quinta-feira, 24 de março de 2022

Eleita, mas não eleita

 

A poucas horas do fecho da contagem dos votos dos emigrantes recenseados no círculo da Europa, o resultado já se revelava incontornável: o PS fazia o pleno e elegia os dois deputados daquele círculo eleitoral na repetição das eleições ordenada pelo Tribunal Constitucional (TC).

Nas eleições de 30 de janeiro, o resultado na Europa tinha ficado um para um: um deputado para o PS (Paulo Pisco) e um para o PSD (Maria Ester Vargas). Agora, o resultado foi diferente e é o PS que fica com os dois. E Ester Vargas, que tinha sido eleita, teve de sair da corrida. 

As eleições foram repetidas no círculo eleitoral em referência depois de o PSD ter alertado para o facto de os votos da emigração que chegavam por correio sem cópia do cartão do cidadão estarem a ser misturados com os outros e serem considerados válidos, “numa clara transgressão das regras eleitorais”. O PSD fez barulho, fez queixa na CNE e ameaçou com uma queixa-crime contra os responsáveis das mesas de voto, mas terá acordado com o PS não levar o caso ao TC para não atrasar mais todo o processo de tomada de posse do Parlamento e do Governo.

Porém, outros partidos, como o Volt, o PAN, o MAS e o Chega, recorreram ao TC contra os cerca de 157 mil votos considerados nulos e o TC decretou a repetição das eleições no círculo da Europa – o que atrasou em mais de um mês a tomada de posse do Parlamento e do Governo.

Rui Rio foi pessoalmente a França e a Inglaterra em campanha, afirmando querer conquistar os dois mandatos em disputa. Contudo, o resultado saiu pior: de forma inédita, o PSD deixa de eleger deputados no círculo da Europa e fica com 77 deputados no total – menos um que em 2019. Já o PS reforça a sua maioria absoluta, com a eleição de Nathalie de Oliveira, e obtém 120 mandatos, mais 12 que em 2019.

Fora do Parlamento desde 2015, Maria Ester Vargas, professora de línguas estrangeiras do ensino secundário, recebera com surpresa o convite do próprio Rui Rio para suceder a Carlos Gonçalves e encabeçar a lista do PSD pelo círculo da Europa. E foi eleita em janeiro, mas a repetição das eleições um mês e meio depois das primeiras penalizou o PSD, que perdeu representação nas comunidades portuguesas na Europa. E, como é “uma democrata”, rende-se “às evidências”.

Quando, em fevereiro, viu publicados os resultados eleitorais dos dois círculos da emigração, achou que a sua vida, aos 66 anos, voltaria a passar por Lisboa. Estava mentalizada de que iria voltar à Assembleia da República, donde tinha saído no final dos quatro anos de governação de Passos Coelho e Paulo Portas, mas agora, em vez de integrar o seu círculo eleitoral, Viseu, iria encabeçava a lista pelo círculo da Europa. Com efeito, Rio procurava quem substituísse Carlos Gonçalves, que era deputado desde 2002, com lugar cativo no círculo da Emigração, e a escolha recaiu sobre esta militante de São Pedro do Sul, formada em Estudos Germânicos, que tinha estado nos últimos seis anos como consultora para a área social na Embaixada de Portugal em Berna, na Suíça. E Ester Vargas, que tinha voltado de Berna para a sua terra em junho de 2021, estava entusiasmada com o desafio.

Pelo que dita o histórico das eleições, contava ser eleita, pois há muito que os dois deputados da Europa se dividem entre PS e PSD (um para cada partido). Foi o que aconteceu também nas eleições legislativas de 30 de janeiro. Entretanto, os votos por correspondência, que são a grande maioria dos votos da emigração, chegavam sem cópia do cartão do cidadão ou com a cópia do cartão de identificação colocada no sítio errado e estavam a ser misturados com os outros – o que fez com que mais de 150 mil votos tenham sido considerados inválidos. Por isso, o PSD fez tanta celeuma que, apesar de não ter impugnado formalmente o processo eleitoral nem ter levado o caso ao TC, outros partidos o fizeram e os juízes decidiram pela repetição das eleições. Por isso, organizou-se nova campanha, nova ida às urnas, novo envio dos envelopes brancos e verdes e novo resultado: o PSD não elegeu nenhum deputado e a convidada de Rio fica em São Pedro Sul, com os papéis para a aposentação em andamento.

A professora de alemão à beira da aposentação, que no último mês esteve a fazer campanha nas comunidades portuguesas com Rui Rio ao lado a explicar aos eleitores que a culpa da repetição das eleições não tinha sido do PSD, apesar de aceitar democraticamente os resultados, lamenta não ter sido suficiente o seu esforço e o seu discurso. Referindo que “estamos sempre sujeitos a ser eleitos ou não ser”, esperava que as pessoas tivessem percebido que o PSD não foi o responsável por esta trapalhada” e, apontando o dedo ao Ministério da Administração Interna, defende que todo o sistema eleitoral deve ser revisto com urgência.

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Ora, vejamos.

Os emigrantes não perdoaram o facto de 80% dos seus votos terem sido anulados. Esta falta de respeito não cabe tout court ao Ministério da Administração Interna, que é executor da lei e não seu autor. E a diretiva de aceitar os votos que não fossem acompanhados de cópia do cartão de cidadão ou equivalente é um precedente de 2019 e é da CNE (Comissão Nacional de Eleições), uma entidade supostamente independente; e foi reiterada neste ano com acordo de cavalheiros entre os delegados dos diversos partidos a 18 de janeiro, perfeitamente aceitável, já que a junção da fotocópia em referência apenas constituía um reforço da pessoalidade do voto, conseguida também de outra forma.  

Foi efetivamente o PSD que fez barulho pela anulação e os sobreditos pequenos partidos foram à boleia e, em nome da consequência que o PSD supostamente devia ter tirado do seu protesto proclamado sem seguimento, lançaram o barro à parede e o TC, optando pelo princípio da “dura lex sed lex”, instou à repetição do escrutínio. É óbvio que o PSD é vítima, mas do fogo que lançou. Ademais, os emigrantes que repetiram a votação (os da presencial foram mais que em janeiro) podiam seguir uma de duas vias: penalizar o partido do Governo por não ter tomado a tempo a iniciativa de esclarecer amplamente o que prevalecia, ou seja, se era a norma da lei eleitoral ou a da proteção de dados pessoais; ou penalizar o partido responsável pela anulação de 80% dos votos dos emigrantes sujeitando-se à letra da lei, que mata e de que resulta a concretização do aforismo “summum ius, summa iniuria”. E, pelos vistos, os emigrantes eleitores optaram pela segunda hipótese, rejeitando que se criem dificuldades supérfluas para o cumprimento dum dever cívico e para o exercício de um direito, ambos concretizáveis num só ato: votar.

Votaram 107.553 pessoas por via postal, o que corresponde a 54,8% dos votos recebidos na primeira fase da votação. E, ainda assim, mais de 30 mil votos continuaram a ser considerados nulos. Porém, a eleita que não foi eleita diz que “O PSD não impugnou eleições, apenas tentou que a lei fosse cumprida, mas foi penalizado por isso”, e mostra-se aliviada por o longo e penoso processo ter chegado ao fim. Depois de seis anos a cumprir duas comissões de serviço em Berna e depois de quatro anos no Parlamento, a trabalhar sobretudo na comissão dos Negócios Estrangeiros, Ester Vargas admitiu ao “Expresso” que pode finalmente organizar o que vai ser a sua vida daqui para a frente: sem lugar no hemiciclo em Lisboa, vai finalmente gozar a reforma.

O PS não precisava deste reforço da sua maioria absoluta e a prioridade, que era a reforma eleitoral, agora com a guerra no Leste europeu, há de ser a crise socioeconómica, psicossocial e humanitária que a Europa vai atravessar.  

2022.03.24 – Louro de Carvalho

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