sábado, 5 de março de 2022

Mais de metade dos portugueses não leu nenhum livro no ano 2022

 

É uma das conclusões dum estudo da Universidade de Lisboa para a Fundação Calouste Gulbenkian, dado que não surpreende os escritores que frequentaram os corredores do Correntes d’Escritas, o encontro anual de autores de línguas portuguesa e espanhola que decorreu de 23 a 28 de fevereiro na Póvoa de Varzim.

Afonso Cruz acredita que “40% não é um número assim tão desprestigiante para a leitura” e considera que a leitura, em comparação com outras atividades culturais, é um entretenimento difícil. Por exemplo, relativamente à música, uma vez que “as pessoas cantam e dançam em conjunto”, a aplicação torna-se “mais apetecível e gratificante”. Já a leitura remete-nos ao silêncio, à contemplação, à reflexão, a um fechamento. Assim, pode ser muito menos cativante que outras atividades culturais. Porém, a sua exigência de concentração induz a captação da beleza e a fruição do inefável, que outras expressões culturais mais dispersas dificilmente proporcionam.

Álvaro Laborinho Lúcio observa que o susodito volume percentual confirma “uma preocupação que já tinha” e defende que “o importante não é fazer uma avaliação estatística”, mas perceber as razões profundas que estão por trás da ausência de leitura. Em vez da leitura, as pessoas passaram a dedicar-se a outras formas de aproximação ao conhecimento e até à cultura. Por isso, considera importante valorizar o livro e perceber até que ponto “a educação e a escola podem ter um papel decisivo para estabelecer uma mudança”.

José Luís Peixoto diz encontrar muita gente que lê, mas “essas pessoas não são representativas da totalidade da população”. Como poeta e dramaturgo defende que “a leitura edifica e favorece a construção social de um país” e “considera crucial refletir sobre o real empenho perante esta área cultural”. Mais sugere aos que se preocupam com a falta de leitura dos outros que eles próprios leiam, pois, fazendo-o, dão “um passo muito determinante na valorização da leitura”.

Em comparação com Espanha, o estudo verificou que, “no último ano, 61% dos portugueses inquiridos não leram nenhum livro em papel, contra 38% dos espanhóis”. Assim, a realidade espanhola mostra-se diferente da portuguesa. O escritor espanhol Xosé Ramón Pena supõe que tal diferença se deve sobretudo a fatores sociais e históricos “que só com o tempo, investindo dinheiro em educação se podem corrigir”, mas aponta que “o número de leitores espanhóis não é assim tão alto comparativamente a outros países europeus”.

O contexto familiar e os hábitos que se criam na infância e adolescência podem ser algumas razões para os portugueses lerem pouco. Foi-se abandonando a leitura do livro e criaram-se outras formas acesso à cultura, ao conhecimento e à informação. Segundo Laborinho Lúcio, o gosto pela leitura passou a ser pouco avaliado criticamente e, “antes de se aprender a ler, é preciso criar leitores e ensinar às crianças a necessidade e o desejo de saber ler”: “o gostar de ler é fundamental”.

Afonso Cruz menciona algumas das medidas implementadas para contornar estes números, como o Plano Nacional de Leitura, a vasta rede de bibliotecas, a grande circulação de livros e até a acessibilidade aos livros. De facto, como vinca, “antes, as pessoas não tinham biblioteca em casa”, ao passo que agora é impensável entrar numa casa e não haver ao menos um livro. Ora, havendo acessibilidade, “é muito mais fácil chegar à leitura”. O escritor, referindo a problemática das assimetrias de classes sociais, da educação e do acesso à cultura, o que afeta as pessoas, diz: 

Há uma grande percentagem que não frequenta espaços culturais com medo de não serem capazes de fruir de um objeto artístico. Mas esse receio é que tem de ser combatido. Não é preciso ser um crítico, um grande intelectual ou ter um doutoramento para entrar num museu..

O estudo focou-se na análise das práticas culturais dos portugueses em 2020, através de inquérito a 2 mil pessoas, com 15 ou mais anos de idade a residir em Portugal. Quanto à leitura, mesmo em baixa percentagem, os portugueses ainda a veem como refúgio e leem por prazer, sobretudo os mais idosos e pessoas menos instruídas. Com efeito, como indica José Luís Peixoto, “os livros levam vida dentro e a leitura contribui para uma vida com sentido, portanto, se as pessoas dessa idade conseguem reconhecer isso, é parte da sua sabedoria certamente”.

Para os referidos escritores, a cultura é essencial, é por ela que o ser humano é educado. Afonso Cruz diz que “quanto mais acesso tivermos à leitura e quanto mais nos habituamos a esse contacto entre leitores, escritores, pessoas que não leem, que acham que não gostam de ler, é possível através de conversas um pouco informais, tal como estas são, encontrar novos leitores e criar uma nova rede humana”. José Luís Peixoto valoriza o encontro entre pessoas que escrevem e pessoas que leem, pois, apesar de não resolverem os problemas da leitura todos, ajuda a que surjam novos projetos, a que se cativem novos grupos e que mais pessoas cheguem à leitura”. E Xosé Ramón Pena considera que o importante não é o que os escritores dizem, mas o que refletem das conversas. Os eventos de encontro de escritores e leitores “são fundamentais” para promover o “gosto pelos livros e pela leitura”.

Em suma, o referido estudo, que os escritores que frequentaram os corredores do Correntes d’Escritas no âmbito da leitura, permite expor os seguintes dados:

Os portugueses leem pouco e os hábitos que se criam em casa podem ser uma das razões.

No primeiro ano da pandemia, 61% dos portugueses inquiridos não leram nenhum livro em papel, contra 38% dos espanhóis. 

A leitura de livros digitais foi feita por 10% dos inquiridos portugueses em comparação a 20% dos de Espanha.

À luz do que os dados do inquérito permitem apurar, o contexto familiar e as práticas incutidas na infância e adolescência têm influência nos hábitos de leitura. A maioria dos inquiridos revelou que nunca foi acompanhado pelos pais ou outro familiar a uma livraria, uma feira do livro ou a uma biblioteca. Além disso, 47% admitiu nunca ter recebido um livro e 54% nunca leu um livro de histórias. Estas podem ser algumas das razões para os portugueses lerem pouco e cada vez menos: uma realidade mais distante para os inquiridos mais jovens e aqueles cujos pais têm ou tinham qualificações académicas superiores, que reconhecem esse apoio familiar e usufruíram de mais experiencia de aproximação ao mundo do livro. Os dados denunciam a manutenção de assimetrias sociais na criação de hábitos de leitura e sinalizam uma mudança. O facto de os jovens de terem pais mais escolarizados que os das gerações mais velhas e, por isso, mais sensíveis ao valor cultural da leitura evidencia o importante elo de transmissão geracional: a democratização do acesso à educação potencia ganhos culturais nas gerações sucessoras.

Embora os números sejam baixos, os portugueses ainda encaram os livros como um refúgio.

A larga maioria dos inquiridos (68%) lê livros por prazer e a percentagem eleva-se com o avanço da idade, sendo maior nos mais idosos e os indivíduos de mais baixa instrução. Esta tendência não se verifica nos jovens dos 15 aos 24 anos, que leem para estudar ou fazer trabalhos escolares (45%). Porém, o privi­légio concedido à leitura por prazer verifica-se seja qual for a classe socioprofissional dos portugueses.

Os jornais são o objeto da cultura impressa com mais leitores, com 43% dos inquiridos a afirmarem que leram jornais em papel no último ano. Só depois vêm os livros, que contam com mais leitores que as revistas (39% e 32%, respetivamente). Também na esfera digital os jornais são a publicação mais lida (por 21% dos portugueses inquiridos), vindo só depois, a maior distância, os livros e as revistas (10% de leitores para ambos os formatos).

Enfim, há muito trabalho a fazer no sentido de criar leitores com gosto. Se o suporte digital de leitura é de fácil acesso e é bem-vindo, a incentivação à leitura em suporte de papel é benfazeja pela capacidade de concentração que suscita, pelo desenvolvimento psico-motor que desencadeia e pelo especial prazer que dá mexer no papel, ao mesmo tempo que não obriga à fixação permanente e unidirecional no objeto de leitura.

  2022.03.04 – Louro de Carvalho

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