É conhecida a posição do Conselho Mundial de
Igrejas (CMI) de condenação da guerra lamentando a ingente vaga de deslocados, a
mortandade de civis e crianças, enfim toda a onda de destruição generalizada com
as consequências que daí advirão. E, porque aos cristãos cabe sintonizar
ativamente com o Príncipe da Paz, o CMI solicitou ao Patriarca de Moscovo e de
todas as Rússias que lançasse forte apelo aos decisores políticos russos no
sentido de pararem a guerra. Solicitação idêntica lhe fez o cardeal presidente
da Comece (Comissão dos
Episcopados Católicos da União Europeia) – ontem a Comece fez novo
pronunciamento –, e o Cardeal Secretário de Estado da Santa Sé.
Em resposta, o Patriarca Kirill explicou a razão
por que o Patriarcado aderira ao CMI em termos da tarefa comum da promoção da
paz e do bem comum, mas salvaguardando a linha da não interferência na ação
política dos povos. E, alinhado com o discurso de Putin, afirma a unidade
originária de toda a nação russa e a sua comum religião, bem como nas críticas
que faz às posições políticas, estratégicas e económicas do Ocidente. Mais
acusa o Patriarca de Constantinopla de ter criado um cisma na Igreja Ortodoxa
Russa ao promulgar o decreto da autocefalia da Igreja Ortodoxa Ucraniana.
Já a 2 de março 233
clérigos (padres e diáconos) da Igreja Ortodoxa Russa se demarcaram de Kirill
sobre a invasão da Ucrânia, sustentando, em carta aberta, que a guerra desencadeada pela Rússia na Ucrânia é
“fratricida”, pelo que “é urgente a reconciliação e um cessar-fogo imediato”.
Lamentam a provação a que os irmãos e irmãs na Ucrânia “foram imerecidamente
submetidos” e manifestam o desejo de que todos os soldados, “russos e
ucranianos”, “voltem ilesos” para as suas casas e famílias. Entristece-os pensar
no abismo que os seus filhos e netos na Rússia e na Ucrânia “terão que
preencher para começarem a ser amigos, a respeitar-se e a estimar-se
novamente”. Entendem que o povo ucraniano é que deve ser o arquiteto das suas
próprias escolhas, de forma livre, e “não sob a mira de metralhadoras e sem
pressão do Ocidente ou do Oriente”. E lembram ao poder em Moscovo, que “nenhum
apelo não violento pela paz e pelo fim da guerra deve ser combatido pela força
e considerado uma violação da lei, porque este é o mandamento divino: bem-aventurados os pacificadores”. Por
isso apelam ao diálogo, convictos de que “só a capacidade de ouvir o outro pode
dar a esperança de uma saída do abismo em que os nossos países foram lançados
em poucos dias”.
Esta é uma inequívoca demarcação da posição de apoio e legitimação do discurso
do patriarca de 27 de fevereiro, dizendo que “não devemos deixar que forças
externas sombrias e hostis se riam de nós, devemos fazer tudo para manter a paz
entre os nossos povos e, ao mesmo tempo, proteger a nossa pátria histórica
comum de todas as ações externas que possam destruir essa unidade”.
A Igreja Ortodoxa Ucraniana, que se reconhece no Patriarcado de Moscovo, já
lançou um apelo ao seu responsável máximo para que se manifeste contra a guerra
e fale com o presidente Vladimir Putin. “Pedimos-lhe – diz o apelo a
Kirill, lançado pelos sites ortodoxos – para intensificar as suas orações pelo
sofrido povo ucraniano, para dizer uma primeira palavra sobre a cessação do
derramamento de sangue pelo fratricídio em solo ucraniano e pedir à liderança
da Federação Russa que pare imediatamente as hostilidades que ameaçam transformar-se
numa guerra”.
A 18 de março, em carta aberta “a todos os irmãos
e irmãs de todo o mundo”, divulgada no
site da Aliança Evangélica Mundial, o líder da Aliança Evangélica Russa, Vitaly
Vlasenko, pede
desculpa a ucranianos, lamentando as decisões tomadas pelos líderes do país.
Diz textualmente:
“Peço perdão a
todos aqueles que têm sofrido, perdido entes queridos e familiares, ou perdido
a sua casa em consequência deste conflito militar”.
Vlasenko, que é pastor duma igreja batista em Moscovo, garante que fez
“tudo o que podia para evitar a guerra”. Escreveu uma carta aberta ao
presidente Putin um dia antes da invasão, na qual apoiou o pedido dos líderes
religiosos da Ucrânia para a solução pacífica de todos os conflitos”. Mais: a Aliança
Evangélica Russa foi uma das instituições presentes numa oração pública pela
reconciliação de todas as partes e tem prestado assistência a refugiados
ucranianos, exemplifica o líder religioso russo. Com efeito, para Vitaly
Vlasenko, como para muitos outros cristãos, a invasão militar foi um choque.
Nem no pior dos cenários imaginava o que agora se vê na Ucrânia.
Vlasenko junta-se assim ao crescente movimento de cidadãos russos que se
manifestam contra a guerra e ao apelo à paz de centenas de padres e
diáconos da Igreja Ortodoxa Russa, que fizeram questão de se demarcar da
posição de apoio e legitimação da ação militar russa por parte de Kirill.
***
Entretanto, mais de 500 teólogos, presbíteros e académicos de todo o mundo
e de várias denominações cristãs, na grande maioria ortodoxos, assinaram um
texto sob o título “Uma Declaração sobre
o Ensino do Mundo Russo”, de crítica dura à invasão russa da Ucrânia em 24
de fevereiro de 2022”, apresentando-a como “uma ameaça histórica para um povo
de tradição cristã ortodoxa”.
Entre os signatários estão alguns dos nomes mais importantes da teologia
ortodoxa em países anglo-saxónicos (Andrew Louth, Nicholas Denysenko,
Paul Gavryluk, Paul Meyendorff e George Demacopoulos) e católicos conhecedores dessa realidade.
Segundo o texto, promovido por teólogos ortodoxos de vários países e
divulgado pelo site Public Orthodoxy, mais
preocupante para os crentes ortodoxos é a hierarquia sénior da Igreja Ortodoxa
Russa ter-se recusado a reconhecer essa invasão, emitindo declarações vagas
sobre a necessidade de paz à luz dos ‘eventos’ e ‘hostilidades’ na Ucrânia, enfatizando
a natureza fraterna dos povos ucraniano e russo como parte da Santa Rus’,
culpando o malvado ‘Ocidente’ pelas hostilidades, e até orientando as comunidades
a orar de modo a encorajar ativamente a hostilidade.
As críticas ao patriarca de Moscovo também são muito violentas:
“O apoio de
muitos da hierarquia do Patriarcado de Moscovo à guerra do presidente Vladimir
Putin contra a Ucrânia está enraizado numa forma de fundamentalismo religioso
etnofilético ortodoxo [deriva étnica das igrejas ortodoxas], de caráter totalitário, chamado Russkii mir ou mundo russo, um falso ensinamento
que está a atrair muitos na Igreja Ortodoxa e foi também adotada pela
extrema-direita e pelos fundamentalistas católicos e protestantes.”.
Kirill alinha com as ideias do Presidente da Rússia e esta Declaração
aponta o dedo a esta relação:
“Os discursos
do presidente Vladimir Putin e do patriarca Kirill (Gundiaev) de Moscovo
(patriarcado de Moscovo) repetidamente invocaram e desenvolveram a ideologia
mundial russa nos últimos 20 anos. Em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e
iniciou uma guerra por procuração na região de Donbas, na Ucrânia, até ao
início da guerra total contra a Ucrânia, Putin e o patriarca Kirill usaram a
ideologia do mundo russo como principal justificação para a invasão.”
O texto, carregado de referências bíblicas, aponta seis “verdades” sobre os
acontecimentos e a fé cristã ortodoxa, para deixar outras tantas condenações de
situações “não ortodoxas”. Rejeita “qualquer ensinamento que pretenda
substituir o Reino de Deus visto pelos profetas, proclamado e inaugurado por
Cristo, ensinado pelos apóstolos, recebido como sabedoria pela Igreja, estabelecido
como dogma pelos Padres e experimentado em cada Santa Liturgia, com um reino
deste mundo, seja a Santa Rus’, a Sagrada Bizâncio ou qualquer outro reino
terrestre”.
Portanto, deve ser rejeitado “qualquer ensinamento que subordine o Reino de
Deus, manifestado na Única Santa Igreja de Deus, a qualquer reino deste mundo
que procure outros senhores eclesiásticos ou seculares que nos possam justificar
e redimir”.
Além de rejeitarem a deriva étnica das igrejas ortodoxas, os autores
condenam a demonização do “outro”, ou seja, rejeitam qualquer ensinamento que
encoraje a divisão, a desconfiança, o ódio e a violência entre povos,
religiões, confissões, nações ou estados, bem como qualquer ensino que demonize
ou encoraje a demonização daqueles que o estado ou a sociedade consideram
‘outros’, incluindo estrangeiros, dissidentes políticos e religiosos e outras
minorias sociais estigmatizadas.”
E, sendo impossível ficar de braços cruzados ante a guerra, sem que “os
fiéis e o clero da Igreja, desde o mais alto patriarca até ao mais humilde leigo”
não se sintam sobressaltados, repreendem “aqueles que oram pela paz enquanto
falham em fazer a paz ativamente, seja por medo, seja por falta de fé”.
Considerando que a intervenção russa na Ucrânia é uma invasão militar em
grande escala que já resultou em inúmeras mortes de civis e militares, na
violenta rutura da vida de mais de 44 milhões de pessoas e no deslocamento e
exílio de mais de dois milhões de pessoas (a 13 de março de 2022), porfiam que “esta verdade deve ser dita, por mais
dolorosa que seja”. Por conseguinte, rejeitam “qualquer ensino ou ação que se
recuse a falar a verdade, ou suprima ativamente a verdade sobre os males
perpetrados contra o Evangelho de Cristo na Ucrânia”.
Por fim, os autores do texto são claros:
“Rejeitamos a
heresia do ‘mundo russo’ e as ações vergonhosas do governo da Rússia ao
desencadear a guerra contra a Ucrânia que flui desse ensinamento vil e
indefensável com a conivência da Igreja Ortodoxa Russa, como profundamente não
ortodoxa, não cristã e contra a humanidade”.
***
Por seu turno, o Papa Francisco tomou posição inequívoca em relação à guerra
a ponto de se deslocar pessoalmente à embaixada russa junto da Santa Sé
interceder pela cessação do conflito, disponibilizando os serviços do Vaticano
para a mediação e enviando dois seus altos representantes à zona de conflito
apoiar quem precisa. Porém, nos constantes apelos à urgente pacificação nunca
nomeou a Rússia ou o seu Presidente (o que desgostou alguns), pelas razões posteriormente explicitadas e a que dei
espaço nos meus comentários.
Agora, indo ao encontro
de pedidos de diversos setores, vai proceder à “consagração da Rússia e da
Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria” a 25 de março, na celebração penitencial
a que presidirá na Basílica de São Pedro, em Roma, ato que será replicado em
Fátima ao mesmo tempo pelo seu enviado, o cardeal polaco Konrad Krajewski,
esmoler apostólico, que chegou há dias da Ucrânia, onde esteve em trabalho de
solidariedade, por solicitação de Francisco.
Para este ato, o Papa convidou os bispos de todo o mundo para que o acompanhem
em comunhão orante. E as Conferências Episcopais vêm manifestando a sua adesão.
A fé também faz a paz.
Entretanto, uma réplica da imagem da Virgem Peregrina de Fátima foi enviada
à Ucrânia a pedido do arcebispo metropolita greco-católico de Lviv, onde foi recebida com enorme emoção orante por católicos e ortodoxos. A
imagem, que permanecerá um mês na Ucrânia, partiu de Lisboa para Cracóvia (Polónia) onde foi acolhida e transportada pela comunidade
greco-católica na Ucrânia.
Do lado de Moscovo, o recurso a Maria foi assumido ao mais alto nível, numa
demonstração de que a guerra também se faz no plano simbólico. O Patriarca
Kirill, líder da Igreja Ortodoxa Russa, foi apresentar uma imagem da Virgem ao
líder da Guarda Nacional Russa e membro do Conselho Nacional de Segurança,
Viktor Zolotov, manifestando esperança na vitória rápida sobre a Ucrânia.
As igrejas ortodoxas que, maioritariamente, têm criticado a invasão da
Ucrânia pelas tropas de Putin, insurgem-se, ainda que não com o mesmo vigor,
contra o apoio explícito dado pelo Patriarca de Moscovo à política de agressão
do Kremlin.
Tanto as igrejas ortodoxas como a Igreja greco-católica dedicam grande
devoção à figura de Maria, e é assim que ela surge como “apoio” quer do lado do
agressor quer do agredido.
Talvez por isso, a “consagração” seja feita relativamente aos dois países,
a fim de que, pela intercessão da Theotokos (mãe de
Deus), se acabe a guerra.
A data de 25 de março é simbólica: além de evocar a anunciação do
nascimento de Jesus a Maria, foi nesse dia, em 1984, que São João Paulo II fez
a mesma consagração, dessa vez da União Soviética, que englobava a Rússia e a
Ucrânia. Menos de um ano depois, Mikhail Gorbatchov era eleito secretário-geral
do Partido Comunista da URSS e poria fim à União Soviética.
A “consagração da Rússia” remonta ao pedido de Maria e aparece ligada ao
combate aos “erros da Rússia”, embora a ideia de “consagração” (do “género
humano”, por exemplo) venha do
século XIX. Para a consagração que Francisco decidiu fazer, o contexto é
substancialmente diferente, mas a carga política estará presente, bem como a
tentativa de apropriação do que lhe está subjacente como assinalava há dias o
historiador da Igreja Daniele Menozzi.
O erro de Kirill é pensar que a razão está só do lado da Rússia e que a real
ambição excessiva do Ocidente se refreia com a guerra. E, se o Ocidente reza e
faz a guerra, ora bolas! As sanções económicas e financeiras e o tráfico de
armas são formas de guerra contra os povos…
2022.03.19 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário