Foi
apresentada aos jornalistas, às 11,30 horas deste dia 1 de março, na Sala de
Imprensa da Santa Sé, a “História
da Evangelização do Japão. Os ‘documentos Marega’ da Biblioteca Apostólica
do Vaticano”. Intervieram: o Cardeal José Tolentino de Mendonça,
Bibliotecário e Arquivista da SRC; Dom Cesare Pasini, Prefeito da
Biblioteca Apostólica Vaticano (BAV); o Dr.
Delio Vania Proverbio, Scriptor Orientalis; a Dra. Ángela Núñez Gaitán,
Chefe do Laboratório de Restauração; e o Prof. Silvio Vita, Universidade
de Estudos Estrangeiros de Kyoto.
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O Cardeal Tolentino,
abordando o tema do “significado cultural e eclesial do projeto
Marega”, evocou o “Silêncio”, de
Martin Scorsese (2016) como a última de três adaptações
cinematográficas do romance de Shūsaku Endō, segundo o qual o desembarque
clandestino de dois jesuítas no Japão após o massacre de Shimabara (1637) foi o propulsor do drama das perseguições aos
cristãos no período Edo, com a deposição do imperador e a assunção do poder
total pelo shogun Tokugawa, que promulgou, em 1612, o Kinkyo-rei,
isto é, a proibição do cristianismo. Quando o americano visitou a BAV em
novembro de 2016, foi-lhe mostrada uma das suas preciosas coleções: documentos
japoneses que datam do susodito período (1603-1868), que nos transportam para essa situação e que foram o tema desta conferência de imprensa.
Vicissitudes
da história fizeram que o maior arquivo feudal preservado fora do Japão seja
mantido na BAV. A partir dos papéis, recolhidos na década de 1930 pelo salesiano
Mario Marega, iniciou-se em 2013 o projeto de cooperação cultural em que a BAV
e o Instituto Nacional Japonês para as Humanidades estudaram,
restauram e catalogaram cerca de 14.000 milhares de documentos, com dezenas de
investigadores japoneses que anualmente permaneciam longos períodos de tempo nas
instalações da BAV. A cooperação entre funcionários
e pesquisadores japoneses e a BAV tornou possíveis s conferências e reuniões em Roma e Japão sob a
orientação organizacional do então bibliotecário Cardeal Raffaele Farina. Mas,
segundo Tolentino de Mendonça, deve-se notar a atividade intensa e decisiva do
corpo científico do Vaticano como um todo. E o orador mencionou os nomes
dos restantes intervenientes na sessão e a sua atividade no projeto.
Frisou que “a
notável atividade científica” em torno do Fundo Marega é marca inequívoca do interesse
internacional. Das publicações a ele atinentes, destacou duas: Naohiro
Ōta, “Reading Japanese Documents of the Marega Collection. Um
manual introdutório com textos selecionados”; e Kazuo Ōtomo & Naohiro Ōta, “The Marega
Collection in the Vatican Library. Um Estudo Abrangente”. Mais referiu
que a abertura das coleções arquivísticas à investigação dá significativo
contributo ao estudo das relações entre o Japão e a Santa Sé.
Os documentos
de Marega são fundamentais para reconstruir a história do cristianismo japonês
e constituem um retrato variado da sociedade japonesa na era pré-moderna.
Por sua vez,
Dom Cesare Pasini salientou a “colaboração significativa entre a Biblioteca
do Vaticano e instituições japonesas”.
Com efeito, o projeto atinge a história antiga do cristianismo no Japão
e uma história moderna de descobertas e redescobertas, a partir do momento em
que Marega recolheu muitos documentos em risco de dispersão e os enviou a
Roma. A parte de leão chegou à BAV em 1953. Não foi inventariado de
imediato, por exigir cuidadosa e complexa verificação. O material vinha escrito
em língua de acesso não imediato e em grafia que exigia particulares conhecimentos
paleográficos. O seu retorno à luz surgiu em 2011, quando o Dr. Delio
Proverbio os teve em boa conta e promoveu a sua valorização.
Foi preciso
criar estreita colaboração com o mundo japonês e com as competências que só os
seus podiam oferecer. Assim, em 2013, foi concebido um projeto conjunto
entre a BAV e os NIHU (Institutos
de Investigação em Humanidades) do Japão, com o Prof. Kazuo Ōtomo, gestor de projeto, o
Instituto Historiográfico da Universidade de Tóquio e os Arquivos Históricos
dos Antigos Sábios da Prefeitura de Ōita. Participou também no projeto a
Escola Italiana de Estudos do Leste Asiático em Kyoto, com o Prof. Silvio
Vita, e o município de Usuki, Kyushu donde vem a maioria dos documentos, bem
como a Universidade Salesiana.
Foi preciso
reorganizar o material, conservá-lo e restaurar parte dele mercê das condições
precárias em que foi coligido, bem como digitalizar integralmente em alta
definição parte dos 80 mil manuscritos do Vaticano, estudar e catalogar
documentos e elaborar uma base de dados para acesso a documentos individuais e
sua descrição. O projeto está concluído, mas não fechado: estão a começar
as pesquisas e estudos sobre os documentos disponibilizados a todos (os que sabem lê-los) e continuam os contactos
construtivos com as instituições japonesas. É, agora, importante insistir no
significado simbólico da colaboração entre as instituições japonesas, o Vaticano
e todas as pessoas envolvidas, pois, trabalhando juntos em documentos que
testemunham uma perseguição que durou dois séculos e meio, construiu-se uma experiência
comum que resultou numa troca de habilidades, se ampliou e aprofundou no
conhecimento e estima mútuos. É a realidade positiva da diplomacia cultural. De facto, a
cultura permite tecer relacionamentos e tratar os assuntos mais delicados com
subtileza e precisão; onde a história causou feridas ou contrastes conhecidos
ou opostos entre si, pode construir-se compreensão e aceitação, harmonia e
respeito, pesquisando e investigando, explicando e contextualizando, fazendo respeitosa
memória de tudo e de todos; e conhecemos melhor a vida dos povos.
***
O Dr. Delio
Vania Proverbio deu relevantes indicações cronológicas sobre a transferência
dos documentos de Marega para o Vaticano:
Em junho de 1938,
Marega envia ao Museu Lateranense (Museu Etnológico Missionário) os primeiros 10 documentos, que passaram aos Arquivos
Apostólicos do Vaticano e, em 2020, à BAV.
1938-1939, no 3.º volume dos Anais de
Latrão (1939), Marega transcreve, traduz e publica
em reprodução fotográfica 80 documentos recebidos em Roma, em 1938 por Vincenzo
Cimatti, Prefeito Apostólico de Miyazaki, destinados ao Museu de Latrão. A
localização não é conhecida.
Em agosto-dezembro de 1953, o núncio apostólico no Japão Maximilien de Furstenberg
escreve ao pró-secretário de Estado Giovanni Battista Montini, a anunciar a iminente
chegada a Roma, de navio, duma grande coleção de arquivos japoneses, graças aos
bons ofícios da Embaixada da Itália em Tóquio. É o bloco geral do Fundo Marega
que entra na BAV.
Em 2011, são
redescobertos e aprimorados os documentos de Marega nos “depósitos A” da BAV,
onde esse bloco fora colocado em 1965.
Em 2014, o Museu
Cimatti do Seminário Salesiano de Chofu (Tóquio) doa ao Vaticano alguns documentos ali conservados.
Em 2016, chegam
ao Vaticano cerca de 300 documentos, depositados desde 2005 na Pontifícia
Universidade Salesiana de Roma (encontrados nos anos 1980 em Chofu pelo salesiano Mizobe Osamu).
Em 2018, é
descoberto na Biblioteca dos Museus do Vaticano um pequeno núcleo de livros
japoneses que pertenciam a Marega, que também entra na BAV.
***
A Dra. Ángela
Núñez Gaitán, falando do restauro de documentos
japoneses, menciona o aforismo “Verba volant, scripta manent”, mas adverte que os documentos
estão escritos num material que, para não voar para longe, teve de ser
preservado e cuidado. Por isso, a fase preparatória do projeto envolveu a
conservação e restauro para consulta futura e digitalização segura.
Mais disse
que “o material japonês é muito diferente do ocidental”. Assim, embora os ocidentais
restauradores de papel lidem bem com papéis japoneses modernos, não estão
acostumados a lidar com papéis japoneses antigos e manuscritos, que reagem de
modo diferente aos tratamentos de restauração. Além disso, esse material
de arquivo é de formato diferente (a maioria é jō , rolos de papel “esmagados”) e com caraterísticas diplomáticas
particulares.
A força para
abordar tais peculiaridades foi a estreita colaboração com os especialistas
japoneses, que, liderados por Mutsumi Aoki e Masako Kanayama, apresentaram ao
Laboratório de Restauração do Vaticano as técnicas de conservação e restauração
de documentos de arquivo japoneses, pelo que foi possível realizar trabalhos de
restauro em cerca de 4.600 documentos.
No espírito
de total colaboração, partilhou-se a excecional experiência adquirida,
organizando uma conferência na BAV que permitiu a significativo grupo de
restauradores europeus conhecer os elementos teóricos necessários e a um grupo de
restauradores profissionais experimentar as principais técnicas de restauração
trabalhando diretamente em documentos originais de Marega escolhidos ad
hoc. Foi o primeiro curso deste género na Europa: o mundo ocidental do
restauro de papel centra-se nas obras de arte, os kakejiku e kakemono,
presente em várias coleções também no Ocidente. Porém, a coleção Marega, a
maior coleção de arquivo preservada fora do Japão, ofereceu aos restauradores
ocidentais a oportunidade de conhecer e experimentar este outro material
específico: os anais da conferência “Preservação e conservação de documentos
de arquivo japoneses. Coleção Marega na Biblioteca do Vaticano” são agora
publicados na série A casa dos livros da Escola de Biblioteconomia
do Vaticano.
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Por fim, o
Prof. Silvio Vita falou de “Mario Marega e a coleção de documentos japoneses”. Começou por dizer que os mais de 10 mil
documentos dizem respeito sobretudo ao controlo dos descendentes
cristãos e permitem dar olhar as comunidades rurais duma determinada região do
Japão do século XVII ao XIX, revelando uma gestão administrativa moderna (indivíduos e famílias registados e
acompanhados nos momentos marcantes da vida: nascimentos, óbitos, casamentos,
viagens, etc.) e vestígios
de eventos individuais a conectar com mais documentação dos arquivos
japoneses. Não tem igual no Japão uma coleção deste tamanho, concentrada num
território específico.
No entanto,
as cartas também contam a história do contexto em que viveu a pessoa que as
coligiu, Mario Marega (1902-1978) e abrem vislumbres sobre a vida do
missionário salesiano no Império Austro-Húngaro, na Itália e no Japão, no
século XX. Notícias de jornais, ingleses ou japoneses relatam os
acontecimentos que levaram às guerras mundiais ou a vida da província japonesa
em fragmentos de jornais locais, notas e anotações feitas por ele, vestígios de
correspondência, avisos de conferência, os passes necessários para movimentos
fora do círculo urbano nos últimos anos da guerra. E Marega, que não era
desconhecido na cena cultural italiana dos anos 30 e 40, publicou uma tradução
do Kojiki em Laterza em 1938,
A descoberta
do acervo foi estímulo à reconstrução do mundo desta personagem, através de
cartas aos familiares que permaneceram em Gorizia, sua cidade de origem, e uma
autobiografia cómica, a que Marega dedicou tempo quando, cerca de um mês a partir
de meados de julho de 1945, se confinou perto do Monte Aso, junto do famoso
vulcão na parte central da ilha de Kyushu. É uma época inserida entre as duas
guerras mundiais que lhe deixam a memória nostálgica dos períodos
pré-guerra. O pano de fundo é o vínculo com os territórios: o friuliano
que nunca desaparece nas letras, e a parte do Japão em que exerceu a atividade
pastoral, Ōita e Miyazaki, duas áreas contíguas, ligadas à primeira propagação
de cristianismo há mais de 300 anos.
Para explicar
como Marega reuniu tão impressionante quantidade de documentos, é preciso ver o
contexto em que atuava, com uma boa rede de relações pessoais, cercado por
notáveis locais, professores, policiais, um general, jornalistas, que o
tinham como uma glória local pela sua tradução do Kojiki. A partir da
década de 1920, no Japão, começou a tomar forma a ideia duma história local confiada
a amadores, em oposição à académica dos professores universitários, o que estimulou
o surgimento de associações de história pátria, focadas no trabalho sobre
folclore, inspirado na obra de Yanagita Kunio (1875-1962). E Marega, o único parceiro estrangeiro que integrava
um grupo desses, participou ativamente no movimento de resgate das identidades
locais, o que lhe permitiu reunir a coleção que mantém viva a memória duma perseguição
e mártires de 4 séculos antes, património local, mas também global” para estar
ligado ao centro do cristianismo.
2022.03.01 – Louro de Carvalho
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