quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A vida na fé

 

Este é, neste dia 29 de setembro, o título da catequese do Papa na sua habitual audiência geral de quarta-feira, em que aborda um dos temas centrais do ensinamento paulino: a justificação.

Preliminarmente a esta reflexão, é de recordar que o Pontífice começou, a 23 de junho, a refletir com os seus espectadores e ouvintes sobre a doutrina da Carta aos Gálatas, sendo que, à data, sublinhou o cuidado evangelizador do Apóstolo que, após fundar Igrejas, continuava a acompanhá-las e a alertá-las para os perigos dos detratores do Evangelho e a repor a verdade da sã doutrina e da índole sadia dos usos e costumes que ela inspira. É o caso deste povo a quem outros tentaram pregar mensagem evangélica diferente da de Paulo.

No dia 30 de junho, o Santo Padre referiu-se ao perfil apostólico de Paulo como “verdadeiro conhecedor do mistério de Cristo” e apóstolo autêntico segundo a escolha direta do Cristo ressuscitado, como faz questão de lembrar aos Gálatas para que não restem dúvidas.       

Retomadas as catequeses semanais em 4 de agosto, depois da justificada pausa no mês de julho, como é usual, e em que se sujeitou a uma intervenção cirúrgica, o Papa desenvolveu o tema tão caro a Paulo da unicidade do Evangelho de Cristo. Tanto assim é que o apóstolo disse aos Gálatas que, mesmo que um anjo anuncie outro Evangelho, não podem acreditar porque é falso. 

A 11 de agosto, Francisco abordou a questão do valor da Lei de Moisés. Relacionada com a Aliança entre Deus e o Povo de Israel, ela funciona como caminho para a Nova e Eterna Aliança firmada em Cristo. E os missionários que se infiltraram entre os Gálatas tiveram a oportunidade de afirmar que a adesão à Aliança implicava a observância da Lei mosaica, como era na altura. Porém, é sobre este ponto que se descobre a inteligência espiritual de Paulo e as grandes intuições que expressou, sustentado pela graça que recebeu para a sua missão evangelizadora.

O apóstolo ensina que a Aliança com Deus e a Lei mosaica não estão indissoluvelmente ligadas. Na verdade, a Aliança estabelecida por Deus com Abraão fundava-se na fé no cumprimento da promessa, não na observância da Lei, que ainda não existia. E a Lei, que chegou centenas de anos mais tarde, “não pode anular a promessa”. Se a herança se obtivesse pela Lei, não proviria da promessa. A palavra “promessa” é muito importante: o povo de Deus caminha pela vida olhando para uma promessa, a que nos atrai para o encontro com o Senhor. Contudo, embora a Lei não integre a promessa, Paulo defende a sua origem divina e afirma que desempenha um papel específico na história da salvação, pois, apesar de não poder oferecer o cumprimento da promessa, é um caminho ou o pedagogo que leva ao encontro com Cristo. E esta postura doutrinal do apóstolo frisa a novidade radical da vida cristã: quem tem fé em Cristo é chamado a viver no Espírito, que liberta da Lei, levando-a ao cumprimento segundo o preceito do amor.

Na catequese de 18 de agosto, o tema é “o valor propedêutico da Lei”. É ponto assente que somos filhos da promessa e chamados à liberdade. Por isso, há que entender qual é o papel específico da Lei. A Lei foi ato da magnanimidade de Deus para com o povo. Era restritiva, mas protegia, educava, disciplinava e apoiava o povo na sua fraqueza, sobretudo face ao paganismo. Por isso, o apóstolo aponta a fase da menoridade: “enquanto o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja senhor de tudo, pois está sob o domínio de tutores e administradores, até ao dia determinado pelo pai; assim também nós, quando éramos meninos, estávamos subjugados pelos elementos do mundo(Gl 4,1-3). Assim, a convicção do Apóstolo é que a Lei tem uma função positiva: como pedagogo, leva em frente, mas a sua duração não pode ser prolongada, pois está ligada ao amadurecimento das pessoas e à sua escolha da liberdade. Mais: tal filiação torna-nos iguais: já não há homem ou mulher, livre ou escravo, judeu ou gentio; todos somos irmãos em Cristo.  

A 25 de agosto, o Papa advertiu para os perigos da Lei. O cumprimento frio e estrito da Lei leva ao ritualismo formal, à hipocrisia, ao medo da verdade, à falta de transparência, ao rigorismo. Por isso, necessita-se da obtenção e fruição da liberdade do Espírito.

A insensatez dos Gálatas dominou a catequese de 1 de setembro. Viveram a liberdade do Espírito e perceberam que toda a boa iniciativa parte de Deus, mas deixaram-se enrolar por falsos pregadores. Com as suas exigências em nome da Lei, criam a dúvida e a confusão, o que pode ser fatal para a vida na fé. Por isso, o apóstolo reitera aos Gálatas que o Pai “doa o Espírito abundantemente” e realiza obras maravilhosas entre eles. 

Na catequese de 8 de setembro, é acentuada a nossa condição de filhos de Deus. Paulo evidencia que a fé em Jesus Cristo permitiu que nos tornássemos verdadeiramente filhos de Deus e seus herdeiros. Nós, cristãos, damos frequentemente por certa esta realidade de filhos de Deus. E é bom recordar com gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para vivermos com maior consciência o grande dom recebido.

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Desta feita (a 22 falou da viagem ao coração da Europa), o Santo Padre Francisco trata, como se disse, o difícil tema da justificação. Justificar (do latim “iustum + facere”) consiste em tornar justo quem não o era. É um processo de mudança: nós, que éramos pecadores, fomos tornados justos, ou seja, apesar de termos pecados pessoais a cujo perdão estamos vocacionados e que obteremos pelo arrependimento, se possível, por mediação eclesial, “na base somos justos”.

Na Carta aos Gálatas e na Carta aos Romanos, Paulo insiste em que a justificação vem da fé em Cristo, não das obras da Lei (de Moisés). É verdade que mostramos que somos justos cumprindo os mandamentos, mas não é neles que está a justificação. O cumprimento deles é sintoma de que estamos na rota que Deus nos traçou com eles para chegarmos a Jesus Cristo, o Justo. É d’Ele que nos vem a justificação. Com efeito, cumprir os mandamentos de modo puramente formal ou sem referência a Jesus Cristo, o objeto da nossa fé, é prática inútil. O justo vive da fé em Cristo.    

E o que, segundo a ótica paulina, está por detrás da “justificação”, tão decisiva para a fé, “é a “misericórdia de Deus que oferece o perdão” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1990). E diz o Papa:

Este é o nosso Deus, tão bom, misericordioso, paciente, cheio de misericórdia, que continuamente doa o perdão, continuamente. Ele perdoa, e a justificação é Deus que perdoa desde o início a cada um, em Cristo. É a misericórdia de Deus que dá o perdão.”.

Depois, é de considerar que a misericórdia justificadora de Deus se manifesta de forma eminente na morte de Jesus na cruz. Portanto, devemos assumir que foi através da morte de Jesus que Deus destruiu o pecado e nos doou o perdão e a salvação de forma definitiva. Por isso, tornados justos, “os pecadores são acolhidos por Deus e reconciliados com Ele”. É o regresso à relação original entre Criador e criatura, que existia antes de emergir a desobediência do pecado. Assim, a justificação é a recuperação da inocência perdida.

Depois, é oportuno e salutar ver o modo como ocorre a justificação. E nisso descobrimos uma reconfortante novidade: “fomos justificados por pura graça”. Se, em termos humanos, é admissível que se pague para se ter justiça, na economia da salvação, a justiça – a que nos torna justos – é fruto exclusivo da gratuitidade de Deus. Pagou alguém por todos nós: Cristo.

De Jesus Cristo que morreu por nós vem a graça que o Pai concede a todos: a justificação vem pela graça. Não se compra, não se paga; não é nosso merecimento, mas de Cristo.

O Sumo Pontífice não se esquece de vincar que Paulo tem sempre na mente a experiência que lhe mudou a vida: o encontro luminoso com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco. Paulo era homem orgulhoso, religioso e zeloso, convicto de que a justiça consistia na escrupulosa observância dos preceitos. Porém, uma vez conquistado por Cristo, a fé n’Ele transformou-o até às profundezas, dando-lhe a descobrir a verdade escondida: “não somos nós que nos tornamos justos pelos nossos próprios esforços”, mas é “Cristo com a sua graça que nos torna justos”. E, para ter um conhecimento pleno do mistério de Jesus, Paulo está disposto a renunciar a tudo aquilo do que antes era rico (cf Fl 3,7), pois descobriu que só a graça de Deus o salvou. Fomos justificados ou salvos só pela graça, o que nos dá imensa confiança. Somos pecadores, mas seguimos o caminho da vida com a graça de Deus que nos justifica sempre que pedimos perdão.

Para o Apóstolo, a fé tem um valor total: toca toda a vida do crente, isto é, “desde o batismo até à partida deste mundo, tudo está impregnado pela fé na morte e ressurreição de Jesus, que concede a salvação”. E “a justificação pela fé enfatiza a prioridade da graça, que Deus oferece a todos os que acreditam no seu Filho sem distinção alguma”.

Todavia, não podemos concluir que a Lei mosaica não tenha valor; antes, continua a ser um dom irrevogável de Deus. Paulo até a chama de “santa” (Rm 7,12). De facto, é essencial observar os mandamentos, mas não podemos confiar na nossa força, pois é a graça do amor gratuito de Deus que recebemos em Cristo que é fundamental e nos leva a “amar de modo concreto”.

E Francisco, a complementar a doutrina paulina, evoca o discurso da Carta de Tiago no atinente ao binómio fé-obras. Com efeito, uma vez que a convicção de que é a fé em Cristo que justifica o homem pode levar – e levou muitos – à desvalorização da prática dos mandamentos e à desatenção aos deveres para com os outros, tem de se apelar à importância das obras que nos compete realizar em nome da fé. Não são as obras que nos justificam, mas o sangue de Cristo derramado amorosamente por nós como se se tratasse dum piedoso pelicano, o que nos convoca para a fé em Cristo, a exprimir nas obras, sem as quais é morta. Por isso, é bem-vinda a elocução jacobeia de que “o homem é justificado pelas obras e não somente segundo a fé”, pois, “tal como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta(Tg 2, 24.26). Por conseguinte, para Paulo e para Tiago, “a resposta da fé exige que sejamos ativos no amor a Deus e no amor ao próximo”, já que o amor nos salvou a todos, justificou-nos gratuitamente.

A justificação insere-nos na longa história da salvação, que mostra a justiça de Deus face às nossas quedas e insuficiências, que não se resignou, mas quis tornar-nos justos e fê-lo pela graça, através do dom de Jesus Cristo, na sua morte e ressurreição, bem ao estilo de Deus, que “é proximidade, compaixão e ternura”. E, segundo o Papa, a justificação é a maior proximidade de Deus a nós, a maior compaixão de Deus por nós, a maior ternura do Pai. A justificação é o dom de Cristo na morte e ressurreição de Cristo que nos liberta. Pecámos, mas na base somos justos e santos. Temos é que deixar que Jesus implemente em nós a justificação. “Somos santos na base e, pelas nossas ações, tornamo-nos pecadores. Então “deixemos que a graça de Cristo se eleve e a justiça nos dê força para ir em frente. E a luz da fé leva-nos reconhecer quão infinita é a misericórdia de Deus e a responsabilidade de colaborar com Deus praticando a misericórdia.

2021.09.29 – Louro de Carvalho

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