Um estudo realizado pelo Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa (ICS) para a Fundação Calouste
Gulbenkian, sob coordenação dos investigadores
José Machado Pais, Pedro Magalhães e Miguel Lobo Antunes, com foco nas práticas culturais dos
portugueses em 2020, analisa os hábitos culturais dos portugueses em
2020 com base num trabalho desenvolvido por inquérito a 2000 pessoas com 15 ou
mais anos de idade a residir em Portugal.
Por força da
pandemia de covid-19, o uso da internet aumentou e a ida a eventos culturais
caiu num ano em que a leitura continua em números reduzidos. De facto, a
situação pandémica alterou o funcionamento do setor cultural (as
atividades dependentes da aglomeração de pessoas foram interrompidas, levando
ao encerramento de museus, teatros, cinemas, salas de concertos e festivais), que se obrigou a reinventar os espaços e estratégias
para enfrentar o desconhecido que traria uma crise sem precedentes. O mundo do
espetáculo, que vive das pessoas, está a fundir-se com o do online, com o aumento da dependência da Internet por parte
de indivíduos e instituições. E o estudo em referência oferece um
retrato da diversidade do setor em Portugal à luz dos dados recolhidos e quer
fornecer às instituições culturais uma “de leitura sobre os seus públicos,
atuais e de futuro e contribuir para a “produção de políticas públicas
inovadoras”. Os domínios
pesquisados abrangem consumos culturais pela Internet, televisão e rádio, bem
como práticas de leitura em formato impresso e digital. É abordada a frequência
de visitas a bibliotecas, museus, monumentos históricos, sítios arqueológicos e
galerias de arte e idas ao cinema, concertos e espetáculos ao vivo, incluindo
festivais e festas locais, além da participação artística e capitais culturais.
Quando a
realidade foi reduzida às paredes da casa, a internet era uma das poucas
janelas para o mundo e ganhou preponderância na partilha e visualização de
conteúdos. As atividades culturais não ficam à margem da internet; destaca-se a
música e a leitura de notícias online como as principais práticas online,
para lá da partilha de conteúdos culturais (20%), desde vídeos e música a imagens criados pelos próprios. A nova realidade foi reforçada com a
intensificação do uso da internet no domínio cultural, sobretudo nos
jovens dos 15 aos 24 anos, que passaram a ver mais filmes e séries (40%), a ler mais livros, jornais e revistas online
(21%) e a ver mais espetáculos de música (16%). Tais indicadores evidenciam as potencialidades digitais no incremento da
participação cultural, mas a percentagem de inquiridos, dos 16 aos 74 anos,
que utilizam a Internet (71%) fica aquém
da média da UE-27 (87%). A menor
utilização da Internet pela população portuguesa reflete a sua estrutura
demográfica, que se carateriza por maioritariamente envelhecida. Só um em cada
4 dos inquiridos com 65 ou mais anos de idade usa a Internet. Além deste fator,
há razões conexas com as qualificações académicas e o poder económico: os inquiridos estão tanto mais desconectados
da Internet quanto mais baixo é o seu nível de instrução e de rendimento.
Entre os motivos assinalados para não usar a internet, sobressaem razões económicas
a impedir o acesso ao computador ou à internet pelo custo que acarreta défices
de conhecimento, como a falta de interesse e não saber como usar esta
tecnologia. A taxa de utilizadores da internet aumenta nas faixas etárias mais
jovens – o uso da web é quase absoluto nos inquiridos dos 15 aos
24 anos. O mesmo se passa com os indivíduos mais escolarizados: 98% dos que
acedem à internet têm curso superior; 96% têm educação secundária; 87%
terminaram o 3.ºciclo; e 67% têm instrução até ao 3.º ciclo.
O mundo
do online veio para ficar, mas os media clássicos continuam a
ser preferidos pelos portugueses, sendo a televisão o meio mais consumido por 90% dos inquiridos – valor
superior ao dobro dos ouvintes diários de rádio (40%) ou dos usuários da internet (41%).
A população com menos rendimentos e com mais idade passa mais horas a ver
televisão. O peso dos espectadores mais
assíduos é mais elevado entre os que possuem rendimentos familiares de 800 a
1500 euros (95%) e até 500 euros (92%) em comparação com os que usufruem de mais de 2700
euros (82%). Ao invés, são os mais novos, mais instruídos e com
maiores rendimentos que, tendencialmente, veem menos televisão. O grau de
escolaridade também contribui. À medida do avanço nos estudos, menor se torna o
número de pessoas que tem a televisão como preferência na procura de
entretenimento e informação, atingindo o pico entre os portugueses com menos
que o 3.º ciclo (95%) face a 84% dos respondentes com o ensino superior.
No atinente à
rádio – sobretudo em deslocações de carro (66%) –, os programas mais seguidos são os de notícias e de informação (59%) e de música popular (50%). E 41% dos inquiridos usa o aparelho de rádio tradicional como um dos principais
meios de audição.
No que diz
respeito à leitura, é claro que os portugueses leem pouco e os hábitos que se
criam em casa podem ser uma das razões. Os resultados do estudo revelam que, no
último ano, 61% dos portugueses
inquiridos não leram nenhum livro em papel, contra 38% dos
espanhóis. A leitura de livros
digitais foi feita por 10% dos inquiridos portugueses em comparação
a 20% dos de Espanha.
À luz do que
os dados do inquérito permitem apurar, o contexto familiar e as práticas incutidas na infância e adolescência
têm influência nos hábitos de leitura. A maioria dos inquiridos revelou
que nunca foi acompanhado pelos pais ou outro familiar a uma livraria, uma
feira do livro ou a uma biblioteca. Além disso, 47% admitiu nunca ter recebido
um livro e 54% nunca leu um livro de histórias. Estas podem ser algumas das
razões para os portugueses lerem pouco e cada vez menos. Uma realidade mais
distante para os inquiridos mais jovens
e aqueles cujos pais têm ou tinham qualificações académicas superiores, que reconhecem
esse apoio familiar e usufruíram de mais experiencia de aproximação ao mundo do
livro. Os dados denunciam a manutenção de assimetrias sociais na criação
de hábitos de leitura e sinalizam uma mudança. O facto de os jovens de terem
pais mais escolarizados que os das gerações mais velhas e, por isso, mais
sensíveis ao valor cultural da leitura evidencia o importante elo de
transmissão geracional: a democratização do acesso à educação potencia ganhos
culturais nas gerações sucessoras. E, embora os números sejam baixos, os
portugueses ainda encaram os livros como um refúgio. A larga maioria dos
inquiridos (68%) lê livros por prazer e a percentagem eleva-se com o avanço da idade,
sendo maior nos mais idosos e os indivíduos de mais baixa instrução. Esta
tendência não se verifica nos jovens dos 15 aos 24 anos, que leem para estudar
ou fazer trabalhos escolares (45%). Porém, o
privilégio concedido à leitura por prazer verifica-se seja qual for a classe
socioprofissional dos portugueses.
Os jornais são o objeto da cultura impressa com mais leitores, com 43% dos inquiridos a afirmarem que leram jornais
em papel no último ano. Só depois vêm os livros, que contam com mais leitores
que as revistas (39% e 32%, respetivamente). Também na esfera digital os jornais são a publicação
mais lida (por 21% dos portugueses inquiridos), vindo só
depois, a maior distância, os livros e as revistas (10% de
leitores para ambos os formatos).
Antes do
começo da pandemia, os portugueses iam mais vezes visitar monumentos, museus,
sítios arqueológicos e galerias de arte. Não havia restrições e mais de metade
não deixava a distância ser obstáculo, com 58% a dirigir-se a outros concelhos
em visitas a estes locais e 12% a saírem do país. Estes espaços, de património
material e imaterial, ligam o passado, o presente e o futuro e são uma forma de
preservar a história e a memória cultural dum povo. As visitas são sobretudo motivadas por essa
vontade de “aproximação cultural” e reforço da “identidade nacional”. Aliás,
de entre os motivos que levaram os inquiridos a visitar museus, monumentos
históricos, sítios arqueológicos e galerias de arte destaca-se a importância
histórica do espaço, assinalada por 40% dos inquiridos. Não surpreende, pois,
que, dos espaços reconhecidos como património mundial, os mais visitados, pelo
menos uma vez na vida, sejam o Mosteiro dos Jerónimos (63%), a Torre de Belém (61%) e o Mosteiro da Batalha (59%). Além desta
motivação identitária, sobressaem motivos de natureza sociabilística e
estética: 33% visitaram esses espaços culturais pelo convívio com outras
pessoas e 31% pela beleza do espaço e das obras expostas. O visitante sente que
o melhor é ir acompanhado. Só 4% realizam as visitas sozinhos; 65% vão com
familiares; 27% com namorado/a ou amigos; e 8% em grupo de escola. Também este
domínio é influenciado pelo grau de ensino, verificando-se que a maior parte tem escolaridade mais avançada. 70%
têm escolaridade superior e 44% possuem o ensino secundário. Visitantes mais
raros são os que têm o 3.º ciclo (32%) e escolaridade até ao 3.º ciclo (11%). A história de Portugal e do mundo também pode estar à distância de um
clique e as visitas a espaços patrimoniais podem ser feitas pela Internet.
Neste domínio, os monumentos históricos e os museus são os espaços mais
visitados.
O cinema é a atividade cultural com taxa de participação mais elevada. Esta prática é mais forte na população jovem dos
15-24 anos, de que 82% declaram ter ido ao cinema em 2019. O cinema é, pois,
considerado a locomotiva da
cultura e dos jovens portugueses, não fosse este apelidado de sétima
arte. Ainda assim, a participação dos portugueses é mais reduzida
comparativamente aos 58% de espanhóis e os 63% de franceses que indicaram ter
frequentado esta atividade.
Ao todo, 42%
dos portugueses que responderam ao estudo foram ao cinema nesse ano e 59% não
foi nenhuma vez no mesmo período de tempo. Os porquês são vários e vão desde a
falta de tempo – o motivo mais mencionado – à falta de interesse, possibilidade
de se ver filmes na televisão e noutros suportes digitais, ao elevado preço dos
bilhetes. No ato da decisão, vários fatores pesam. Para 33% dos inquiridos, o
tema do filme é o fator que mais pesa na hora da escolha, mas os atores e
realizadores também contam (18%), assim como
as recomendações de familiares e amigos (15%). Há quem vá ao cinema pelo convívio (12%) ou pelas críticas do filme (7%). No tocante
ao conteúdo, os géneros variam entre as diferentes faixas etárias. Os mais
jovens preferem filmes de ação, terror e suspense. O grupo dos 35 aos 44 anos
prefere filmes de animação e documentários. Os inquiridos com mais idade (55-64 anos) distribuem as suas preferências pelos policiais e
filmes de espionagem. Em particular, na faixa etária dos maiores de 65 anos,
verifica-se o gosto pelos musicais, filmes clássicos, históricos e biográficos.
As mulheres têm preferência por filmes de ação e animação, drama, clássicos e
filmes de amor. Já os homens mencionam mais vezes a ficção científica e os
filmes de espionagem.
No conjunto
de espetáculos e concertos ao vivo, os festivais
e festas locais foram os mais frequentados (38%). Logo a
seguir, surgem os concertos de música ao vivo (24%), o teatro (13%) e o circo (7%). As
atividades menos frequentadas foram os espetáculos eruditos: música
clássica (6%), ballet ou dança clássica (5%) e ópera (2%). O poder de atração dos festivais e festas locais é transversal a toda a
população e a distinção cultural ocorre, sobretudo, no acesso a espetáculos
eruditos. Estas práticas minoritárias não estão ao alcance de todos,
sendo frequentadas principalmente por inquiridos com rendimentos elevados. Em
contrapartida, as festas locais atraem quem tem habilitações escolares mais
reduzidas e são menos frequentadas supostamente devido à falta de tempo,
sobretudo na faixa etária dos 35-44 anos, pela falta de interesse e pela ideia
de que o espetáculo é difícil de perceber.
A
regularidade de modalidades, mais lúdicas ou mais criativas, fornece um
contraponto para a análise das práticas culturais, em particular das práticas
artísticas amadoras. Num plano geral dos lazeres realizados pelo menos uma vez
no ano anterior à pandemia, as diversas modalidades são partilhadas por reduzida
parcela da população. Questionados sobre se alguma vez participaram em
oficinas artísticas ou usufruíram de aulas de alguma disciplina artística, não
incluídas no currículo escolar, os inquiridos destacaram o papel da escola. Essa formação
artística adquirida em contexto escolar beneficiou, sobretudo, os mais jovens,
dos 15 aos 24 anos.
A relevância
da educação na “formação de capitais culturais” manifesta-se mais uma vez
quando se constata que a afeição
dos inquiridos às práticas artísticas amadoras é tanto mais significativa
quanto mais elevado é o grau de ensino: 32% dos inquiridos com o ensino
superior desenvolveram práticas artísticas amadoras. Estas, contudo, não
tiveram grande expressividade no conjunto da população, sobressaindo, todavia,
a escrita à qual se dedicaram 8% dos inquiridos, seguindo-se
fotografia/vídeo/cinema (7%), a
pintura/desenho/gravura (5%) e a música (4%). A razão que mais os mobilizou para a prática de
atividades artísticas foi o prazer (66%), embora tenham ainda referido a expressão pessoal (31%), a distração da vida quotidiana (28%) e a partilha entre amigos e família (22%).
***
O estudo em
referência foi apresentado no dia 15 de fevereiro, numa sessão para a imprensa,
que contou com a intervenção da presidente da fundação Calouste Gulbenkian,
Isabel Mota, e com a presença dos três coordenadores: o investigador
coordenador do ICS da Universidade de Lisboa, José Machado Pais,
Pedro Magalhães, investigador principal no ICS da Universidade de Lisboa e
Miguel Lobo Antunes, jurista e gestor cultural português.
O professor
José Pais evidenciou a forte “clivagem”
de idades e de níveis de instrução entre os diferentes inquiridos, que
influencia a participação cultural. Com base nos resultados do estudo, é
claro que há atividades frequentadas só por indivíduos que possuem rendimentos
e níveis de escolaridade mais elevados, como os espetáculos eruditos e as
visitas a museus e monumentos históricos. Porém, são de destacar as “iniciativas promovidas na escola” como
forma de promover a participação cultural. Um dos exemplos é o PLN (Plano
Nacional de Leitura), que
fomenta o “gosto pela leitura”, uma mais-valia no panorama atual, em que mais
de metade da população não leu nenhum livro no último ano. Destaca-se também a
importância da escola na “educação artística” dos jovens. Depois, o
envolvimento em práticas culturais online tem vindo a ser
considerado uma forma de participação cultural com significado. Através da
análise do estudo, é possível perceber que determinados hábitos e práticas culturais transitaram para o digital e se
“intensificaram bastante” no período pandémico, sobretudo entre os
inquiridos mais jovens, como é o caso dos filmes, séries e leitura online.
É importante
referir que, em relação a práticas culturais desenvolvidas em espaços que estiveram
encerrados devido à covid-19, o seu questionamento teve por período de
referência os 12 meses anteriores ao início da pandemia. Assim sucedeu com a
frequência de bibliotecas, arquivos, museus, monumentos históricos, sítios
arqueológicos, galerias de arte, cinemas, teatros, circos, recintos ou espaços
abertos de espetáculos ao vivo, incluindo festivais e festas locais.
Na maioria
das restantes práticas culturais, o período de referência abrangeu os 12 meses
anteriores à realização das entrevistas. Estão neste caso os usos da Internet,
da televisão e da rádio ou as práticas de leitura, quando não realizadas em
bibliotecas ou arquivos.
A amostra
integra 2000 inquiridos,
que se distribuem por região de forma muito próxima da distribuição da população
residente com 15 ou mais anos: 35% residiam na região Norte, 27% na região da
Área Metropolitana de Lisboa, 22% na região Centro, 7% na região do Alentejo,
4% na região do Algarve, 2,5% na região da Madeira e 2,3% nos Açores. Desses,
43% viviam num habitat urbano, 39% em habitat rural e 18% em habitat intermédio
urbano.
2022.03.04 – Louro de Carvalho
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