terça-feira, 14 de setembro de 2021

Lições do Papa em Bratislava a 12 e 13 de setembro

 

A Liberdade na unidade para a contemplação e para a ação

No encontro ecuménico, a 12 de setembro, na Nunciatura Apostólica, Francisco sublinhou, ante os membros do Conselho Ecuménico das Igrejas na República Eslovaca, a fé cristã como semente de unidade e fermento de fraternidade, bem como a força capaz de fazer passar do conflito à comunhão. E, seguro de que o caminho das comunidades pôde ser retomado após os anos da perseguição ateia que impedia ou provava duramente a liberdade religiosa, advertiu que a vivência da fé em liberdade está sob a ameaça da tentação de voltar a ser escravos, não dum regime, mas da escravidão interior, que ainda é pior.

E, a ilustrar a sua advertência, focou-se na narrativa “O Grande Inquisidor”, de Dostoiévski, segundo a qual “Jesus voltou à terra e foi preso”. O inquisidor acusou-O de ter dado demasiada importância à liberdade dos homens, visto que eles, na simplicidade e natural desregramento, não podem sequer compreendê-la e têm medo dela. E interrogou-se porque “nada foi nunca tão insuportável para o homem e para a sociedade humana como a liberdade”. Depois, disse que “os homens estão dispostos a trocar” a liberdade por uma escravidão mais cómoda, a de sujeitar-se a quem decida por eles, desde que tenham pão e segurança; e censurou Jesus por não querer tornar-Se César para dominar a consciência dos homens e fazer a paz através da força, antes preferindo “a liberdade para o homem”, enquanto a humanidade só reivindica pão e pouco mais.

Por isso, o Santo Padre apelou à ajuda mútua para não se cair na armadilha do contentamento com “pão e pouco mais”, risco que “sobrevém quando a situação se normaliza” e nos acomodamos a uma vida tranquila. Assim, deixamos de almejar a liberdade em Cristo, cuja verdade nos torna livres, e almejamos a obtenção de espaços e privilégios.

E o Papa exortou a interrogações a partir do coração da Europa:

Será que nós, cristãos, perdemos um pouco o ardor do anúncio e a profecia do testemunho? É a verdade do Evangelho que nos faz livres, ou sentimo-nos livres quando alcançamos zonas de conforto que nos permitem gerir a vida e avançar tranquilos sem particulares contratempos? (…) Contentando-nos com pão e segurança, não perdemos o ímpeto na busca da unidade que Jesus implorou, unidade que certamente requer a liberdade madura de opções fortes, renúncias e sacrifícios, mas é a premissa para que o mundo creia?”.

A seguir, vincando que ali a evangelização nasceu de modo fraterno, com o selo dos santos Cirilo e Metódio, fez votos por que “eles, testemunhas dum cristianismo ainda unido e inflamado pelo ardor do anúncio, nos ajudem a continuar o caminho, cultivando entre nós a comunhão fraterna no nome de Jesus”, pois doutro modo, será incoerente reivindicar a retoma das raízes cristãs da Europa ou querer tirá-la das ideologias adversas estando os cristãos longe da unidade e da fraternidade. E “cálculos de conveniência, razões históricas e laços políticos” não podem ser obstáculos irremovíveis ao “caminho de unidade e fraternidade”.

Na perspetiva da encarnação da Palavra de Deus naquelas terras pela ação de Cirilo e Metódio, Francisco deixou duas sugestões para a hodierna difusão do Evangelho da liberdade e da unidade. A primeira diz respeito à contemplação, que, entre os povos eslavos, ultrapassa as conceptualizações filosóficas e teológicas a partir duma fé vivida que sabe acolher o mistério, cabendo aos cristãos ajudar o cultivo desta tradição espiritual de que a Europa tanto necessita, mormente redescobrindo “a beleza da adoração a Deus e a importância de não conceber a comunidade de fé primariamente segundo uma eficiência programática e funcional”; e a segunda diz respeito à ação, já que “a unidade não se alcança tanto com os bons propósitos e a adesão a qualquer valor comum, como sobretudo fazendo algo em conjunto pelos que mais nos aproximam do Senhor, os pobres, pois neles está presente Jesus. É a linha da caridade!

Por fim, exaltou o caráter sereno e acolhedor do povo eslovaco, a tradicional convivência pacífica entre todos e a colaboração em prol do bem do país, como elementos preciosos para o crescimento do Evangelho e a prossecução na rota ecuménica, “tesouro irrenunciável e valioso”.

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A simbologia do pão e do sal

No encontro com as Autoridades, a Sociedade Civil e o Corpo Diplomático, no Jardim do Palácio Presidencial, o Papa salientou a sua condição de peregrino num “país jovem, mas com uma história antiga” e “com raízes profundas” situado “no coração da Europa”. E, encontrando-se na “terra-de-meio”, territórios que serviram de fronteira ao Império Romano, foram locais de interação entre o cristianismo ocidental e oriental e, após anos de provações e conflitos, souberam integrar-se e distinguir-se de modo pacífico, convidou a Eslováquia a ser “uma mensagem de paz no coração da Europa”, tal como o sugere a grande faixa azul da bandeira nacional, a simbolizar a fraternidade com os povos eslavos de que tanto se necessita para promover uma integração cada vez mais necessária.

Frisando que a história eslovaca está marcada pela fé, fez votos por que esta “ajude a alimentar de modo conatural propósitos e sentimentos de fraternidade”, bebíveis nas vidas dos santos irmãos Cirilo e Metódio, que espalharam o Evangelho entre os cristãos do continente unidos e que ainda hoje unem as diversas Confissões desta terra.

E, aliando fraternidade e hospitalidade, disse admirar as típicas expressões da hospitalidade eslava, que oferece aos visitantes o pão e o sal, “preciosos dons, impregnados de Evangelho”.

Na verdade, é essencial o pão, escolhido por Deus para Se tornar presente entre nós, sendo que “a Escritura convida a não o acumular, mas a partilhá-lo”. Mais indica o Papa que o pão, “cuja fração evoca a fragilidade”, nos insta “a cuidar dos mais frágeis” e que “o pão partido e equitativamente partilhado releva a importância da justiça, de dar a cada um a oportunidade para se realizar”, o que postula o trabalho de construção de “um futuro onde as leis se apliquem equitativamente a todos, com base numa justiça que nunca se deixe comprar”, de modo que “a justiça não fique uma ideia abstrata, mas se torne concreta como o pão”, tendo de se travar “uma luta séria contra a corrupção começando por promover e difundir a legalidade”. Além disso, é de anotar que ao pão surge agregado o adjetivo “quotidiano”. Neste sentido, diz o Pontífice, “o pão de cada dia é o trabalho”; e, “como sem pão não há nutrição, também sem trabalho não há dignidade”. Por isso, uma sociedade justa e fraterna cultiva o direito de ser proporcionado a cada um o pão do trabalho, para ninguém se sentir marginalizado ou se ver constrangido a deixar a família e a terra de origem para lograr vida com dignidade.

Quanto ao sal, recordando o dito do Senhor “Vós sois o sal da terra”, o Santo Padre sublinha que “o primeiro símbolo que Jesus usa, ao ensinar os discípulos é o sal”, que dá sabor aos alimentos. Isto quer dizer que “não bastam estruturas organizadas e eficientes para tornar boa a convivência humana”, mas “é preciso sabor, o sabor da solidariedade, que parte da gratuita generosidade de quem se gasta pelos outros”. E, além do sabor aos alimentos, o sal garantia a sua conservação. Isto quer dizer que não se pode permitir que “os fragrantes sabores das vossas melhores tradições sejam estragados pela superficialidade do consumo e do lucro material” ou “pelas colonizações ideológicas”. Com efeito, dantes, “um pensamento único impedia a liberdade” e, “hoje, outro pensamento único esvazia-a de sentido, reduzindo o progresso ao lucro e os direitos a meras carências individualistas”. Ora, a Constituição eslovaca “menciona o anseio de construir o país sobre a herança dos Santos Cirilo e Metódio, padroeiros da Europa”. E, de facto, “este é o caminho: não a luta pela conquista de espaços e relevância, mas a via indicada pelos Santos, a via das Bem-aventuranças”, donde brota a visão cristã da sociedade.

No quadro plúrimo do sofrimento, Francisco assinalou que a pandemia, a provação do nosso tempo, ensinou como “é fácil, mesmo encontrando-nos em igual situação, separar-nos e cada qual pensar apenas em si mesmo”. Por isso, urge acolher a crise como apelo a repensar os nossos estilos de vida, sem culpar o passado, mas arregaçando as mangas para “construirmos o futuro juntos” e de “olhos voltados para o alto”, como na contemplação dos montes Tatra.  

Na verdade, os montes eslovacos “ligam numa única cadeia cimos e variegadas paisagens e estendem-se para além das fronteiras do país unindo diversos povos na sua beleza”. E o Papa exorta ao cultivo desta beleza, a beleza do conjunto, que requer paciência, fadiga, coragem e partilha, zelo e criatividade. “Mas é a obra humana que o Céu abençoa”.

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Uma Igreja que caminhe em conjunto e partilhe

No encontro com os bispos, sacerdotes, religiosos, seminaristas e catequistas, na Catedral de São Martinho, Francisco falou da Igreja que partilha as suas interrogações e as expectativas e esperanças da comunidade. De facto, “o estilo da primeira comunidade cristã era partilhar: mostravam-se assíduos e concordes, caminhavam juntos”. E o Papa vincou: “também litigavam, mas caminhavam juntos”. Assim, precisamos, não duma Igreja fortaleza ou potentado sobranceiro e autossuficiente, mas duma Igreja-comunidade que caminhe em conjunto e “deseje atrair para Cristo mediante a alegria do Evangelho”; que seja “o fermento que faz levedar, no seio da massa do mundo, o Reino do amor e da paz”; e que seja humilde como era Jesus, que Se despojou de tudo “e veio habitar entre nós e curar a nossa humanidade ferida”.

Precisamos duma Igreja que habite dentro da vida, dentro do mundo, acolhendo as interrogações e as expectativas do povo. O centro na Igreja é Cristo, não ela, e o seu objeto é o mundo. Assim, importa saber o que se espera da Igreja. E o Papa disse: liberdade, criatividade e diálogo.

Efetivamente, sem liberdade não há verdadeira humanidade, porque o ser humano foi criado livre e para permanecer livre. Porém, a liberdade não é conquista automática, que permanece igual duma vez por todas; é, antes, um caminho que se deve retomar continuamente. Para ser verdadeiramente livre, não basta sê-lo exteriormente ou nas estruturas da sociedade, mas requer-se a responsabilidade de cada um pelas próprias opções, o discernimento, o levar por diante os processos da vida. E o Pontífice recordou a este auditório a ficção de Dostoievsky que expôs no encontro ecuménico. De facto, o desejo de ver tudo pré-definido e regulado mata a liberdade que vem do Espírito. É preciso não ter medo de formar as pessoas para a relação madura e livre com Deus, na certeza de que “a Igreja de Cristo não quer dominar as consciências e ocupar os espaços, mas ser uma fonte de esperança na vida das pessoas”.

No âmbito da criatividade, o Bispo de Roma recordou que Cirilo e Metódio percorreram, juntos, esta parte do continente europeu e, ardendo de paixão pela proclamação do Evangelho, inventaram um novo alfabeto para a tradução da Bíblia, dos textos litúrgicos e da doutrina cristã, tornando-se apóstolos da inculturação da fé na região. E Francisco interrogou-se se hoje não será esta a tarefa mais urgente da Igreja nos povos da Europa: encontrar novos ‘alfabetos’ para anunciar a fé. Na verdade, o pano de fundo da tradição cristã não pode impedir a resposta adequada à vida de muitas pessoas, em que permanece a lembrança dum passado que já não lhes fala e deixa de pautar as opções da sua vida, dado que “o Evangelho não foi encerrado ainda; permanece aberto” e está cheio de vigor e criatividade. E podemos lançar mão da criatividade humana, mas o mais importante é estar com atenção ao grande criativo, o Espírito Santo.

Depois, fez um parêntesis para falar da importância da homilia, como o fez na “Evangelii gaudium”, visto que ela é “um sacramental” que “está no coração da Eucaristia” e é preciso criar contacto com as pessoas para que sejam inspiradas pelo texto bíblico. Para tanto, a homilia deve ser breve e, sobretudo deve possuir coerência interna: uma ideia, uma imagem e um afeto, de modo que as pessoas saiam com “uma ideia, uma imagem e algo que tocou o seu coração”.

E, no atinente ao diálogo, o Papa entende que “uma Igreja que forma para a liberdade interior e responsável, que sabe ser criativa mergulhando na história e na cultura, é uma Igreja que sabe dialogar com o mundo, com quem confessa Cristo sem ser dos nossos, com quem vive a fadiga duma busca religiosa e mesmo com quem não crê”; que, a exemplo de Cirilo e Metódio, une e mantém, juntos, Oriente e Ocidente, diferentes tradições e sensibilidades; e que, “anunciando o Evangelho do amor, faz brotar a comunhão, a amizade e o diálogo” entre os crentes, entre as diferentes confissões e entre os povos. Todavia, o Pontífice avisa que “a unidade, a comunhão e o diálogo” são frágeis, sobretudo quando há “uma história de sofrimento, que deixou cicatrizes”. E, se “a recordação das feridas pode fazer-nos cair no ressentimento”, também as feridas podem “ser passagem, abertura que, imitando as chagas do Senhor, fazem passar a misericórdia de Deus, a sua graça que muda a vida e nos transforma em obreiros de paz e reconciliação”. E “é muito evangélico” o provérbio eslovaco “A quem te atira uma pedra, tu dá-lhe um pão”.

Por fim, o Santo Padre faz votos por que a Igreja eslovaca continuem o seu caminho na liberdade do Evangelho, na criatividade da fé e no diálogo que brota da misericórdia de Deus, que nos fez irmãos e irmãs e nos chama a ser artífices de paz e concórdia.

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Não se pode obscurecer a imagem de Deus que brilha no homem

E, no encontro com a comunidade judaica, na Praça Rybné námestie, o Papa, enquanto peregrino para tocar este lugar e ser tocado por ele referiu que aquela praça é muito significativa para a comunidade judaica: durante vários séculos, fez parte do bairro judeu; ali trabalhou o rabino Chatam Sofer e havia uma sinagoga junto da Catedral da Coroação, dizendo-se que a arquitetura exprimia a convivência pacífica das duas comunidades, “sinal estupendo de unidade no nome do Deus de nossos pais”.

Depois, vincou que o nome de Deus foi desonrado na loucura do ódio, durante a II Guerra Mundial, tendo sido mortos mais de cem mil judeus eslovacos; e, para cancelar os vestígios da comunidade, foi demolida a sinagoga. O que fizeram, em nome de Deus, contra os judeus é blasfemo, pois contraria o que está escrito: “Não usarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão(Ex 20,7) e “viola a dignidade única e incomparável do homem, criado à imagem d’Ele”. E quantos opressores declararam: “Deus está connosco, mas eram eles que não estavam com Deus...” – medita o Pontífice. Assim, o Papa declara que a história dos judeus é a história dos cristãos – tantas vezes irmanados na perseguição e no sofrimento. E sente que “a memória não pode nem deve ceder lugar ao esquecimento, porque não haverá alvorada duradoura de fraternidade sem antes se ter compartilhado e dissipado as trevas da noite”.

Depois, assumindo que, para nós, “este é o tempo em que não se pode obscurecer a imagem de Deus que brilha no homem”, apelou a que nos ajudemos nisto, já que “também hoje não faltam ídolos vãos e falsos que desonram o nome do Altíssimo”. E apontou:

São os ídolos do poder e do dinheiro que prevalecem sobre a dignidade do homem, da indiferença que volta o olhar para o outro lado, das manipulações que instrumentalizam a religião, tornando-a uma questão de supremacia ou então reduzindo-a à irrelevância. E existem ainda o esquecimento do passado, a ignorância que justifica tudo, a raiva e o ódio. Estejamos unidos – repito – na condenação de toda a violência, de todas as formas de antissemitismo, e no empenho por que não seja profanada a imagem de Deus na criatura humana.”.

Não obstante, como disse Francisco, aquela praça é também um lugar onde brilha a luz da esperança. Ali vêm os judeus, todos os anos, acender a primeira luz no castiçal Chanukiá; e, “na obscuridade, aparece a mensagem de que não são a destruição e a morte a ter a última palavra, mas a renovação e a vida”. E, apesar de a sinagoga ter sido demolida, a comunidade está viva e aberta ao diálogo. Por isso – disse o Papa – “aqui afirmamos juntos, diante de Deus, a vontade de prosseguir no caminho da aproximação e amizade”.

Por fim, evocando o encontro em Roma, no ano de 2017, com os representantes das comunidades judaicas e cristãs, bem como a instituição da Comissão para o diálogo com a Igreja Católica, tendo-se publicado em conjunto importantes documentos, proclamou que “é bom partilhar e comunicar o que nos une” e “continuar, na verdade e com sinceridade, o caminho fraterno de purificação da memória para curar as feridas do passado, bem como a recordação do bem recebido e oferecido”. Com efeito, segundo o Talmud, “quem destrói um só homem destrói o mundo inteiro e quem salva um só homem salva o mundo inteiro”. Por isso, o Pontífice agradeceu as portas abertas de ambos os lados, portas abertas de que o mundo precisa, e pediu que a comunidade, “no meio de tanta discórdia que polui o nosso mundo”, seja sempre testemunha de paz. 

2021.09.14 – Louro de Carvalho

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