sábado, 19 de março de 2022

A posição religiosa cristã face à guerra da Rússia na Ucrânia

 

É conhecida a posição do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) de condenação da guerra lamentando a ingente vaga de deslocados, a mortandade de civis e crianças, enfim toda a onda de destruição generalizada com as consequências que daí advirão. E, porque aos cristãos cabe sintonizar ativamente com o Príncipe da Paz, o CMI solicitou ao Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias que lançasse forte apelo aos decisores políticos russos no sentido de pararem a guerra. Solicitação idêntica lhe fez o cardeal presidente da Comece (Comissão dos Episcopados Católicos da União Europeia) – ontem a Comece fez novo pronunciamento –, e o Cardeal Secretário de Estado da Santa Sé.

Em resposta, o Patriarca Kirill explicou a razão por que o Patriarcado aderira ao CMI em termos da tarefa comum da promoção da paz e do bem comum, mas salvaguardando a linha da não interferência na ação política dos povos. E, alinhado com o discurso de Putin, afirma a unidade originária de toda a nação russa e a sua comum religião, bem como nas críticas que faz às posições políticas, estratégicas e económicas do Ocidente. Mais acusa o Patriarca de Constantinopla de ter criado um cisma na Igreja Ortodoxa Russa ao promulgar o decreto da autocefalia da Igreja Ortodoxa Ucraniana.   

Já a 2 de março 233 clérigos (padres e diáconos) da Igreja Ortodoxa Russa se demarcaram de Kirill sobre a invasão da Ucrânia, sustentando, em carta aberta, que a guerra desencadeada pela Rússia na Ucrânia é “fratricida”, pelo que “é urgente a reconciliação e um cessar-fogo imediato”.

Lamentam a provação a que os irmãos e irmãs na Ucrânia “foram imerecidamente submetidos” e manifestam o desejo de que todos os soldados, “russos e ucranianos”, “voltem ilesos” para as suas casas e famílias. Entristece-os pensar no abismo que os seus filhos e netos na Rússia e na Ucrânia “terão que preencher para começarem a ser amigos, a respeitar-se e a estimar-se novamente”. Entendem que o povo ucraniano é que deve ser o arquiteto das suas próprias escolhas, de forma livre, e “não sob a mira de metralhadoras e sem pressão do Ocidente ou do Oriente”. E lembram ao poder em Moscovo, que “nenhum apelo não violento pela paz e pelo fim da guerra deve ser combatido pela força e considerado uma violação da lei, porque este é o mandamento divino: bem-aventurados os pacificadores”. Por isso apelam ao diálogo, convictos de que “só a capacidade de ouvir o outro pode dar a esperança de uma saída do abismo em que os nossos países foram lançados em poucos dias”.

Esta é uma inequívoca demarcação da posição de apoio e legitimação do discurso do patriarca de 27 de fevereiro, dizendo que “não devemos deixar que forças externas sombrias e hostis se riam de nós, devemos fazer tudo para manter a paz entre os nossos povos e, ao mesmo tempo, proteger a nossa pátria histórica comum de todas as ações externas que possam destruir essa unidade”.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana, que se reconhece no Patriarcado de Moscovo, já lançou um apelo ao seu responsável máximo para que se manifeste contra a guerra e fale com o presidente Vladimir Putin. “Pedimos-lhe – diz o apelo a Kirill, lançado pelos sites ortodoxos – para intensificar as suas orações pelo sofrido povo ucraniano, para dizer uma primeira palavra sobre a cessação do derramamento de sangue pelo fratricídio em solo ucraniano e pedir à liderança da Federação Russa que pare imediatamente as hostilidades que ameaçam transformar-se numa guerra”.

A 18 de março, em carta aberta “a todos os irmãos e irmãs de todo o mundo”, divulgada no site da Aliança Evangélica Mundial, o líder da Aliança Evangélica Russa, Vitaly Vlasenko, pede desculpa a ucranianos, lamentando as decisões tomadas pelos líderes do país. Diz textualmente:

Peço perdão a todos aqueles que têm sofrido, perdido entes queridos e familiares, ou perdido a sua casa em consequência deste conflito militar”.

Vlasenko, que é pastor duma igreja batista em Moscovo, garante que fez “tudo o que podia para evitar a guerra”. Escreveu uma carta aberta ao presidente Putin um dia antes da invasão, na qual apoiou o pedido dos líderes religiosos da Ucrânia para a solução pacífica de todos os conflitos”. Mais: a Aliança Evangélica Russa foi uma das instituições presentes numa oração pública pela reconciliação de todas as partes e tem prestado assistência a refugiados ucranianos, exemplifica o líder religioso russo. Com efeito, para Vitaly Vlasenko, como para muitos outros cristãos, a invasão militar foi um choque. Nem no pior dos cenários imaginava o que agora se vê na Ucrânia.

Vlasenko junta-se assim ao crescente movimento de cidadãos russos que se manifestam contra a guerra e ao apelo à paz de centenas de padres e diáconos da Igreja Ortodoxa Russa, que fizeram questão de se demarcar da posição de apoio e legitimação da ação militar russa por parte de Kirill.

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Entretanto, mais de 500 teólogos, presbíteros e académicos de todo o mundo e de várias denominações cristãs, na grande maioria ortodoxos, assinaram um texto sob o título “Uma Declaração sobre o Ensino do Mundo Russo”, de crítica dura à invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022”, apresentando-a como “uma ameaça histórica para um povo de tradição cristã ortodoxa”.

Entre os signatários estão alguns dos nomes mais importantes da teologia ortodoxa em países anglo-saxónicos (Andrew Louth, Nicholas Denysenko, Paul Gavryluk, Paul Meyendorff e George Demacopoulos) e católicos conhecedores dessa realidade.

Segundo o texto, promovido por teólogos ortodoxos de vários países e divulgado pelo site Public Orthodoxy, mais preocupante para os crentes ortodoxos é a hierarquia sénior da Igreja Ortodoxa Russa ter-se recusado a reconhecer essa invasão, emitindo declarações vagas sobre a necessidade de paz à luz dos ‘eventos’ e ‘hostilidades’ na Ucrânia, enfatizando a natureza fraterna dos povos ucraniano e russo como parte da Santa Rus’, culpando o malvado ‘Ocidente’ pelas hostilidades, e até orientando as comunidades a orar de modo a encorajar ativamente a hostilidade.

As críticas ao patriarca de Moscovo também são muito violentas:

O apoio de muitos da hierarquia do Patriarcado de Moscovo à guerra do presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia está enraizado numa forma de fundamentalismo religioso etnofilético ortodoxo [deriva étnica das igrejas ortodoxas], de caráter totalitário, chamado Russkii mir ou mundo russo, um falso ensinamento que está a atrair muitos na Igreja Ortodoxa e foi também adotada pela extrema-direita e pelos fundamentalistas católicos e protestantes.”.

Kirill alinha com as ideias do Presidente da Rússia e esta Declaração aponta o dedo a esta relação:

Os discursos do presidente Vladimir Putin e do patriarca Kirill (Gundiaev) de Moscovo (patriarcado de Moscovo) repetidamente invocaram e desenvolveram a ideologia mundial russa nos últimos 20 anos. Em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e iniciou uma guerra por procuração na região de Donbas, na Ucrânia, até ao início da guerra total contra a Ucrânia, Putin e o patriarca Kirill usaram a ideologia do mundo russo como principal justificação para a invasão.

O texto, carregado de referências bíblicas, aponta seis “verdades” sobre os acontecimentos e a fé cristã ortodoxa, para deixar outras tantas condenações de situações “não ortodoxas”. Rejeita “qualquer ensinamento que pretenda substituir o Reino de Deus visto pelos profetas, proclamado e inaugurado por Cristo, ensinado pelos apóstolos, recebido como sabedoria pela Igreja, estabelecido como dogma pelos Padres e experimentado em cada Santa Liturgia, com um reino deste mundo, seja a Santa Rus’, a Sagrada Bizâncio ou qualquer outro reino terrestre”.

Portanto, deve ser rejeitado “qualquer ensinamento que subordine o Reino de Deus, manifestado na Única Santa Igreja de Deus, a qualquer reino deste mundo que procure outros senhores eclesiásticos ou seculares que nos possam justificar e redimir”.

Além de rejeitarem a deriva étnica das igrejas ortodoxas, os autores condenam a demonização do “outro”, ou seja, rejeitam qualquer ensinamento que encoraje a divisão, a desconfiança, o ódio e a violência entre povos, religiões, confissões, nações ou estados, bem como qualquer ensino que demonize ou encoraje a demonização daqueles que o estado ou a sociedade consideram ‘outros’, incluindo estrangeiros, dissidentes políticos e religiosos e outras minorias sociais estigmatizadas.”

E, sendo impossível ficar de braços cruzados ante a guerra, sem que “os fiéis e o clero da Igreja, desde o mais alto patriarca até ao mais humilde leigo” não se sintam sobressaltados, repreendem “aqueles que oram pela paz enquanto falham em fazer a paz ativamente, seja por medo, seja por falta de fé”.

Considerando que a intervenção russa na Ucrânia é uma invasão militar em grande escala que já resultou em inúmeras mortes de civis e militares, na violenta rutura da vida de mais de 44 milhões de pessoas e no deslocamento e exílio de mais de dois milhões de pessoas (a 13 de março de 2022), porfiam que “esta verdade deve ser dita, por mais dolorosa que seja”. Por conseguinte, rejeitam “qualquer ensino ou ação que se recuse a falar a verdade, ou suprima ativamente a verdade sobre os males perpetrados contra o Evangelho de Cristo na Ucrânia”.

Por fim, os autores do texto são claros:

Rejeitamos a heresia do ‘mundo russo’ e as ações vergonhosas do governo da Rússia ao desencadear a guerra contra a Ucrânia que flui desse ensinamento vil e indefensável com a conivência da Igreja Ortodoxa Russa, como profundamente não ortodoxa, não cristã e contra a humanidade”.

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Por seu turno, o Papa Francisco tomou posição inequívoca em relação à guerra a ponto de se deslocar pessoalmente à embaixada russa junto da Santa Sé interceder pela cessação do conflito, disponibilizando os serviços do Vaticano para a mediação e enviando dois seus altos representantes à zona de conflito apoiar quem precisa. Porém, nos constantes apelos à urgente pacificação nunca nomeou a Rússia ou o seu Presidente (o que desgostou alguns), pelas razões posteriormente explicitadas e a que dei espaço nos meus comentários.       

Agora, indo ao encontro de pedidos de diversos setores, vai proceder à “consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria” a 25 de março, na celebração penitencial a que presidirá na Basílica de São Pedro, em Roma, ato que será replicado em Fátima ao mesmo tempo pelo seu enviado, o cardeal polaco Konrad Krajewski, esmoler apostólico, que chegou há dias da Ucrânia, onde esteve em trabalho de solidariedade, por solicitação de Francisco.

Para este ato, o Papa convidou os bispos de todo o mundo para que o acompanhem em comunhão orante. E as Conferências Episcopais vêm manifestando a sua adesão. A fé também faz a paz. 

Entretanto, uma réplica da imagem da Virgem Peregrina de Fátima foi enviada à Ucrânia a pedido do arcebispo metropolita greco-católico de Lviv, onde foi recebida com enorme emoção orante por católicos e ortodoxos. A imagem, que permanecerá um mês na Ucrânia, partiu de Lisboa para Cracóvia (Polónia) onde foi acolhida e transportada pela comunidade greco-católica na Ucrânia.

Do lado de Moscovo, o recurso a Maria foi assumido ao mais alto nível, numa demonstração de que a guerra também se faz no plano simbólico. O Patriarca Kirill, líder da Igreja Ortodoxa Russa, foi apresentar uma imagem da Virgem ao líder da Guarda Nacional Russa e membro do Conselho Nacional de Segurança, Viktor Zolotov, manifestando esperança na vitória rápida sobre a Ucrânia.

As igrejas ortodoxas que, maioritariamente, têm criticado a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, insurgem-se, ainda que não com o mesmo vigor, contra o apoio explícito dado pelo Patriarca de Moscovo à política de agressão do Kremlin.

Tanto as igrejas ortodoxas como a Igreja greco-católica dedicam grande devoção à figura de Maria, e é assim que ela surge como “apoio” quer do lado do agressor quer do agredido.

Talvez por isso, a “consagração” seja feita relativamente aos dois países, a fim de que, pela intercessão da Theotokos (mãe de Deus), se acabe a guerra.

A data de 25 de março é simbólica: além de evocar a anunciação do nascimento de Jesus a Maria, foi nesse dia, em 1984, que São João Paulo II fez a mesma consagração, dessa vez da União Soviética, que englobava a Rússia e a Ucrânia. Menos de um ano depois, Mikhail Gorbatchov era eleito secretário-geral do Partido Comunista da URSS e poria fim à União Soviética.

A “consagração da Rússia” remonta ao pedido de Maria e aparece ligada ao combate aos “erros da Rússia”, embora a ideia de “consagração” (do “género humano”, por exemplo) venha do século XIX. Para a consagração que Francisco decidiu fazer, o contexto é substancialmente diferente, mas a carga política estará presente, bem como a tentativa de apropriação do que lhe está subjacente como assinalava há dias o historiador da Igreja Daniele Menozzi.

O erro de Kirill é pensar que a razão está só do lado da Rússia e que a real ambição excessiva do Ocidente se refreia com a guerra. E, se o Ocidente reza e faz a guerra, ora bolas! As sanções económicas e financeiras e o tráfico de armas são formas de guerra contra os povos…  

2022.03.19 – Louro de Carvalho  

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