terça-feira, 1 de março de 2022

Do “significado cultural e eclesial do projeto Marega”

 

Foi apresentada aos jornalistas, às 11,30 horas deste dia 1 de março, na Sala de Imprensa da Santa Sé, a História da Evangelização do Japão. Os ‘documentos Marega’ da Biblioteca Apostólica do Vaticano”. Intervieram: o Cardeal José Tolentino de Mendonça, Bibliotecário e Arquivista da SRC; Dom Cesare Pasini, Prefeito da Biblioteca Apostólica Vaticano (BAV); o Dr. Delio Vania Proverbio, Scriptor Orientalis; a Dra. Ángela Núñez Gaitán, Chefe do Laboratório de Restauração; e o Prof. Silvio Vita, Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto.

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O Cardeal Tolentino, abordando o tema do “significado cultural e eclesial do projeto Marega”, evocou o “Silêncio”, de Martin Scorsese (2016) como a última de três adaptações cinematográficas do romance de Shūsaku Endō, segundo o qual o desembarque clandestino de dois jesuítas no Japão após o massacre de Shimabara (1637) foi o propulsor do drama das perseguições aos cristãos no período Edo, com a deposição do imperador e a assunção do poder total pelo shogun Tokugawa, que promulgou, em 1612, o Kinkyo-rei, isto é, a proibição do cristianismo. Quando o americano visitou a BAV em novembro de 2016, foi-lhe mostrada uma das suas preciosas coleções: documentos japoneses que datam do susodito período (1603-1868), que nos transportam para essa situação e que foram o tema desta conferência de imprensa.

Vicissitudes da história fizeram que o maior arquivo feudal preservado fora do Japão seja mantido na BAV. A partir dos papéis, recolhidos na década de 1930 pelo salesiano Mario Marega, iniciou-se em 2013 o projeto de cooperação cultural em que a BAV e o Instituto Nacional Japonês para as Humanidades estudaram, restauram e catalogaram cerca de 14.000 milhares de documentos, com dezenas de investigadores japoneses que anualmente permaneciam longos períodos de tempo nas instalações da BAV. A cooperação entre funcionários e pesquisadores japoneses e a BAV tornou possíveis s conferências e reuniões  em Roma e Japão sob a orientação organizacional do então bibliotecário Cardeal Raffaele Farina. Mas, segundo Tolentino de Mendonça, deve-se notar a atividade intensa e decisiva do corpo científico do Vaticano como um todo. E o orador mencionou os nomes dos restantes intervenientes na sessão e a sua atividade no projeto.

Frisou que “a notável atividade científica” em torno do Fundo Marega é marca inequívoca do interesse internacional. Das publicações a ele atinentes, destacou duas: Naohiro Ōta, “Reading Japanese Documents of the Marega Collection. Um manual introdutório com textos selecionados”; e Kazuo Ōtomo & Naohiro Ōta, “The Marega Collection in the Vatican Library. Um Estudo Abrangente”. Mais referiu que a abertura das coleções arquivísticas à investigação dá significativo contributo ao estudo das relações entre o Japão e a Santa Sé.

Os documentos de Marega são fundamentais para reconstruir a história do cristianismo japonês e constituem um retrato variado da sociedade japonesa na era pré-moderna.

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Por sua vez, Dom Cesare Pasini salientou a “colaboração significativa entre a Biblioteca do Vaticano e instituições japonesas”. Com efeito, o projeto atinge a história antiga do cristianismo no Japão e uma história moderna de descobertas e redescobertas, a partir do momento em que Marega recolheu muitos documentos em risco de dispersão e os enviou a Roma. A parte de leão chegou à BAV em 1953. Não foi inventariado de imediato, por exigir cuidadosa e complexa verificação. O material vinha escrito em língua de acesso não imediato e em grafia que exigia particulares conhecimentos paleográficos. O seu retorno à luz surgiu em 2011, quando o Dr. Delio Proverbio os teve em boa conta e promoveu a sua valorização.

Foi preciso criar estreita colaboração com o mundo japonês e com as competências que só os seus podiam oferecer. Assim, em 2013, foi concebido um projeto conjunto entre a BAV e os NIHU (Institutos de Investigação em Humanidades) do Japão, com o Prof. Kazuo Ōtomo, gestor de projeto, o Instituto Historiográfico da Universidade de Tóquio e os Arquivos Históricos dos Antigos Sábios da Prefeitura de Ōita. Participou também no projeto a Escola Italiana de Estudos do Leste Asiático em Kyoto, com o Prof. Silvio Vita, e o município de Usuki, Kyushu donde vem a maioria dos documentos, bem como a Universidade Salesiana.

Foi preciso reorganizar o material, conservá-lo e restaurar parte dele mercê das condições precárias em que foi coligido, bem como digitalizar integralmente em alta definição parte dos 80 mil manuscritos do Vaticano, estudar e catalogar documentos e elaborar uma base de dados para acesso a documentos individuais e sua descrição. O projeto está concluído, mas não fechado: estão a começar as pesquisas e estudos sobre os documentos disponibilizados a todos (os que sabem lê-los) e continuam os contactos construtivos com as instituições japonesas. É, agora, importante insistir no significado simbólico da colaboração entre as instituições japonesas, o Vaticano e todas as pessoas envolvidas, pois, trabalhando juntos em documentos que testemunham uma perseguição que durou dois séculos e meio, construiu-se uma experiência comum que resultou numa troca de habilidades, se ampliou e aprofundou no conhecimento e estima mútuos. É a realidade positiva da diplomacia cultural. De facto, a cultura permite tecer relacionamentos e tratar os assuntos mais delicados com subtileza e precisão; onde a história causou feridas ou contrastes conhecidos ou opostos entre si, pode construir-se compreensão e aceitação, harmonia e respeito, pesquisando e investigando, explicando e contextualizando, fazendo respeitosa memória de tudo e de todos; e conhecemos melhor a vida dos povos. 

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O Dr. Delio Vania Proverbio deu relevantes indicações cronológicas sobre a transferência dos documentos de Marega para o Vaticano:

Em junho de 1938, Marega envia ao Museu Lateranense (Museu Etnológico Missionário) os primeiros 10 documentos, que passaram aos Arquivos Apostólicos do Vaticano e, em 2020, à BAV.

1938-1939, no 3.º volume dos Anais de Latrão (1939), Marega transcreve, traduz e publica em reprodução fotográfica 80 documentos recebidos em Roma, em 1938 por Vincenzo Cimatti, Prefeito Apostólico de Miyazaki, destinados ao Museu de Latrão. A localização não é conhecida.

Em agosto-dezembro de 1953, o núncio apostólico no Japão Maximilien de Furstenberg escreve ao pró-secretário de Estado Giovanni Battista Montini, a anunciar a iminente chegada a Roma, de navio, duma grande coleção de arquivos japoneses, graças aos bons ofícios da Embaixada da Itália em Tóquio. É o bloco geral do Fundo Marega que entra na BAV.

Em 2011, são redescobertos e aprimorados os documentos de Marega nos “depósitos A” da BAV, onde esse bloco fora colocado em 1965.

Em 2014, o Museu Cimatti do Seminário Salesiano de Chofu (Tóquio) doa ao Vaticano alguns documentos ali conservados.

Em 2016, chegam ao Vaticano cerca de 300 documentos, depositados desde 2005 na Pontifícia Universidade Salesiana de Roma (encontrados nos anos 1980 em Chofu pelo salesiano Mizobe Osamu).

Em 2018, é descoberto na Biblioteca dos Museus do Vaticano um pequeno núcleo de livros japoneses que pertenciam a Marega, que também entra na BAV.

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A Dra. Ángela Núñez Gaitán, falando do restauro de documentos japoneses, menciona o aforismoVerba volant, scripta manent, mas adverte que os documentos estão escritos num material que, para não voar para longe, teve de ser preservado e cuidado. Por isso, a fase preparatória do projeto envolveu a conservação e restauro para consulta futura e digitalização segura.

Mais disse que “o material japonês é muito diferente do ocidental”. Assim, embora os ocidentais restauradores de papel lidem bem com papéis japoneses modernos, não estão acostumados a lidar com papéis japoneses antigos e manuscritos, que reagem de modo diferente aos tratamentos de restauração. Além disso, esse material de arquivo é de formato diferente (a maioria é  , rolos de papel “esmagados”) e com caraterísticas diplomáticas particulares.

A força para abordar tais peculiaridades foi a estreita colaboração com os especialistas japoneses, que, liderados por Mutsumi Aoki e Masako Kanayama, apresentaram ao Laboratório de Restauração do Vaticano as técnicas de conservação e restauração de documentos de arquivo japoneses, pelo que foi possível realizar trabalhos de restauro em cerca de 4.600 documentos.

No espírito de total colaboração, partilhou-se a excecional experiência adquirida, organizando uma conferência na BAV que permitiu a significativo grupo de restauradores europeus conhecer os elementos teóricos necessários e a um grupo de restauradores profissionais experimentar as principais técnicas de restauração trabalhando diretamente em documentos originais de Marega escolhidos ad hoc. Foi o primeiro curso deste género na Europa: o mundo ocidental do restauro de papel centra-se nas obras de arte, os kakejiku e kakemono, presente em várias coleções também no Ocidente. Porém, a coleção Marega, a maior coleção de arquivo preservada fora do Japão, ofereceu aos restauradores ocidentais a oportunidade de conhecer e experimentar este outro material específico: os anais da conferência “Preservação e conservação de documentos de arquivo japoneses. Coleção Marega na Biblioteca do Vaticano” são agora publicados na série A casa dos livros da Escola de Biblioteconomia do Vaticano.

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Por fim, o Prof. Silvio Vita falou de “Mario Marega e a coleção de documentos japoneses”. Começou por dizer que os mais de 10 mil documentos dizem respeito sobretudo ao controlo dos descendentes cristãos e permitem dar olhar as comunidades rurais duma determinada região do Japão do século XVII ao XIX, revelando uma gestão administrativa moderna (indivíduos e famílias registados e acompanhados nos momentos marcantes da vida: nascimentos, óbitos, casamentos, viagens, etc.) e vestígios de eventos individuais a conectar com mais documentação dos arquivos japoneses. Não tem igual no Japão uma coleção deste tamanho, concentrada num território específico.

No entanto, as cartas também contam a história do contexto em que viveu a pessoa que as coligiu, Mario Marega (1902-1978) e abrem vislumbres sobre a vida do missionário salesiano no Império Austro-Húngaro, na Itália e no Japão, no século XX. Notícias de jornais, ingleses ou japoneses relatam os acontecimentos que levaram às guerras mundiais ou a vida da província japonesa em fragmentos de jornais locais, notas e anotações feitas por ele, vestígios de correspondência, avisos de conferência, os passes necessários para movimentos fora do círculo urbano nos últimos anos da guerra. E Marega, que não era desconhecido na cena cultural italiana dos anos 30 e 40, publicou uma tradução do Kojiki em Laterza em 1938,

A descoberta do acervo foi estímulo à reconstrução do mundo desta personagem, através de cartas aos familiares que permaneceram em Gorizia, sua cidade de origem, e uma autobiografia cómica, a que Marega dedicou tempo quando, cerca de um mês a partir de meados de julho de 1945, se confinou perto do Monte Aso, junto do famoso vulcão na parte central da ilha de Kyushu. É uma época inserida entre as duas guerras mundiais que lhe deixam a memória nostálgica dos períodos pré-guerra. O pano de fundo é o vínculo com os territórios: o friuliano que nunca desaparece nas letras, e a parte do Japão em que exerceu a atividade pastoral, Ōita e Miyazaki, duas áreas contíguas, ligadas à primeira propagação de cristianismo há mais de 300 anos.

Para explicar como Marega reuniu tão impressionante quantidade de documentos, é preciso ver o contexto em que atuava, com uma boa rede de relações pessoais, cercado por notáveis ​​locais, professores, policiais, um general, jornalistas, que o tinham como uma glória local pela sua tradução do Kojiki. A partir da década de 1920, no Japão, começou a tomar forma a ideia duma história local confiada a amadores, em oposição à académica dos professores universitários, o que estimulou o surgimento de associações de história pátria, focadas no trabalho sobre folclore, inspirado na obra de Yanagita Kunio (1875-1962). E Marega, o único parceiro estrangeiro que integrava um grupo desses, participou ativamente no movimento de resgate das identidades locais, o que lhe permitiu reunir a coleção que mantém viva a memória duma perseguição e mártires de 4 séculos antes, património local, mas também global” para estar ligado ao centro do cristianismo.

2022.03.01 – Louro de Carvalho

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