São três fenómenos em crescendo no país a par do desemprego, que não se
cifra em números dramáticos, apesar da crise, mercê do esforço do Estado em colmatar,
embora a título transitório em muitos casos, as necessidades surgidas na administração
pública.
Em junho passado, acumulavam duas ocupações 238,5 mil portugueses, número que
representa um aumento de 11% desde o início da pandemia e que é notório sobretudo
nos serviços, atingindo preferencialmente perfis humanos mais qualificados e
sendo que os protagonistas do fenómeno garantem que nenhum dos encargos fica para
trás.
Tal situação tem como facilitador o sistema de teletrabalho, que impede ou
dificulta o controlo e fiscalização desta prestação cumulativa. E a pandemia
reforçou a criação do ambiente para tal.
Os gurus da gestão chamam overemployed (mais do que empregados) aos profissionais altamente qualificados que acumulam
dois (ou mais) empregos remotos. É a tendência do momento em vários
países e que Portugal acompanha muito bem. Os dados oficiais mostram que desde
o início da pandemia, mesmo com as restrições à atividade económica e as
empresas cautelosas nas contratações, o número de profissionais com duplo
emprego aumentou 11% em junho.
Os especialistas em recrutamento e gestão de carreiras falam de uma nova
era no mercado de trabalho, embora a tendência para a acumulação de dois
empregos, tipicamente em tempo parcial, não seja nova em Portugal.
A raiz histórica de baixos salários levou sempre um número significativo de
profissionais a procurar um segundo emprego para compor o orçamento familiar.
Em 2008, chegaram a ser 339 mil os profissionais que acumulavam dois empregos.
A estatística emagreceu ao longo dos anos e chegámos à pandemia com 214,9 mil
trabalhadores com dupla atividade, segundo rezam os dados disponibilizados pelo
INE (Instituto
Nacional de Estatística) relativos
ao 1.º trimestre de 2020. E, quando era expectável que este universo diminuísse
a reboque da paragem quase total da economia e das limitações ao despedimento
impostas pelos apoios do Estado à manutenção do emprego (com impacto
nas contratações),
verificou-se o inverso.
Entre o 1.º trimestre de 2020 e o 2.º de 2021, o número de trabalhadores
com duplo emprego no país aumentou para 238,5 mil. Os indicadores disponíveis
não permitem desagregação que dê pormenores sobre o perfil destes trabalhadores
(idade,
nível de qualificação e tipo de vínculo), mas deixam
inferir que o aumento é sustentado pelo setor dos serviços. Com efeito, o duplo
emprego diminuiu durante a pandemia em todos os setores – na agricultura recuou
44,5%, para 12,2 mil trabalhadores, na indústria, construção e energia 12,2%,
passando a abranger 12,4 mil trabalhadores –, exceto no dos serviços, onde
registou o aumento de quase 20% abrangendo, no 2.º trimestre deste ano, 213,5
mil trabalhadores, mais 35 mil que no início da pandemia.
Em geral, os protagonistas do duplo emprego acrescentam um considerável
adicional ao salário mensal. Contudo, mantêm a sua opção em sigilo, até porque
estão conscientes de que dividir o horário de trabalho entre dois empregadores
pode ser fundamento para despedimento com justa causa, embora, à partida, o
Código do Trabalho o não proíba desde que não traga dano para o empregador, sempre
alegável. E a gestão do quotidiano pode nem sempre ser fácil quando há sobreposição
de solicitações ou prazos para entrega de projetos muito próximos, mas é exequível
sobretudo para quem não tem grandes responsabilidades familiares ou para quem
trabalha com outro fuso horário (o que sucede cada vez com mais pessoas).
Estas asserções são corroboradas pelos especialistas e pelo mundo digital.
Na internet surgem comunidades dedicadas ao movimento overemployed, onde se
divulgam oportunidades de trabalho e se partilham dicas e estratégias para
viver com dois empregos a tempo inteiro sem deixar nenhum para trás. Sobre isto,
José Bancaleiro, diretor-geral da Stanton Chase e especialista em gestão de
carreiras e recrutamento de topo, diz que o fenómeno veio para ficar e
configura uma mudança de paradigma. Com efeito, mercê da imposição dos baixos
salários que caraterizam o país, sempre houve profissionais em Portugal forçados
a acumular dois ou mais empregos para ter um rendimento extra. E este fenómeno,
dantes mais comum em perfis com baixas qualificações e mais indiferenciados, ganhou,
com o teletrabalho, escala entre profissionais altamente qualificados – tendência
que veio para ficar, estribada num conjunto de mudanças estruturais no mercado
de trabalho que estão em andamento. Efetivamente o teletrabalho permitiu a
acumulação de dois empregos sem se sair de casa e globalizou o emprego e o
recrutamento. E a facilidade com que um trabalhador pode trabalhar, mesmo em
regime de horário completo, para empregadores estrangeiros sem sair de casa é um
canal aberto para a acumulação de empregos, até em fusos horários diferentes e
compatíveis.
É, segundo o Expresso, uma visão
que as plataformas de freelancers (prestadores de serviços) subscrevem. Em Portugal, a Fixando, plataforma direcionada para a disponibilização de
prestadores de serviços, registou um aumento de 72% no número de profissionais
inscritos na plataforma desde o início da pandemia, totalizando atualmente 52
mil profissionais. São pessoas disponíveis para prestar serviços a terceiros como
primeiro ou segundo emprego.
As pessoas percebem que podem gerir a sua vida profissional de diferentes
formas e aumentar o rendimento mensal com recurso à tecnologia. Todavia, esta
reviravolta pode não ser fácil de assimilar pelos patrões e há mínimos de
legalidade que têm de ser cumpridos e acautelados, pois não é expectável, por
exemplo, que o trabalhador sobreponha ocupações, realizando tarefas dum emprego
no horário de trabalho de outro, lesando ambos os empregadores, mas pode não
ser mal aceite que o trabalhador dedique o tempo que poupa em deslocações a
outra atividade, se assim o entender. Não obstante, este fenómeno emergente tem
efeito perverso no mercado de trabalho: o acentuar das desigualdades – isto
porque, em geral, a possibilidade de teletrabalho, maior facilidade em conciliar
dois empregos remotos e obtenção de rendimento adicional é predominante entre
profissionais mais qualificados e onde os salários praticados já são mais
elevados, o que pode agravar o fosso entre os mais bem pagos e os que têm
baixos salários. E, acima de tudo, viola os princípios do trabalho para todos e
do trabalho digno em termos de salário compatível com serviço prestado e
necessidades pessoais e familiares do trabalhador, como pode violar os
princípios da lealdade laboral e da sã concorrência. Não é por acaso que o
Estado exigia a apresentação de pedido de acumulação por parte dos servidores públicos.
Porém, como pagava (e paga) pouco, foi
fechando os olhos a esta petensão.
Na internet, tal como no mercado de trabalho, o movimento overemployed tem
obtido destaque, com a respetiva plataforma a servir de motor à revolução do
duplo emprego. Criada em abril por um utilizador anónimo que decidiu começar a
partilhar com outros profissionais dicas para gerir múltiplos empregos a tempo
inteiro, esta comunidade ganhou escala e agrega milhares de utilizadores em
todo o mundo. O fundador da comunidade tornou-se conhecido por conseguir
acumular dois empregos a tempo inteiro numa semana de 40 horas de trabalho. Na
plataforma, os utilizadores fornecem informação sobre a função que ocupam, o nível
de experiência e o segundo emprego que desempenham. Partilham dicas e
estratégias para assegurar dois empregos remotos a tempo inteiro, sem que
nenhum dos patrões descubra, mas também formas de evitar constrangimentos
legais e fiscais. A maioria dos membros ativos na plataforma procura um
rendimento adicional ou testar uma nova área antes de decidir uma mudança
laboral. Há quem acumule dois ou mais empregos. As partilhas realizadas indicam
que os profissionais trabalham sobretudo nas tecnologias de informação, no setor
financeiro ou nas funções de suporte.
***
Simultaneamente, verifica-se que mais de 40 mil
pessoas trabalham sem salário.
É preciso
recuar ao 4.º trimestre de 2010 para encontrar um número superior de
trabalhadores que exercem atividade sem remuneração ou, pelo menos, uma que
seja declarada. No 2.º trimestre de 2021, o INE contabilizava 40,7 mil
trabalhadores familiares não remunerados – um aumento de 142% face ao trimestre
homólogo de 2019 e de 206% face ao de 2020, que é também o 1.º trimestre afetado
em pleno pela pandemia que “fechou o país” a 16 de março do ano passado. Assim,
o país ganhou em 6 meses perto de 28 mil pessoas que trabalham, mas não ganham.
Uma das razões está na subida do salário mínimo num contexto de crise pandémica
e na consequente transferência de trabalhadores para a economia informal, quando
não para a economia subterrânea.
Para o INE, estes trabalhadores são “indivíduos que exercem uma atividade
independente numa empresa orientada para o mercado e explorada por um familiar,
não sendo, contudo, seus associados nem estando vinculados por um contrato de
trabalho”. Para integrarem este universo de “trabalhadores familiares não
remunerados”, hão de ter trabalhado pelo menos 15 horas na semana de referência
considerada no inquérito do INE. Eram 14,3 mil no 1.º trimestre de 2020, antes
de a pandemia atingir o país e a economia em força, mas agora são 40,7 mil.
Segundo João Cerejeira, economista do trabalho e professor da Escola de
Economia e Gestão da Universidade do Minho, apesar de este ser um indicador tendente
a sofrer algumas flutuações, trata-se de “um aumento estrondoso deste grupo de
trabalhadores que não deixa de levantar reservas”. Na verdade, o universo dos
trabalhadores familiares não remunerados foi recuando progressivamente em
Portugal na última década, recuo só contrariado por pequenos picos pontuais e
que representa um progresso significativo face ao início do milénio.
Embora os números não possam ser diretamente comparáveis, já que o INE
introduziu em 2011 uma quebra na série estatística, mostram que o universo
destes trabalhadores chegou a superar os 128 mil, no 4.º trimestre do ano 2000,
o valor mais alto até onde a síntese do INE permite recuar. Por isso, é
preocupante o aumento exponencial que este grupo de trabalhadores tem vindo a
registar desde o início do ano. E não estão em causa só os números. O perfil
dos profissionais é substancialmente diferente do registado há uma década ou
duas: agora, são pessoas que oscilam entre a atividade e inatividade com separação
muito ténue entre a economia formal e a informal. E, se os dados do INE não
permitem uma desagregação cabal das suas caraterísticas para traçar o perfil exato
destes trabalhadores, contudo, dão pistas. A maioria (26 mil) dos trabalhadores que integravam este grupo no 2.º trimestre
de 2021 são homens e, ao invés do que acontecia no passado, em que as
atividades agrícolas dominavam, são agora os serviços a concentrar quase metade
(20 mil) destes trabalhadores. Já não é uma população mais
idosa, pouco qualificada e voltada para a agricultura ou atividades de menor
valor acrescentado; hoje são hoje jovens, mais qualificados e que atuam
sobretudo nos serviços.
A inversão da tendência de queda do universo de trabalhadores não
remunerados para o seu aumento exponencial resulta da pandemia que deixou o
mercado de trabalho completamente desajustado e mudou a realidade do salário
mínimo, Para Cerejeira, o economista já referido, “os estudos mostram que
sempre que aumenta o salário mínimo aumentam também os contratos marginais à
lei”, ou seja, “para evitar o aumento da sua estrutura de custos, as empresas
passam alguns dos trabalhadores com contrato para a informalidade” (trabalho
não declarado).
Segundo Cerejeira, o aumento do salário mínimo nacional em janeiro em €30 euros,
para os €665, no cenário de crise pandémica, “poderá ter ampliado este efeito,
conduzindo ao aumento repentino deste universo de trabalhadores logo em
janeiro”, mas há outras causas, como a crise em que está mergulhado o setor da
restauração e hotelaria, muito associado à passagem à economia informal, e a
prorrogação dos subsídios de desemprego e alguns apoios concedidos aos trabalhadores
durante a pandemia – que podem também contribuir para o desequilíbrio do
mercado de trabalho e a alavancar alguma informalidade. Seja como for, o
fenómeno é sinal de uma disfuncionalidade no mercado, que pode ainda
prolongar-se.
O tema é tão preocupante que o combate à informalidade nas relações
laborais é uma das bandeiras da Agenda para o Trabalho Digno anunciada pelo
Executivo em julho, no âmbito da revisão da lei laboral que vem sendo desenhada
pelo Executivo e volta ao debate com os parceiros sociais em sede de
Concertação Social.
***
Enquanto aumenta o duplo emprego e o número de trabalhadores não remunerados,
damo-nos conta de que, em julho passado, o IEFP (Instituto do
Emprego e Formação Profissional) registou 23.236 vagas de emprego disponíveis que não mereceram interesse
por qualquer candidato, o valor mais elevado para um mês de julho desde 2017 (vd JN, edição do passado dia 13). Perto de metade destas vagas estão concentradas nos setores das
atividades imobiliárias e administrativas, alojamento e restauração e construção.
As ofertas de emprego sem candidatos quase duplicaram face às 12.705
registadas em julho do ano passado e superam as 19.294 observadas em igual mês
de 2019, ainda antes da pandemia.
Em termos geográficos, Lisboa e Vale do Tejo apresentava mais de 7.400
vagas sem interessados, seguindo-se o Centro, com 5.819, e o Norte, com 4.824.
Na base desta situação estará certamente a magreza dos salários, a falta de
perspetiva de carreira, a relutância em trabalhar fora do horário normal de
trabalho (jornada contínua, à noite, ao almoço, ao fim de semana, sem férias e julho
e agosto, etc.), alguma desviante gestão dos subsídios de emprego e outros, algum acolhimento
familiar facilitador.
***
Aumento do duplo emprego, trabalhadores familiares sem remuneração ou sem a
sua declaração (também em economia subterrânea: trabalho não
registado, biscataria, fuga ao fisco…) impõem a intervenção reguladora, fiscalizadora e pedagógica do Estado –
que faltam, como assinalam instâncias internacionais e urgem – em prol da equidade
e da justiça social, como impõem a consciência e a responsabilização
da sociedade civil.
Até quando este estado de coisas?
2021.09.17 – Louro de Carvalho
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