canal de contacto com a Sérvia. A Santa Sé acreditava que deveriam ser feitos esforços para pôr um fim aos massacres contra a população albanesa, embora lamentasse a dor e os ferimentos causados pelo recurso maciço aos bombardeios da NATO. João Paulo II não mencionou os nomes dos chefes de Estado ocidentais que queriam entrar em guerra com o Iraque em 2003 com base em informações falsas sobre armas de destruição em massa. Tentou impedir os ataques, a limpeza étnica e as guerras, incentivar a abertura de corredores humanitários e garantir que tudo fosse feito para evitar o recurso a armas. Isto não significa colocar os agressores e os agredidos no mesmo nível.

É paradoxal que esqueçamos estas páginas da história recente, querendo indicar ao Bispo de Roma as palavras certas a usar, após anos de desconsideração das palavras que ele realmente proferiu inúmeras vezes, advertindo contra a corrida ao rearmamento nuclear, o tráfico de armas, a guerra e o terrorismo, a economia que descarta e mata e a destruição da criação.

A voz do Papa é voz que grita no deserto. Nos 9 anos de pontificado, Francisco falou muitas vezes sobre a III Guerra Mundial, que já está em curso, mesmo que “aos pedaços”. Muitas vezes trovejou contra os traficantes de armas, a corrida armamentista e a guerra. A guerra “destrói”, disse o Santo Padre em setembro de 2014 no santuário militar de Redipuglia no centenário do início da I Guerra Mundial, “destrói também o que Deus criou de mais belo: o ser humano”. Distorce tudo, até mesmo a ligação entre irmãos. É “uma loucura, o seu plano de desenvolvimento é a destruição” e é o paradoxo de querer desenvolver através da destruição. Nesta profecia, inaudita para os grandes, mas recebida por tantas pessoas em todo o mundo, Francisco segue os passos dos antecessores do século passado, que como ele tiveram que enfrentar guerras mundiais, guerras em diferentes partes do planeta, violência e terrorismo.

Agora, que as pessoas estão a ser mortas vítimas da guerra, pode o Papa rezar e fazer rezar “implorando o milagre de encurtar a dor dos pobres, de acabar com o massacre”, e poderá fazer algo no nível político e diplomático, pois os líderes russos sabem que não é mediador tendencioso, agente camuflado do Ocidente, com o qual entraram em rota de colisão apocalíptica. O Sucessor de Pedro não tem o problema de dar a conhecer de que lado está, porque o Vigário de Cristo, como o seu Senhor, está sempre com os inocentes que sofrem como Jesus sofreu na cruz.

E todos os apelos deste âmbito a que possa emprestar a sua voz são urgentes, pois, como lembrou o jornalista Michele Serra, cerca de cinquenta bombas atómicas são suficientes para destruir o mundo, mas no mundo não existem cinquenta bombas atómicas: existem quinze mil.

***

Que diríamos duma Cruz Vermelha, Crescente Vermelho ou Médicos sem Fronteiras que apenas tratassem dos feridos de guerra dum só lado da beligerância? Também as Igrejas e os crentes devem rezar pela paz abrangendo todas as partes. Embora sejam legítimas solidariedades políticas por um dos lados, tal não dispensa do lamento e da oração por todos os mortos e feridos de todos os lados, bem como por todos os soldados que são obrigados pelas chefias ao combate, por todos os civis e crianças mortos, feridos, deslocados ou refugiados e pelos povos a quem os decisores políticos impõem o esforço de guerra de múltiplos modos.

Recordo-me de que em setembro de 1973, na tarde da véspera do meu regresso de Estrasburgo a Portugal, depois da visita que fiz à Catedral, passei numa das pontes sobre um dos canais do Reno. Do grupo de argelinos que ali estava a conversar destacou-se um que me pediu um franco. E eu, sem pestanejar e sorridente, peguei num franco e dei-lho. Agradeceu, mas perguntou de que país eu era. Quando lhe respondi que era de Portugal, reagiu dizendo: “Não quero o teu franco, porque és dum país que está em guerra por causa de Caetano e vou rezar a Alá que livre da guerra o teu país e as colónias, pois a guerra é o mal pior que existe no mundo”.   

Foi para mim uma boa lição: rezar por quem está em guerra independentemente de quem a tenha provocado. Os povos não decidem a guerra, mas os chefes, e quem se manifestar contra pode sofrer represálias. Hoje os generais não morrem em batalha, mas morrem muitos militares, muitos civis e muitas crianças. E as mortes de civis e crianças não podem ser reduzidas a meros danos colaterais. Nem esta guerra pode obnubilar as outras. Os ucranianos são nossos irmãos, mas também o são os sírios, os afegãos, os africanos e tantos outros.

E nada resolvem as sanções, a proibição de atletas e clubes adversos participarem em competições desportivas ou de canais televisivos emitirem a partir do Ocidente. Na guerra não vale tudo!

2022.03.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário