Este é, neste
dia 29 de setembro, o título da catequese do Papa na sua habitual audiência
geral de quarta-feira, em que aborda um dos temas centrais do ensinamento
paulino: a justificação.
Preliminarmente
a esta reflexão, é de recordar que o Pontífice começou, a 23 de junho, a
refletir com os seus espectadores e ouvintes sobre a doutrina da Carta aos Gálatas, sendo que, à data,
sublinhou o cuidado evangelizador do Apóstolo que, após fundar Igrejas,
continuava a acompanhá-las e a alertá-las para os perigos dos detratores do
Evangelho e a repor a verdade da sã doutrina e da índole sadia dos usos e
costumes que ela inspira. É o caso deste povo a quem outros tentaram pregar
mensagem evangélica diferente da de Paulo.
No dia 30 de
junho, o Santo Padre referiu-se ao perfil apostólico de Paulo como “verdadeiro
conhecedor do mistério de Cristo” e apóstolo autêntico segundo a escolha direta
do Cristo ressuscitado, como faz questão de lembrar aos Gálatas para que não
restem dúvidas.
Retomadas as
catequeses semanais em 4 de agosto, depois da justificada pausa no mês de
julho, como é usual, e em que se sujeitou a uma intervenção cirúrgica, o Papa
desenvolveu o tema tão caro a Paulo da unicidade do Evangelho de Cristo. Tanto
assim é que o apóstolo disse aos Gálatas que, mesmo que um anjo anuncie outro
Evangelho, não podem acreditar porque é falso.
A 11 de
agosto, Francisco abordou a questão do valor da Lei de Moisés. Relacionada com
a Aliança entre Deus e o Povo de Israel, ela funciona como caminho para a Nova
e Eterna Aliança firmada em Cristo. E os
missionários que se infiltraram entre os Gálatas tiveram a oportunidade de
afirmar que a adesão à Aliança implicava a observância da Lei mosaica, como era
na altura. Porém, é sobre este ponto que se descobre a inteligência espiritual
de Paulo e as grandes intuições que expressou, sustentado pela graça que
recebeu para a sua missão evangelizadora.
O apóstolo ensina que a Aliança com Deus e a Lei mosaica não estão indissoluvelmente
ligadas. Na verdade, a Aliança estabelecida por Deus com Abraão fundava-se na
fé no cumprimento da promessa, não na observância da Lei, que ainda não
existia. E a Lei, que chegou centenas de anos mais tarde, “não pode anular a
promessa”. Se a herança se obtivesse pela Lei, não proviria da promessa. A
palavra “promessa” é muito importante: o povo de Deus caminha pela vida olhando
para uma promessa, a que nos atrai para o encontro com o Senhor. Contudo,
embora a Lei não integre a promessa, Paulo defende a sua origem
divina e afirma que desempenha um papel específico na história da salvação,
pois, apesar de não poder oferecer o cumprimento da promessa, é um caminho ou o
pedagogo que leva ao encontro com Cristo. E esta postura doutrinal
do apóstolo frisa a novidade radical da vida cristã: quem tem fé em Cristo é
chamado a viver no Espírito, que liberta da Lei, levando-a ao cumprimento
segundo o preceito do amor.
Na catequese de 18 de agosto, o tema é “o valor propedêutico da Lei”. É
ponto assente que somos filhos da promessa e chamados à liberdade. Por isso, há
que entender qual é o papel específico da Lei. A Lei foi ato da magnanimidade
de Deus para com o povo. Era restritiva, mas protegia, educava, disciplinava e
apoiava o povo na sua fraqueza, sobretudo face ao paganismo. Por isso, o apóstolo
aponta a fase da menoridade: “enquanto o
herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja senhor de tudo, pois
está sob o domínio de tutores e administradores, até ao dia determinado pelo
pai; assim também nós, quando éramos meninos, estávamos subjugados pelos
elementos do mundo” (Gl 4,1-3). Assim, a convicção
do Apóstolo é que a Lei tem uma função positiva: como pedagogo, leva em frente,
mas a sua duração não pode ser prolongada, pois está ligada ao amadurecimento
das pessoas e à sua escolha da liberdade. Mais: tal filiação torna-nos iguais:
já não há homem ou mulher, livre ou escravo, judeu ou gentio; todos somos
irmãos em Cristo.
A 25 de agosto, o Papa advertiu para os perigos da Lei. O cumprimento
frio e estrito da Lei leva ao ritualismo formal, à hipocrisia, ao medo da
verdade, à falta de transparência, ao rigorismo. Por isso, necessita-se da
obtenção e fruição da liberdade do Espírito.
A insensatez dos Gálatas dominou a catequese de 1 de setembro. Viveram a
liberdade do Espírito e perceberam que toda a boa iniciativa parte de Deus, mas
deixaram-se enrolar por falsos pregadores. Com as suas exigências em nome da
Lei, criam a dúvida e a confusão, o que pode ser fatal para a vida na fé. Por
isso, o apóstolo reitera aos Gálatas que o Pai “doa o Espírito abundantemente”
e realiza obras maravilhosas entre eles.
Na catequese de 8 de setembro, é acentuada a nossa condição de filhos de
Deus. Paulo evidencia que a fé em Jesus Cristo permitiu que nos tornássemos
verdadeiramente filhos de Deus e seus herdeiros. Nós, cristãos, damos
frequentemente por certa esta realidade de filhos de Deus. E é bom recordar com
gratidão o momento em que nos tornamos tais, o do nosso batismo, para vivermos
com maior consciência o grande dom recebido.
***
Desta feita (a 22 falou da viagem ao coração da
Europa), o Santo Padre
Francisco trata, como se disse, o difícil tema da justificação. Justificar (do latim “iustum + facere”) consiste em
tornar justo quem não o era. É um processo de mudança: nós, que éramos
pecadores, fomos tornados justos, ou seja, apesar de termos pecados pessoais a
cujo perdão estamos vocacionados e que obteremos pelo arrependimento, se
possível, por mediação eclesial, “na base somos justos”.
Na Carta
aos Gálatas e na Carta aos Romanos,
Paulo insiste em que a justificação vem da fé em Cristo, não das obras da Lei (de Moisés). É verdade que mostramos que somos
justos cumprindo os mandamentos, mas não é neles que está a justificação. O
cumprimento deles é sintoma de que estamos na rota que Deus nos traçou com eles
para chegarmos a Jesus Cristo, o Justo. É d’Ele que nos vem a justificação. Com
efeito, cumprir os mandamentos de modo puramente formal ou sem referência a
Jesus Cristo, o objeto da nossa fé, é prática inútil. O justo vive da fé em
Cristo.
E o que,
segundo a ótica paulina, está por detrás da “justificação”, tão decisiva para a
fé, “é a “misericórdia de Deus que oferece o perdão” (Catecismo
da Igreja Católica, n. 1990). E diz o Papa:
“Este
é o nosso Deus, tão bom, misericordioso, paciente, cheio de misericórdia, que
continuamente doa o perdão, continuamente. Ele perdoa, e a justificação é Deus
que perdoa desde o início a cada um, em Cristo. É a misericórdia de Deus que dá
o perdão.”.
Depois, é de
considerar que a misericórdia justificadora de Deus se manifesta de forma
eminente na morte de Jesus na cruz. Portanto, devemos assumir que foi através
da morte de Jesus que Deus destruiu o pecado e nos doou o perdão e a salvação
de forma definitiva. Por isso, tornados justos, “os pecadores são acolhidos por
Deus e reconciliados com Ele”. É o regresso à relação original entre Criador e
criatura, que existia antes de emergir a desobediência do pecado. Assim, a
justificação é a recuperação da inocência perdida.
Depois, é
oportuno e salutar ver o modo como ocorre a justificação. E nisso descobrimos
uma reconfortante novidade: “fomos justificados por pura graça”. Se, em termos
humanos, é admissível que se pague para se ter justiça, na economia da
salvação, a justiça – a que nos torna justos – é fruto exclusivo da
gratuitidade de Deus. Pagou alguém por todos nós: Cristo.
De Jesus Cristo
que morreu por nós vem a graça que o Pai concede a todos: a justificação vem
pela graça. Não se compra, não se paga; não é nosso merecimento, mas de Cristo.
O Sumo
Pontífice não se esquece de vincar que Paulo tem sempre na mente a experiência
que lhe mudou a vida: o encontro luminoso com Jesus ressuscitado no caminho de
Damasco. Paulo era homem orgulhoso, religioso e zeloso, convicto de que a
justiça consistia na escrupulosa observância dos preceitos. Porém, uma vez
conquistado por Cristo, a fé n’Ele transformou-o até às profundezas, dando-lhe a
descobrir a verdade escondida: “não somos
nós que nos tornamos justos pelos nossos próprios esforços”, mas é “Cristo com a sua graça que nos torna justos”.
E, para ter um conhecimento pleno do mistério de Jesus, Paulo está disposto a
renunciar a tudo aquilo do que antes era rico (cf Fl 3,7), pois descobriu que só a graça de
Deus o salvou. Fomos justificados ou salvos só pela graça, o que nos dá imensa confiança.
Somos pecadores, mas seguimos o caminho da vida com a graça de Deus que nos
justifica sempre que pedimos perdão.
Para o
Apóstolo, a fé tem um valor total: toca toda a vida do crente, isto é, “desde o
batismo até à partida deste mundo, tudo está impregnado pela fé na morte e
ressurreição de Jesus, que concede a salvação”. E “a justificação pela fé
enfatiza a prioridade da graça, que Deus oferece a todos os que acreditam no
seu Filho sem distinção alguma”.
Todavia, não
podemos concluir que a Lei mosaica não tenha valor; antes, continua a ser um
dom irrevogável de Deus. Paulo até a chama de “santa” (Rm 7,12). De facto, é essencial observar os mandamentos, mas não podemos confiar
na nossa força, pois é a graça do amor gratuito de Deus que recebemos em Cristo
que é fundamental e nos leva a “amar de modo concreto”.
E Francisco,
a complementar a doutrina paulina, evoca o discurso da Carta de Tiago no atinente ao binómio fé-obras. Com efeito, uma vez
que a convicção de que é a fé em Cristo que justifica o homem pode levar – e
levou muitos – à desvalorização da prática dos mandamentos e à desatenção aos
deveres para com os outros, tem de se apelar à importância das obras que nos
compete realizar em nome da fé. Não são as obras que nos justificam, mas o
sangue de Cristo derramado amorosamente por nós como se se tratasse dum piedoso
pelicano, o que nos convoca para a fé em Cristo, a exprimir nas obras, sem as
quais é morta. Por isso, é bem-vinda a elocução jacobeia de que “o homem é justificado pelas obras e não
somente segundo a fé”, pois, “tal
como o corpo sem alma é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2, 24.26). Por conseguinte, para Paulo e para Tiago, “a resposta da fé
exige que sejamos ativos no amor a Deus e no amor ao próximo”, já que o amor
nos salvou a todos, justificou-nos gratuitamente.
A
justificação insere-nos na longa história da salvação, que mostra a justiça de
Deus face às nossas quedas e insuficiências, que não se resignou, mas quis
tornar-nos justos e fê-lo pela graça, através do dom de Jesus Cristo, na sua
morte e ressurreição, bem ao estilo de Deus, que “é proximidade, compaixão e
ternura”. E, segundo o Papa, a justificação é a maior proximidade de Deus a
nós, a maior compaixão de Deus por nós, a maior ternura do Pai. A justificação
é o dom de Cristo na morte e ressurreição de Cristo que nos liberta. Pecámos,
mas na base somos justos e santos. Temos é que deixar que Jesus implemente em
nós a justificação. “Somos santos na base e, pelas nossas ações,
tornamo-nos pecadores. Então “deixemos que a graça de Cristo se eleve e a
justiça nos dê força para ir em frente. E a luz da fé leva-nos reconhecer quão
infinita é a misericórdia de Deus e a responsabilidade de colaborar com Deus praticando
a misericórdia.
2021.09.29 – Louro de Carvalho
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