segunda-feira, 7 de março de 2022

Os homens que lideram o monstro da guerra Rússia-Ucrânia

 

O Presidente da Ucrânia era um comediante famoso pela sua sátira e, entre outras coisas, por fingir tocar piano com as “partes baixas”. Não obstante, em 2019, as circunstâncias catapultaram-no a um papel bem mais sério, o de líder da nação. Aos 44 anos de idade, venceu as eleições presidenciais após estrear a série “Servant of the People”, onde era o Presidente tornando-se na personagem que interpretava a vida a imitar arte. Nem os escritores da série adivinhavam o papel que cumpriria em 2022, como líder dum país atacado pelo poderoso vizinho, a Rússia de Putin.

Na televisão, Volodymyr Zelenskiy era Vasily Goloborodko, professor de História irritado com a corrupção no seu país que, um dia, acordou e era Presidente da Ucrânia, depois de um aluno o ter filmado à socapa. Lutava contra os poderosos oligarcas e contra um parlamento corrupto. Era visto como um líder sem carreira, mas sem mácula, inexperiente, mas honesto.

Usando a sátira como principal arma, a “persona” de Zelenskiy acabaria por cativar o público e originar uma campanha de sucesso, embora ironicamente polémica, financiada por um oligarca ucraniano investigado por fraude nos EUA.

O seu posicionamento como elemento “fora da caixa” e afastado dos poderosos políticos habituais rendeu-lhe a vitória expressiva de mais de 70% contra Poroshenko, Presidente em exercício. Na altura, chamaram-lhe “o Trump da Ucrânia” mercê da sua inexperiência política, mas a opinião do público foi mudando ao longo do tempo, quase tão volátil como a jovem democracia na região.

Ironicamente, seria ele a causar um escândalo internacional que envolveria Trump: o primeiro “impeachment” do antigo Presidente norte-americano aconteceria após uma chamada entre Trump e Zelenskiy, em 2019, em que Trump tentava convencer o ucraniano a investigar os negócios da família Biden no país. Tal só não se concretizou na prática devido à perda das eleições por Donald Trump.

Zelenskiy, que usou como bandeira de campanha a promessa de paz ao leste da Ucrânia, encontra-se a braços com uma invasão e um dos argumentos da Rússia é a situação da população russófona nas zonas separatistas. Antes da invasão russa, Zelenskiy já viralizara nas redes sociais por todo o planeta ao dirigir-se, em russo, aos seus agora inimigos, pedindo à nação vizinha que travasse os desejos de Putin. Um poderoso e histórico discurso que ecoou pelo mundo de nada serviu. A Ucrânia haveria de ser invadida horas depois, na madrugada de 24 de fevereiro.

Zelenskiy falou em russo à nação vizinha, num gesto que surpreendeu só quem não conhece o seu passado. Filho de judeus, Zelenskiy cresceu numa zona ucraniana pró-russa mas, no seu curto percurso político, conseguiu deixar para trás as alegações de apoio a oligarcas e ao perigoso inimigo da “porta” ao lado e posicionou-se como um nacionalista.

Apesar da sua pouca experiência política e da sua carreira longe dos caminhos diplomáticos, Zelenskiy recebe, agora, o apoio do seu povo e é tido como bom líder. Maria Zolkina, analista política ucraniana citada pelo “New YorK Times”, assegura que não é “Presidente de guerra mas, desde que se tornou clara a extensão do ataque, ele age exatamente como um Presidente deveria agir durante tempos de guerra”. Não arreda pé de Kiev horas antes da expectável tomada da capital ucraniana. Mesmo sabendo que é o “inimigo número 1” da Rússia, pelo que tem a cabeça a prémio e que a sua minha família “é o alvo número dois”, garante que não abandonará a capital.

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O Presidente da Rússia, além de ter servido como agente do ex-KGB no departamento exterior e chefe dos serviços secretos soviético e russo, KGB e FSB, respetivamente, exerceu a presidência entre 2000 e 2008 e primeiro-ministro duas vezes: entre 1999 e 2000; e entre 2008 e 2012.

Vladímir Putin governa a Rússia desde a renúncia de Bóris Iéltsin, em 1999. O seu primeiro governo foi marcado por profundas reformas políticas e económicas, estadismo, tensões com os EUA e Europa Ocidental, rigidez com os rebeldes chechenos e resgate do nacionalismo, o que lembra em parte o sovietismo e o czarismo. Sobressai o decreto que permite a indicação dos governadores dos distritos pelo Presidente, a restauração do controlo sobre a república separatista da Chechénia, os assassinatos não esclarecidos de vários opositores políticos, o fim do colapso económico russo, a estatização de setores estratégicos que estavam nas mãos dos oligarcas e as consequentes prisões de muitos deles e vários desacordos diplomáticos com a NATO, sendo os mais memoráveis a discussão sobre o estabelecimento de mísseis no Leste Europeu, que levou Putin a criticar publicamente a política internacional norte-americana, e o apoio russo aos separatistas na Ucrânia, após esta se ter alinhado com a Aliança Atlântica. 

Por 16 anos, Putin foi oficial do KGB, atingindo a patente de tenente-coronel. Reformou-se da atividade militar para ingressar na política na sua cidade de São Petersburgo, em 1991. Mudou-se para Moscovo, em 1996, para integrar administração do Presidente Bóris Iéltsin, na qual cresceu rapidamente e tornando-se presidente interino a 31 de dezembro de 1999, quando Iéltsin renunciou inesperadamente. Putin venceu a eleição do ano seguinte tornando-se Presidente da Rússia, sendo reeleito em 2004. Foi impedido de concorrer a um terceiro mandato em 2008, já que, à época, a Constituição só permitia dois mandatos consecutivos. Assim, o seu aliado Dmitri Medvedev foi o sucessor, que fez de Putin primeiro-ministro, cargo que manteve até final da presidência do sucessor. Em setembro de 2011, Putin anunciou que concorreria a um terceiro mandato, gerando diversos protestos nas principais cidades. Como esperado, foi reeleito por mais 6 anos, em terceiro mandato, com o fim previsto para 2018. E, em maio de 2018, com mais de 76% dos votos, ganhou as eleições para um quarto mandato que terminará em 2024. Entretanto, em abril de 2021, sancionou a emenda constitucional (aprovada na Duma por 78% dos votos) que lhe permite a eleição para mais dois mandatos (até 2036).   

Putin tem sido responsabilizado pelo retorno da estabilidade política e do progresso económico da Rússia, pondo fim à crise dos anos 1990. Durante a sua primeira gestão (1999-2008), o lucro real aumentou em fator 2,5 e os salários mais que triplicaram. O desemprego e a pobreza caíram em mais da metade e a satisfação de vida da população russa aumentou significativamente. O seu primeiro governo foi marcado pelo grande crescimento económico: a economia russa cresceu diretamente em 8 anos, observando um aumento de 72% no PIB. Essas conquistas foram atribuídas pelos analistas à boa gestão macroeconómica, importantes reformas fiscais, aumento do fluxo de capitais, acesso às finanças externas de baixo custo e aumento de cinco vezes no preço do petróleo e gás, os principais produtos de exportação da Rússia.

Como Presidente, transformou em lei o aumento de 13% na taxa proporcional da receita, a taxa reduzida de impostos sobre a receita e novos códigos legais territoriais. Como primeiro-ministro, fez reformas militares e policial de larga escala. A sua política energética afirmou a posição da Rússia como superpotência em energia. Putin apoiou indústrias de alta tecnologia como as nucleares e de defesa. O aumento no investimento de capital estrangeiro contribuiu pela explosão em certos setores, como na indústria automotiva. O desenvolvimento incluiu a construção de oleodutos e gasodutos, a restauração do sistema de navegação por satélite GLONASS e a construção de infraestrutura para eventos internacionais.

A sua liderança tem gozado de considerável popularidade, com altas taxas de aprovação geral. Porém, várias ações têm sido julgadas antidemocráticas pela oposição. Observadores ocidentais e organizações juntaram vozes para criticar o governo de Putin. A classificação de 2011 do índice de Democracia apontou que a Rússia está num longo processo de regressão graças à mudança de um governo híbrido para um regime autoritário sob Putin. Os cabos diplomáticos vazados pelo WikiLeaks apontam a Rússia como um Estado mafioso virtual, devido à corrupção sistemática no governo de Putin. Alguns críticos descrevem-no como ditador, o que Putin nega. A Human Rights Watch em 2021 vinca a degradação contínua dos direitos humanos sob Putin.

Sob Putin, a Rússia modificou as relações com os EUA e Reino Unido ao adotar a postura mais independente, caraterizada pela política de não-intervenção, oposta à dos norte-americanos e britânicos. Putin projeta a imagem pública de aventureiro, homem forte, sempre empenhado em atividades perigosas e incomuns, algumas delas criticadas ocasionalmente. Assíduo praticante de artes marciais, ampla participação no desenvolvimento do desporto russo, sendo o exemplo mais notável a colaboração para fazer de Sochi a sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014.

Em fins de fevereiro deste ano, Putin ordenou uma invasão militar em larga escala à Ucrânia.

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São estes os rostos dos que suportam as ações de guerra, que a ação diplomática não logrou evitar e que não tem conseguido suster. Obviamente Zelenskiy lidera a resistência, ao passo que Putin lidera a iniciativa do ataque, que gerou um coro alastrante de protestos e sanções cujos efeitos ainda não são de avaliar.

É esta a guerra que está a gerar uma onda de condenações veementes, que motiva orações da parte dos crentes e que ainda não encontrou um mediador, embora alguns Estados se tenham já disponibilizado para isso. É uma guerra que se sucede a outras de feição semelhante, mas que encontra uma resistência mais robusta, embora não se deva esquecer que resulta em parte do desrespeito mútuo pelos acordos em tempo firmados (Rússia e Ocidente).     

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No quadro da solidariedade eclesial, Cardeal Patriarca de Lisboa, presidiu, 6 de março, à Missa com a comunidade ucraniana e muitos portugueses, na Igreja de Arroios, em Lisboa. E, no final, em declarações aos jornalistas, pediu negociações e o fim duma guerra sem sentido, vincando:

Quando as coisas não se resolvem com diálogo, quando as partes não se encontram realmente, podem-se interromper conflitos, mas eles ficam lá latentes e podem voltar outra vez”.

Para o purpurado, é absolutamente necessário que a parte militar acabe e que a parte pessoal de diálogo continue com força, porque são uma tristeza as imagens que nos chegam, as histórias que estas pessoas da Ucrânia nos contam das suas famílias, do que lá está a acontecer agora”.

Na celebração esteve a embaixadora da Ucrânia em Portugal, Inna Ohnivets, que acredita que a paz é possível, mas frisou que o Exército russo não tem respeitado as tentativas de acordo e disse:

“A crise humanitária vai aumentar e, por isso, é necessário realizar os outros passos para sentar-se e começar as negociações diplomáticas entre a Rússia e a Ucrânia para preservar a segurança no nosso país”.

Também o Papa defendeu a realização de negociações e reforçou a disponibilidade da Igreja para ajudar na tentativa de alcançar a paz na Ucrânia, invadida há 11 dias pela Rússia.

Perante a multidão de fiéis, alguns com bandeiras da Ucrânia, após a oração mariana do Angelus neste I domingo da Quaresma, Francisco traçou o retrato plangente do que se passa na Ucrânia:

 Correm rios de sangue e lágrimas na Ucrânia. Não se trata apenas de uma operação militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria. As vítimas são cada vez mais numerosas, assim como as pessoas que fogem, especialmente mães e crianças. A necessidade de assistência humanitária neste país atormentado está crescendo dramaticamente a cada hora.”.

O Pontífice dirigiu o seu veemente apelo a que sejam realmente assegurados os corredores humanitários e a que seja garantido e facilitado o acesso das ajudas às zonas sitiadas, para oferecer o socorro vital aos nossos irmãos e irmãs oprimidos por bombas e pelo medo:

Agradeço a todos aqueles que estão a acolher refugiados. Acima de tudo, imploro que os ataques armados cessem e que prevaleçam a negociação e o bom senso. E um retorno ao respeito ao direito internacional!”.

O Papa dirigiu um agradecimento particular aos jornalistas que, pondo em risco a própria vida, contam a dura realidade da guerra:

E também gostaria de agradecer às jornalistas e aos jornalistas que colocam suas vidas em risco para garantir a informação: obrigado, irmãos e irmãs, por seu serviço! Um serviço que nos permite estar perto da tragédia daquela população e nos permite avaliar a crueldade de uma guerra. Obrigado, irmãos e irmãs.”.

O Papa concluiu ressaltando o esforço diplomático da Santa Sé para colocar-se a serviço da paz:

A Santa Sé está pronta para fazer tudo, para colocar-se ao serviço desta paz. Nestes dias, dois cardeais foram à Ucrânia, para servir o povo, para ajudar. O cardeal Krajewski, esmoler, para levar ajuda aos necessitados, e o cardeal Czerny, prefeito (interino) do Dicastério (para o Serviço) do Desenvolvimento Humano Integral. Esta presença dos dois cardeais ali é a presença não só do Papa, mas de todo o povo cristão que quer se aproximar e dizer: ‘A guerra é uma loucura! Parem, por favor! Vejam esta crueldade.’.”.

Como revelou este domingo o alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, a guerra já provocou mais de 1,5 milhões de refugiados. E também este domingo voltou a falhar o corredor humanitário montado para retirar civis de Mariupol, informação que está a ser avançada por diversos meios de comunicação internacionais. Os separatistas pró-Rússia e a guarda ucraniana acusam-se mutuamente por mais este falhanço do cessar-fogo.

2022.03.06 - Louro de Carvalho

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