terça-feira, 28 de setembro de 2021

Começa a entediar a acusação aos portugueses de défice interpretativo

 

Precisamente no dia em que o Governo tomou e anunciou as medidas para a última fase de desconfinamento que vão entrar em vigor a 1 de outubro, Eurico Brilhante Dias, Secretário de Estado da Internacionalização, considerou que Portugal ficou a “ganhar” com a covid-19.

Não se pode pensar que tenha sido um lapsus linguae da parte do governante, que bem sabia que estava a dizer algo chocante, uma vez que advertiu: “vou dizer uma coisa que pode ser politicamente incorreta”.

Depois, a explicar o que não tem explicação, explanou a razão por que julga que nós ganhámos com a covid-19: “Portugal foi um país que, tendo as suas dificuldades, enfrentou a covid com bastante êxito”.

Ora, ainda que tivesse sido verdade, que o não foi totalmente… Uma pandemia que originou uma crise económica e social de todo o tamanho e provocou um terrível desconforto humano, por mais lucros que possa trazer, tem sempre perdas enormes em termos contabilísticos e perdas incalculáveis porque atinentes à vida humana, que não tem preço, a não ser o do sangue de Cristo na ótica dos crentes. 

Admite o Secretário de Estado que “evidentemente faleceram muitas pessoas” e que “passaram muito mal”. Porém, esqueceu que os serviços de saúde iam colapsando; as restantes doenças ficaram para trás durante muitos meses; o país quase parou economicamente; houve cercas sanitárias, confinamento, calamidade e emergência, funerais quase clandestinos, lutos por fazer, sequelas na saúde deixadas pela covid, a nível físico e a nível mental, relações familiares saturantes, eclipse dos eventos e mostras culturais e desportivas, quebras irreversíveis nas diversas valências do turismo, alteração drástica nos contactos sociais, incertezas a todos os níveis, multiplicação de gastos a nível da imunização e desinfeção e a nível dos equipamentos de proteção individual, que teimavam a não aparecer no mercado; faltava material de apoio à recuperação da suade, nomeadamente ventiladores; há conteúdos escolares e académicos não aprendidos cuja recuperação é muito difícil para muitos estudantes; cresceram as desigualdades.

E, sobretudo, as pessoas deixaram de se olhar cara a cara e criaram-se desconfianças mútuas!          

O governante apontou Portugal como “um país organizado que enfrentou uma realidade disruptiva com sucesso”. Que organização? Impôs-se a utilização das máscaras sem que se soubesse quem as forneceria, quando no ano anterior ao conhecimento da covid os chineses aqui residentes compravam as existentes e as usavam ou remetiam para o seu país de origem.

Figuras públicas certificaram-nos em março de 2020 de que a epidemia não aterraria em Portugal ou que os casos seriam residuais. Andámos atrás e à frente. Os materiais faltavam ou eram exorbitantemente caros ou vinham com manuais vertidos em língua não utilizada em Portugal pela maioria dos profissionais. E alguns enriqueceram à custa deste negócio.

É certo que tudo acabou por aparecer e encontrámos o rumo, mas custou e levou tempo. E isto, sem fazer contas às moratórias, aos equipamentos de proteção coletiva em estabelecimentos abertos ao público e aos gastos que o Estado despende em apoios diversos a empresas e trabalhadores e em vacinas…  

Como é que o Secretário de Estado da Internacionalização pôde afirmar que “rapidamente em 2020 fomos das primeiras economias a reabrir e a mostrar que a economia estava aberta e isso teve um efeito positivo sobre a marca Portugal”, quando os efeitos do confinamentos ainda estão por calcular? Até o Primeiro-Ministro, questionado sobre esta polémica, rejeitou comentar e disse: “Concentremo-nos no essencial”.

Segundo dados mais recentes da DGS, a pandemia já provocou 17.938 mortes em Portugal e o número de pessoas infetadas pelo coronavírus é superior a 1 064 876. É um ganho grande, não?!

É certo que se inventaram muitas atividades, muitas empresas se reconverteram, muitos modos de comunicação e de presença se descobriram e intensificaram e o país se relevantará, mas o tempo perdido não se recupera. O governante podia ter visto na crise uma oportunidade, mas nunca um ganho. 

Instado a um pedido de desculpas às famílias das vítimas diretas e indiretas da pandemia – letais ou não –, a desculpa, que não o é, recaiu sobre o entendimento incorreto das palavras do Secretário de Estado.

***

Fazendo apelo à memória, torna-se-me claro que é recorrente a colocação do ónus da culpa dos disparates de governantes e outras figuras públicas na interpretação errada que fazemos das suas declarações.

A este respeito – e para não estar a “pelourinhar” apenas um governante atual e só dum determinado partido – recordo que o então Ministro da Defesa Nacional, Fernando Nogueira, questionado por que motivo se reparou, nas OGMA, motor de avião da indonésia (que ocupava Timor-Leste), respondeu que não se sabia que o motor era da Indonésia, porque o motor foi entregue por uma firma francesa e “os motores não têm número nem marca de origem”. Disse-o perante a Assembleia da República e pela Televisão. Que diabo! Fazer de todos nós parvos…

E, se falarmos em comentadores, principalmente comentadores políticos, e até apresentadores de televisão, confrange a pretensa preocupação assaz expressa por que os portugueses em casa percebam ou a asserção que o povo não entende, as pessoas não percebem.

Recordo que Vítor Gaspar falava muito devagar para que deputados, jornalistas e portugueses em geral tomassem nota e percebessem. E a deputados e jornalistas até advertia: “vejam na página x ao fundo” ou “virem a página”.

E aqueles manuais do aplicador para as provas finais d 2.º e 3.º ciclos, fornecido pelo GAVE, ora IAVE-IP, tratavam o professor como um mentecapto escrevendo tudo o que este devia dizer aos alunos, incluindo coisas como: “minhas meninas e meus meninos”; “vira a página”; “para aí”; “revê o que fizeste e corrige”; “não assines”…

Farta tratarem-mos como incompetentes em hermenêutica elementar. É certo que há roídos de comunicação, mas a média dos portugueses está alfabetizada e, sobretudo, não quer receber lições dos políticos. Antes quer que eles sejam verdadeiros “poli-iatras”, ou cuidadores dos supremos interesses da pólis e do bem-estar dos cidadãos.

De resto, apesar do ambiente de medo promovido nalguns universos eleitorais e do regime de dependências criado por alguns caciques nacionais, regionais e locais, muitos cidadãos sabem muito bem distinguir em quem votar, o que se vê por algumas discrepâncias entre o voto de alguns eleitores para câmara municipal, assembleia municipal e assembleia de freguesia. E, se muitos alinham no status quo, fazem-no ao serviço dos seus interesses, na convicção de que quem está com o poder instituído tem benefícios e quem não está terá restos.

Se querem que nós os entendamos no melhor sentido, não falem ao virar da esquina. Pensem primeiro e falem a seguir.

Lembro que alguns políticos com responsabilidades governativas ou oposicionistas gostam de tratar os portugueses como crianças ou adolescentes explicando que algumas medidas branqueiam o problema sem o erradicarem, funcionando como a aspirina que não cura a doença, só ataca os sintomas. E, na sua iliteracia sanitária, um até quis combater o “vírus” (o SARS-CoV-2) com antibiótico. Só há um político – altamente colocado – que sabe mais que os especialistas das áreas da saúde. Só não refiro o seu nome para não beliscar a sua soberba modéstia. 

A palavra é como a pedra que nos sai da mão ao atirá-la: nunca sabemos aonde vai cair e quem vai atingir. Só a dominamos enquanto está do nosso lado. Por isso, temos de cuidar da sua emissão e receção em boas condições.

Ainda no domingo, a par dos discursos inflamados, admirei a inusual paciência do Primeiro-Ministro a responder aos jornalistas e a serenidade constrangida dum candidato derrotado a declarar que não iria analisar naquele momento os resultados eleitorais, mas que o povo votou e, como democrata, aceita os resultados.

A pari, vi o líder renovado da socialdemocracia satisfeito com os resultados do seu partido apesar de algumas baixas expectativas alimentadas por jornalistas e comentadores. Só notei uma duplicidade de critérios sobre sondagens. Gostou das que lhe davam o empate com vantagem em Coimbra e não das que davam a derrota em Lisboa. Por isso, propor que as sondagens ou não se façam ou se façam em condições é supor que as sondagens devem ser um instrumento infalível ou que são um fator perverso.

Ora, como toda a gente sabe, pode haver sondagens pagas para um determinado sentido e isso não é sério. Porém, as sondagens são um instrumento previsional e só valem como tal. De resto, podem falhar por várias razões: o retrato que as sondagens produzem das intenções de voto num determinado momento pode não ter sido representativo da realidade de então; pode o perfil do eleitor inquirido ser mais próximo de um ou de outro dos candidatos; pode haver alterações na intenção de voto entre o momento da sondagem e o da eleição; a amostra pode não ser suficientemente diversificada; os inquiridos podem ter mudado de intenção de voto ou não ter sido sinceros aquando do inquérito; pode haver um crescimento ou uma inversão da tendência sobre a perceção das qualidades ou dos deméritos dos candidatos; podem surgir danos ou benefícios colaterais, como pode surgir um determinado perfil de elemento saliente duma das candidaturas; e pode a publicação de sondagens gerar um efeito no eleitorado, mobilizador, ao verem o seu candidato em risco, ou desmobilizador, ao verem o seu candidato de pedra e cal.

Ora, como estamos num campo e atividade volúvel e perante dados de ciências sociais e humanas, estas coisas devem ser tratadas tendo em conta as diversas variáveis e jogar sempre e em tudo pelo seguro, não fazendo carregar os outros com o ónus das nossas culpas, sobretudo se exibicionistas, e não os tratar como ineptos de entendimento!

2021.09.28 – Louro de Carvalho

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