O Presidente
da Ucrânia era um comediante famoso pela sua sátira e, entre outras coisas, por
fingir tocar piano com as “partes baixas”. Não obstante, em 2019, as
circunstâncias catapultaram-no a um papel bem mais sério, o de líder da nação. Aos
44 anos de idade, venceu as eleições presidenciais após estrear a série “Servant of the People”, onde era o
Presidente tornando-se na personagem que interpretava a vida a imitar arte. Nem
os escritores da série adivinhavam o papel que cumpriria em 2022, como líder dum
país atacado pelo poderoso vizinho, a Rússia de Putin.
Na
televisão, Volodymyr Zelenskiy era Vasily Goloborodko, professor de
História irritado com a corrupção no seu país que, um dia, acordou e era
Presidente da Ucrânia, depois de um aluno o ter filmado à socapa. Lutava contra
os poderosos oligarcas e contra um parlamento corrupto. Era visto como um líder
sem carreira, mas sem mácula, inexperiente, mas honesto.
Usando a
sátira como principal arma, a “persona” de Zelenskiy acabaria por cativar o
público e originar uma campanha de sucesso, embora ironicamente polémica,
financiada por um oligarca ucraniano investigado por fraude nos EUA.
O seu posicionamento
como elemento “fora da caixa” e afastado dos poderosos políticos habituais
rendeu-lhe a vitória expressiva de mais de 70% contra Poroshenko, Presidente em
exercício. Na altura, chamaram-lhe “o Trump da Ucrânia” mercê da sua
inexperiência política, mas a opinião do público foi mudando ao longo do tempo,
quase tão volátil como a jovem democracia na região.
Ironicamente,
seria ele a causar um escândalo internacional que envolveria Trump:
o primeiro “impeachment” do antigo Presidente norte-americano aconteceria
após uma chamada entre Trump e Zelenskiy, em 2019, em que Trump tentava
convencer o ucraniano a investigar os negócios da família Biden no país. Tal só
não se concretizou na prática devido à perda das eleições por Donald Trump.
Zelenskiy,
que usou como bandeira de campanha a promessa de paz ao leste da Ucrânia,
encontra-se a braços com uma invasão e um dos argumentos da Rússia é a situação
da população russófona nas zonas separatistas. Antes da invasão russa,
Zelenskiy já viralizara nas redes sociais por todo o planeta ao dirigir-se, em
russo, aos seus agora inimigos, pedindo à nação vizinha que travasse os desejos
de Putin. Um poderoso e histórico discurso que ecoou pelo mundo de nada serviu.
A Ucrânia haveria de ser invadida horas depois, na madrugada de 24 de fevereiro.
Zelenskiy
falou em russo à nação vizinha, num gesto que surpreendeu só quem não conhece o
seu passado. Filho de judeus, Zelenskiy cresceu numa zona ucraniana pró-russa
mas, no seu curto percurso político, conseguiu deixar para trás as alegações
de apoio a oligarcas e ao perigoso inimigo da “porta” ao lado e
posicionou-se como um nacionalista.
Apesar da
sua pouca experiência política e da sua carreira longe dos caminhos
diplomáticos, Zelenskiy recebe, agora, o apoio do seu povo e é tido como bom
líder. Maria Zolkina, analista política ucraniana citada pelo “New YorK Times”, assegura que não é “Presidente
de guerra mas, desde que se tornou clara a extensão do ataque, ele age
exatamente como um Presidente deveria agir durante tempos de guerra”. Não
arreda pé de Kiev horas antes da expectável tomada da capital ucraniana. Mesmo
sabendo que é o “inimigo número 1” da Rússia, pelo que tem a cabeça a prémio e
que a sua minha família “é o alvo número dois”, garante que não abandonará a
capital.
***
O
Presidente da Rússia, além de ter servido como agente do ex-KGB no
departamento exterior e chefe dos serviços secretos soviético e russo, KGB e
FSB, respetivamente, exerceu a presidência entre 2000 e 2008 e
primeiro-ministro duas vezes: entre 1999 e 2000; e entre 2008 e 2012.
Vladímir Putin
governa a Rússia desde a renúncia de Bóris Iéltsin, em 1999. O seu primeiro
governo foi marcado por profundas reformas políticas e económicas, estadismo,
tensões com os EUA e Europa Ocidental, rigidez com os rebeldes chechenos e
resgate do nacionalismo, o que lembra em parte o sovietismo e o czarismo.
Sobressai o decreto que permite a indicação dos governadores dos distritos pelo
Presidente, a restauração do controlo sobre a república separatista
da Chechénia, os assassinatos não esclarecidos de vários opositores
políticos, o fim do colapso económico russo, a estatização de
setores estratégicos que estavam nas mãos dos oligarcas e as
consequentes prisões de muitos deles e vários desacordos diplomáticos com
a NATO, sendo os mais memoráveis a discussão sobre o estabelecimento
de mísseis no Leste Europeu, que levou Putin a criticar publicamente a
política internacional norte-americana, e o apoio russo aos separatistas
na Ucrânia, após esta se ter alinhado com a Aliança Atlântica.
Por 16 anos,
Putin foi oficial do KGB, atingindo a patente de tenente-coronel.
Reformou-se da atividade militar para ingressar na política na sua cidade de
São Petersburgo, em 1991. Mudou-se para Moscovo, em 1996, para
integrar administração do Presidente Bóris Iéltsin, na qual cresceu
rapidamente e tornando-se presidente interino a 31 de dezembro de 1999, quando
Iéltsin renunciou inesperadamente. Putin venceu a eleição do ano seguinte
tornando-se Presidente da Rússia, sendo reeleito em 2004. Foi impedido de
concorrer a um terceiro mandato em 2008, já que, à época, a Constituição só
permitia dois mandatos consecutivos. Assim, o seu aliado Dmitri Medvedev foi
o sucessor, que fez de Putin primeiro-ministro, cargo que manteve até final da
presidência do sucessor. Em setembro de 2011, Putin anunciou que concorreria a
um terceiro mandato, gerando diversos protestos nas principais cidades. Como
esperado, foi reeleito por mais 6 anos, em terceiro mandato, com o fim previsto
para 2018. E, em maio de 2018, com mais de 76% dos votos, ganhou as
eleições para um quarto mandato que terminará em 2024. Entretanto, em abril de
2021, sancionou a emenda constitucional (aprovada na Duma por 78% dos votos) que lhe permite a eleição para mais
dois mandatos (até 2036).
Putin tem
sido responsabilizado pelo retorno da estabilidade política e do progresso
económico da Rússia, pondo fim à crise dos anos 1990. Durante a sua primeira
gestão (1999-2008), o lucro real aumentou em fator 2,5
e os salários mais que triplicaram. O desemprego e a pobreza caíram em mais da
metade e a satisfação de vida da população russa aumentou significativamente.
O seu primeiro governo foi marcado pelo grande crescimento económico: a
economia russa cresceu diretamente em 8 anos, observando um aumento de 72%
no PIB. Essas conquistas foram atribuídas pelos analistas à boa
gestão macroeconómica, importantes reformas fiscais, aumento do fluxo de
capitais, acesso às finanças externas de baixo custo e aumento de cinco vezes
no preço do petróleo e gás, os principais produtos de exportação da Rússia.
Como
Presidente, transformou em lei o aumento de 13% na taxa proporcional da
receita, a taxa reduzida de impostos sobre a receita e novos códigos legais
territoriais. Como primeiro-ministro, fez reformas militares e policial de
larga escala. A sua política energética afirmou a posição da Rússia como
superpotência em energia. Putin apoiou indústrias de alta tecnologia como
as nucleares e de defesa. O aumento no investimento de capital
estrangeiro contribuiu pela explosão em certos setores, como na indústria
automotiva. O desenvolvimento incluiu a construção de oleodutos e
gasodutos, a restauração do sistema de navegação por satélite GLONASS e
a construção de infraestrutura para eventos internacionais.
A sua liderança
tem gozado de considerável popularidade, com altas taxas de aprovação geral. Porém,
várias ações têm sido julgadas antidemocráticas pela oposição. Observadores
ocidentais e organizações juntaram vozes para criticar o governo de Putin. A
classificação de 2011 do índice de Democracia apontou que a
Rússia está num “longo
processo de regressão graças à mudança de um governo híbrido para um regime
autoritário” sob Putin. Os cabos diplomáticos vazados
pelo WikiLeaks apontam a Rússia como um “Estado mafioso virtual”, devido à corrupção sistemática
no governo de Putin. Alguns críticos descrevem-no como ditador, o que Putin
nega. A Human Rights Watch em 2021 vinca a degradação contínua dos
direitos humanos sob Putin.
Sob Putin, a
Rússia modificou as relações com os EUA e Reino Unido ao adotar a postura
mais independente, caraterizada pela política de não-intervenção, oposta à dos
norte-americanos e britânicos. Putin projeta a imagem pública de
aventureiro, homem forte, sempre empenhado em atividades perigosas e incomuns, algumas
delas criticadas ocasionalmente. Assíduo praticante de artes marciais, ampla
participação no desenvolvimento do desporto russo, sendo o exemplo mais notável
a colaboração para fazer de Sochi a sede dos Jogos Olímpicos de
Inverno de 2014.
Em fins de
fevereiro deste ano, Putin ordenou uma invasão militar em larga escala à
Ucrânia.
***
São estes
os rostos dos que suportam as ações de guerra, que a ação diplomática não
logrou evitar e que não tem conseguido suster. Obviamente Zelenskiy lidera a resistência, ao passo que Putin lidera a iniciativa do ataque, que
gerou um coro alastrante de protestos e sanções cujos efeitos ainda não são de
avaliar.
É esta a
guerra que está a gerar uma onda de condenações veementes, que motiva orações
da parte dos crentes e que ainda não encontrou um mediador, embora alguns Estados
se tenham já disponibilizado para isso. É uma guerra que se sucede a outras de
feição semelhante, mas que encontra uma resistência mais robusta, embora não se
deva esquecer que resulta em parte do desrespeito mútuo pelos acordos em tempo
firmados (Rússia e Ocidente).
***
No quadro da solidariedade eclesial, Cardeal
Patriarca de Lisboa, presidiu, 6 de março, à Missa com a comunidade ucraniana e
muitos portugueses, na Igreja de Arroios, em Lisboa. E, no final, em
declarações aos jornalistas, pediu negociações e o fim duma guerra sem sentido,
vincando:
“Quando
as coisas não se resolvem com diálogo, quando as partes não se encontram
realmente, podem-se interromper conflitos, mas eles ficam lá latentes e podem
voltar outra vez”.
Para o purpurado, é absolutamente
necessário que a parte militar acabe e que a parte pessoal de diálogo continue
com força, porque são uma tristeza as imagens que nos chegam, as histórias que
estas pessoas da Ucrânia nos contam das suas famílias, do que lá está a
acontecer agora”.
Na celebração esteve a embaixadora da
Ucrânia em Portugal, Inna Ohnivets, que acredita que a paz é possível, mas
frisou que o Exército russo não tem respeitado as tentativas de acordo e disse:
“A crise humanitária vai
aumentar e, por isso, é necessário realizar os outros passos para sentar-se e
começar as negociações diplomáticas entre a Rússia e a Ucrânia para preservar a
segurança no nosso país”.
Também o Papa defendeu a
realização de negociações e reforçou a disponibilidade da Igreja para
ajudar na tentativa de alcançar a paz na Ucrânia, invadida há 11 dias pela
Rússia.
Perante a multidão de fiéis, alguns
com bandeiras da Ucrânia, após a oração mariana do Angelus neste I domingo da Quaresma, Francisco traçou o retrato
plangente do que se passa na Ucrânia:
“Correm
rios de sangue e lágrimas na Ucrânia. Não se trata apenas de uma operação
militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria. As vítimas são
cada vez mais numerosas, assim como as pessoas que fogem, especialmente mães e
crianças. A necessidade de assistência humanitária neste país atormentado está
crescendo dramaticamente a cada hora.”.
O Pontífice dirigiu o seu veemente
apelo a que sejam realmente assegurados os corredores humanitários e a que seja
garantido e facilitado o acesso das ajudas às zonas sitiadas, para oferecer o
socorro vital aos nossos irmãos e irmãs oprimidos por bombas e pelo medo:
“Agradeço
a todos aqueles que estão a acolher refugiados. Acima de tudo, imploro que os
ataques armados cessem e que prevaleçam a negociação e o bom senso. E um
retorno ao respeito ao direito internacional!”.
O Papa dirigiu um agradecimento
particular aos jornalistas que, pondo em risco a própria vida, contam a dura realidade
da guerra:
“E também gostaria de agradecer às
jornalistas e aos jornalistas que colocam suas vidas em risco para garantir a
informação: obrigado, irmãos e irmãs, por seu serviço! Um serviço que nos
permite estar perto da tragédia daquela população e nos permite avaliar a
crueldade de uma guerra. Obrigado, irmãos e irmãs.”.
O Papa concluiu ressaltando o esforço
diplomático da Santa Sé para colocar-se a serviço da paz:
“A Santa Sé está pronta para fazer tudo,
para colocar-se ao serviço desta paz. Nestes dias, dois cardeais foram à
Ucrânia, para servir o povo, para ajudar. O cardeal Krajewski, esmoler, para
levar ajuda aos necessitados, e o cardeal Czerny, prefeito (interino) do
Dicastério (para o Serviço) do Desenvolvimento Humano Integral. Esta presença
dos dois cardeais ali é a presença não só do Papa, mas de todo o povo cristão que
quer se aproximar e dizer: ‘A guerra é uma loucura! Parem, por favor! Vejam
esta crueldade.’.”.
Como revelou este domingo o alto
comissário das Nações Unidas para os Refugiados, a guerra já provocou mais de
1,5 milhões de refugiados. E também este domingo voltou a falhar o corredor
humanitário montado para retirar civis de Mariupol, informação que está a ser
avançada por diversos meios de comunicação internacionais. Os separatistas
pró-Rússia e a guarda ucraniana acusam-se mutuamente por mais este falhanço do
cessar-fogo.
2022.03.06 - Louro de Carvalho
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