sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Duplo emprego, trabalho não pago e empregos sem candidatos

 

São três fenómenos em crescendo no país a par do desemprego, que não se cifra em números dramáticos, apesar da crise, mercê do esforço do Estado em colmatar, embora a título transitório em muitos casos, as necessidades surgidas na administração pública.

Em junho passado, acumulavam duas ocupações 238,5 mil portugueses, número que representa um aumento de 11% desde o início da pandemia e que é notório sobretudo nos serviços, atingindo preferencialmente perfis humanos mais qualificados e sendo que os protagonistas do fenómeno garantem que nenhum dos encargos fica para trás.

Tal situação tem como facilitador o sistema de teletrabalho, que impede ou dificulta o controlo e fiscalização desta prestação cumulativa. E a pandemia reforçou a criação do ambiente para tal.

Os gurus da gestão chamam overemployed (mais do que empregados) aos profissionais altamente qualificados que acumulam dois (ou mais) empregos remotos. É a tendência do momento em vários países e que Portugal acompanha muito bem. Os dados oficiais mostram que desde o início da pandemia, mesmo com as restrições à atividade económica e as empresas cautelosas nas contratações, o número de profissionais com duplo emprego aumentou 11% em junho.

Os especialistas em recrutamento e gestão de carreiras falam de uma nova era no mercado de trabalho, embora a tendência para a acumulação de dois empregos, tipicamente em tempo parcial, não seja nova em Portugal.  

A raiz histórica de baixos salários levou sempre um número significativo de profissionais a procurar um segundo emprego para compor o orçamento familiar. Em 2008, chegaram a ser 339 mil os profissionais que acumulavam dois empregos. A estatística emagreceu ao longo dos anos e chegámos à pandemia com 214,9 mil trabalhadores com dupla atividade, segundo rezam os dados disponibilizados pelo INE (Instituto Nacional de Estatística) relativos ao 1.º trimestre de 2020. E, quando era expectável que este universo diminuísse a reboque da paragem quase total da economia e das limitações ao despedimento impostas pelos apoios do Estado à manutenção do emprego (com impacto nas contratações), verificou-se o inverso.

Entre o 1.º trimestre de 2020 e o 2.º de 2021, o número de trabalhadores com duplo emprego no país aumentou para 238,5 mil. Os indicadores disponíveis não permitem desagregação que dê pormenores sobre o perfil destes trabalhadores (idade, nível de qualificação e tipo de vínculo), mas deixam inferir que o aumento é sustentado pelo setor dos serviços. Com efeito, o duplo emprego diminuiu durante a pandemia em todos os setores – na agricultura recuou 44,5%, para 12,2 mil trabalhadores, na indústria, construção e energia 12,2%, passando a abranger 12,4 mil trabalhadores –, exceto no dos serviços, onde registou o aumento de quase 20% abrangendo, no 2.º trimestre deste ano, 213,5 mil trabalhadores, mais 35 mil que no início da pandemia.

Em geral, os protagonistas do duplo emprego acrescentam um considerável adicional ao salário mensal. Contudo, mantêm a sua opção em sigilo, até porque estão conscientes de que dividir o horário de trabalho entre dois empregadores pode ser fundamento para despedimento com justa causa, embora, à partida, o Código do Trabalho o não proíba desde que não traga dano para o empregador, sempre alegável. E a gestão do quotidiano pode nem sempre ser fácil quando há sobreposição de solicitações ou prazos para entrega de projetos muito próximos, mas é exequível sobretudo para quem não tem grandes responsabilidades familiares ou para quem trabalha com outro fuso horário (o que sucede cada vez com mais pessoas).

Estas asserções são corroboradas pelos especialistas e pelo mundo digital. Na internet surgem comunidades dedicadas ao movimento overemployed, onde se divulgam oportunidades de trabalho e se partilham dicas e estratégias para viver com dois empregos a tempo inteiro sem deixar nenhum para trás. Sobre isto, José Bancaleiro, diretor-geral da Stanton Chase e especialista em gestão de carreiras e recrutamento de topo, diz que o fenómeno veio para ficar e configura uma mudança de paradigma. Com efeito, mercê da imposição dos baixos salários que caraterizam o país, sempre houve profissionais em Portugal forçados a acumular dois ou mais empregos para ter um rendimento extra. E este fenómeno, dantes mais comum em perfis com baixas qualificações e mais indiferenciados, ganhou, com o teletrabalho, escala entre profissionais altamente qualificados – tendência que veio para ficar, estribada num conjunto de mudanças estruturais no mercado de trabalho que estão em andamento. Efetivamente o teletrabalho permitiu a acumulação de dois empregos sem se sair de casa e globalizou o emprego e o recrutamento. E a facilidade com que um trabalhador pode trabalhar, mesmo em regime de horário completo, para empregadores estrangeiros sem sair de casa é um canal aberto para a acumulação de empregos, até em fusos horários diferentes e compatíveis.

É, segundo o Expresso, uma visão que as plataformas de freelancers (prestadores de serviços) subscrevem. Em Portugal, a Fixando, plataforma direcionada para a disponibilização de prestadores de serviços, registou um aumento de 72% no número de profissionais inscritos na plataforma desde o início da pandemia, totalizando atualmente 52 mil profissionais. São pessoas disponíveis para prestar serviços a terceiros como primeiro ou segundo emprego.

As pessoas percebem que podem gerir a sua vida profissional de diferentes formas e aumentar o rendimento mensal com recurso à tecnologia. Todavia, esta reviravolta pode não ser fácil de assimilar pelos patrões e há mínimos de legalidade que têm de ser cumpridos e acautelados, pois não é expectável, por exemplo, que o trabalhador sobreponha ocupações, realizando tarefas dum emprego no horário de trabalho de outro, lesando ambos os empregadores, mas pode não ser mal aceite que o trabalhador dedique o tempo que poupa em deslocações a outra atividade, se assim o entender. Não obstante, este fenómeno emergente tem efeito perverso no mercado de trabalho: o acentuar das desigualdades – isto porque, em geral, a possibilidade de teletrabalho, maior facilidade em conciliar dois empregos remotos e obtenção de rendimento adicional é predominante entre profissionais mais qualificados e onde os salários praticados já são mais elevados, o que pode agravar o fosso entre os mais bem pagos e os que têm baixos salários. E, acima de tudo, viola os princípios do trabalho para todos e do trabalho digno em termos de salário compatível com serviço prestado e necessidades pessoais e familiares do trabalhador, como pode violar os princípios da lealdade laboral e da sã concorrência. Não é por acaso que o Estado exigia a apresentação de pedido de acumulação por parte dos servidores públicos. Porém, como pagava (e paga) pouco, foi fechando os olhos a esta petensão.   

Na internet, tal como no mercado de trabalho, o movimento overemployed tem obtido destaque, com a respetiva plataforma a servir de motor à revolução do duplo emprego. Criada em abril por um utilizador anónimo que decidiu começar a partilhar com outros profissionais dicas para gerir múltiplos empregos a tempo inteiro, esta comunidade ganhou escala e agrega milhares de utilizadores em todo o mundo. O fundador da comunidade tornou-se conhecido por conseguir acumular dois empregos a tempo inteiro numa semana de 40 horas de trabalho. Na plataforma, os utilizadores fornecem informação sobre a função que ocupam, o nível de experiência e o segundo emprego que desempenham. Partilham dicas e estratégias para assegurar dois empregos remotos a tempo inteiro, sem que nenhum dos patrões descubra, mas também formas de evitar constrangimentos legais e fiscais. A maioria dos membros ativos na plataforma procura um rendimento adicional ou testar uma nova área antes de decidir uma mudança laboral. Há quem acumule dois ou mais empregos. As partilhas realizadas indicam que os profissionais trabalham sobretudo nas tecnologias de informação, no setor financeiro ou nas funções de suporte.

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Simultaneamente, verifica-se que mais de 40 mil pessoas trabalham sem salário.

É preciso recuar ao 4.º trimestre de 2010 para encontrar um número superior de trabalhadores que exercem atividade sem remuneração ou, pelo menos, uma que seja declarada. No 2.º trimestre de 2021, o INE contabilizava 40,7 mil trabalhadores familiares não remunerados – um aumento de 142% face ao trimestre homólogo de 2019 e de 206% face ao de 2020, que é também o 1.º trimestre afetado em pleno pela pandemia que “fechou o país” a 16 de março do ano passado. Assim, o país ganhou em 6 meses perto de 28 mil pessoas que trabalham, mas não ganham. Uma das razões está na subida do salário mínimo num contexto de crise pandémica e na consequente transferência de trabalhadores para a economia informal, quando não para a economia subterrânea.

Para o INE, estes trabalhadores são “indivíduos que exercem uma atividade independente numa empresa orientada para o mercado e explorada por um familiar, não sendo, contudo, seus associados nem estando vinculados por um contrato de trabalho”. Para integrarem este universo de “trabalhadores familiares não remunerados”, hão de ter trabalhado pelo menos 15 horas na semana de referência considerada no inquérito do INE. Eram 14,3 mil no 1.º trimestre de 2020, antes de a pandemia atingir o país e a economia em força, mas agora são 40,7 mil.

Segundo João Cerejeira, economista do trabalho e professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, apesar de este ser um indicador tendente a sofrer algumas flutuações, trata-se de “um aumento estrondoso deste grupo de trabalhadores que não deixa de levantar reservas”. Na verdade, o universo dos trabalhadores familiares não remunerados foi recuando progressivamente em Portugal na última década, recuo só contrariado por pequenos picos pontuais e que representa um progresso significativo face ao início do milénio.

Embora os números não possam ser diretamente comparáveis, já que o INE introduziu em 2011 uma quebra na série estatística, mostram que o universo destes trabalhadores chegou a superar os 128 mil, no 4.º trimestre do ano 2000, o valor mais alto até onde a síntese do INE permite recuar. Por isso, é preocupante o aumento exponencial que este grupo de trabalhadores tem vindo a registar desde o início do ano. E não estão em causa só os números. O perfil dos profissionais é substancialmente diferente do registado há uma década ou duas: agora, são pessoas que oscilam entre a atividade e inatividade com separação muito ténue entre a economia formal e a informal. E, se os dados do INE não permitem uma desagregação cabal das suas caraterísticas para traçar o perfil exato destes trabalhadores, contudo, dão pistas. A maioria (26 mil) dos trabalhadores que integravam este grupo no 2.º trimestre de 2021 são homens e, ao invés do que acontecia no passado, em que as atividades agrícolas dominavam, são agora os serviços a concentrar quase metade (20 mil) destes trabalhadores. Já não é uma população mais idosa, pouco qualificada e voltada para a agricultura ou atividades de menor valor acrescentado; hoje são hoje jovens, mais qualificados e que atuam sobretudo nos serviços.

A inversão da tendência de queda do universo de trabalhadores não remunerados para o seu aumento exponencial resulta da pandemia que deixou o mercado de trabalho completamente desajustado e mudou a realidade do salário mínimo, Para Cerejeira, o economista já referido, “os estudos mostram que sempre que aumenta o salário mínimo aumentam também os contratos marginais à lei”, ou seja, “para evitar o aumento da sua estrutura de custos, as empresas passam alguns dos trabalhadores com contrato para a informalidade” (trabalho não declarado).

Segundo Cerejeira, o aumento do salário mínimo nacional em janeiro em €30 euros, para os €665, no cenário de crise pandémica, “poderá ter ampliado este efeito, conduzindo ao aumento repentino deste universo de trabalhadores logo em janeiro”, mas há outras causas, como a crise em que está mergulhado o setor da restauração e hotelaria, muito associado à passagem à economia informal, e a prorrogação dos subsídios de desemprego e alguns apoios concedidos aos trabalhadores durante a pandemia – que podem também contribuir para o desequilíbrio do mercado de trabalho e a alavancar alguma informalidade. Seja como for, o fenómeno é sinal de uma disfuncionalidade no mercado, que pode ainda prolongar-se.

O tema é tão preocupante que o combate à informalidade nas relações laborais é uma das bandeiras da Agenda para o Trabalho Digno anunciada pelo Executivo em julho, no âmbito da revisão da lei laboral que vem sendo desenhada pelo Executivo e volta ao debate com os parceiros sociais em sede de Concertação Social.

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Enquanto aumenta o duplo emprego e o número de trabalhadores não remunerados, damo-nos conta de que, em julho passado, o IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) registou 23.236 vagas de emprego disponíveis que não mereceram interesse por qualquer candidato, o valor mais elevado para um mês de julho desde 2017 (vd JN, edição do passado dia 13). Perto de metade destas vagas estão concentradas nos setores das atividades imobiliárias e administrativas, alojamento e restauração e construção.

As ofertas de emprego sem candidatos quase duplicaram face às 12.705 registadas em julho do ano passado e superam as 19.294 observadas em igual mês de 2019, ainda antes da pandemia.

Em termos geográficos, Lisboa e Vale do Tejo apresentava mais de 7.400 vagas sem interessados, seguindo-se o Centro, com 5.819, e o Norte, com 4.824.

Na base desta situação estará certamente a magreza dos salários, a falta de perspetiva de carreira, a relutância em trabalhar fora do horário normal de trabalho (jornada contínua, à noite, ao almoço, ao fim de semana, sem férias e julho e agosto, etc.), alguma desviante gestão dos subsídios de emprego e outros, algum acolhimento familiar facilitador.

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Aumento do duplo emprego, trabalhadores familiares sem remuneração ou sem a sua declaração (também em economia subterrânea: trabalho não registado, biscataria, fuga ao fisco…) impõem a intervenção reguladora, fiscalizadora e pedagógica do Estado – que faltam, como assinalam instâncias internacionais e urgem – em prol da equidade e da justiça social, como impõem a consciência e a responsabilização da sociedade civil.

Até quando este estado de coisas?

2021.09.17 – Louro de Carvalho

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