segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Servir torna-nos livres e mais semelhantes a Jesus

 

Foi a grande lição que o Papa Francisco deu aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, no domingo, dia 19, para a oração mariana do Angelus, ancorado no texto evangélico de Marcos (Mc 9,30-37) que, em consonância como a passagem do Livro da Sabedoria que o XXV domingo do Tempo Comum no Ano B assume como 1.ª leitura (Sb 2,12.17-20), faz assentar a grandeza da pessoa nos critérios de Deus, rejeitando os critérios do mundo.

O aludido extrato do Livro da Sabedoria mostra os ímpios a conspirar de muitas formas contra o justo, que os incomoda com a sua postura, e a maquinar a sua morte, para se verem livres dele. E, zombando, afirmam que pretendem verificar se é verdade o que ele diz, pois assegura que é filho de Deus e que Deus o assistirá e libertará das mãos dos ímpios, o que faz lembrar o sarcasmo dos zombadores que passam diante da Cruz do Senhor (cf Mc 15,29-32).

Porém, segundo Dom António Couto é de ter em consideração a passagem do Livro da Sabedoria 5,1-15, contraponto do presente capítulo. Lá se prevê que os ímpios provocadores e zombadores se reencontrarão, no dia do julgamento, com o justo que maltrataram. E, ao verem-no de pé, dirão apavorados e atónitos, entre soluços de angústia:

Este é aquele de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de chacota, nós, insensatos. Considerávamos loucura a sua vida e infame o seu fim. Como é que agora é contado entre os filhos de Deus e partilha a sorte dos santos?” (Sb 5,4-5).

E confessam:

Extraviámo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou para nós; para nós não nasceu o sol. Cansámo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição…” (Sb 5,6-7).

Esta figura do justo concretiza-se em Jesus de Nazaré, o Messias de Deus, que prescreve que o seu seguimento voluntário implica percorrer o caminho que Ele mesmo traçou, o caminho do serviço. Por isso, o Papa elege o serviço como o tema atitudinal que deve estar no centro da vida da Igreja e de cada cristão, de tal modo que, se alguém quer destacar-se entre os outros, que sirva mais, melhor e sempre. Com efeito, na ótica de Francisco, a da verdadeira Igreja discipular e missionária, “a nossa fidelidade ao Senhor depende de nossa disponibilidade em servir” e fica assente que “o serviço não nos diminui, antes nos faz crescer”. Mais: se servirmos os esquecidos, que não podem nos retribuir, “também nós recebemos o terno abraço de Deus”.     

Todas estas asserções papais afloraram diante dos peregrinos e turistas reunidos na Praça São Pedro para o tradicional encontro dominical, com a oração do Angelus, encontro em que Francisco começou por comentar a discussão entre os discípulos narrada por Marcos sobre quem entre eles era o maior. E citou a frase que Jesus disse a eles, uma frase “que vale também para nós hoje” – “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos” –, acrescentando que quem quiser ser o primeiro, deve ir para a fila, ocupar o último lugar “e servir a todos”. Foi isto que o Mestre fez e o discípulo não é mais que o mestre.

Este dizer de Jesus marca uma inversão nos critérios do que realmente importa. E o Papa vinca:

O valor duma pessoa não depende mais do papel que ela desempenha, do sucesso que tem, do trabalho que faz, do dinheiro no banco; não, não, não, não depende disso; a grandeza e o sucesso, aos olhos de Deus, têm um padrão, uma medida diferente: são medidos no serviço. Não no que se tem, mas no que se dá. Quer sobressair? Sirva. Este é o caminho.”.

Convicto de que “quanto mais servimos, mais sentiremos a presença de Deus”, o Santo Padre observa que, hoje em dia, a palavra ‘serviço’ “parece um pouco desbotada, desgastada pelo uso”, mas frisa que “no Evangelho tem um significado preciso e concreto”. De facto, em termos evangélicos, “servir não é uma expressão de cortesia: é fazer como Jesus”, o qual, resumindo em poucas palavras a sua vida, disse que veio “não para ser servido, mas para servir”. Portanto, se quisermos seguir Jesus, devemos percorrer o caminho que Ele traçou, o caminho do serviço.

Assumir este modo de ver o seguimento do Senhor postula a aceitação de que “a nossa fidelidade ao Senhor depende de nossa disponibilidade em servir”, disponibilidade que, em geral, custa e tem o olor e o “gosto da cruz”. Contudo, “à medida que aumenta o cuidado e a disponibilidade para com os outros, tornamo-nos mais livres interiormente, mais semelhantes a Jesus”, pois “quanto mais servimos, mais sentimos a presença de Deus, sobretudo quando servimos aqueles que não têm nada para nos restituir, os pobres, abraçando a suas dificuldades e necessidades, com a terna compaixão: e ali descobrimos ser, por sua vez, amados e abraçados por Deus”.

O Papa considerou que, para ilustrar a importância da doação gratuita, Jesus colocou uma criança entre os discípulos – “os gestos de Jesus são mais fortes que as palavras que usa”. Ora, no dizer do Pontífice, “a criança, no Evangelho não simboliza tanto a inocência, mas a pequenez”, já que “os pequenos, como as crianças, dependem dos outros, dos grandes, têm necessidade de receber”. Por isso, “Jesus abraça aquela criança e diz que quem acolhe um pequenino, uma criança, O acolhe a Ele”. E o Sumo Pontífice destaca:

Eis, antes de tudo, a quem servir: aqueles que têm necessidade de receber e não têm como retribuir. Acolhendo quem está à margem, abandonado, acolhemos Jesus, porque Ele está ali. E num pequeno, num pobre a quem servimos, também nós recebemos o terno abraço de Deus.”.

E Francisco sugeriu que, interpelados pelo Evangelho, nos interroguemos em claro exame da nossa consciência:

Eu, que sigo Jesus, interesso-me por quem é mais abandonado? Ou, como os discípulos naquele dia, estou em busca de gratificações pessoais? Entendo a vida como uma competição para abrir espaço para mim mesmo à custa dos outros ou acho que se sobressair significa servir? E, concretamente, dedico tempo a algum ‘pequeno’, a uma pessoa que não tem meios para retribuir? Cuido de alguém que não me pode retribuir ou apenas dos meus parentes e amigos?”.

Por fim, invocou a Virgem Maria, humilde serva do Senhor, para que “nos ajude a compreender que o serviço não nos diminui, mas nos faz crescer, e que há mais alegria em dar do que em receber”.

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Para saborearmos um pouco melhor o discurso papal, talvez seja conveniente olhar para a reflexão de Dom António Couto sobre a bietápica passagem evangélica em referência, inserida na chamada “secção do caminho” do Evangelho de Marcos.

Em primeiro lugar, no descendente caminho de Cesareia de Filipe para Cafarnaum, Jesus, a sós com os discípulos, repetidamente ensinava: “O Filho do Homem vai ser entregue por Deus nas mãos dos homens, que o matarão, mas, três dias depois de morto, ressuscitará(Mc 9,31). Assim, Jesus passará das nossas mãos violentas para as mãos afáveis do Pai. Jesus faz questão de ensinar clara e abertamente a sua paixão, morte e ressurreição, emergindo a violência das mãos humanas. Porém, aqueles discípulos de Jesus (e nós também) “não queriam compreender tais dizeres e temiam vir a compreendê-los. Até seria o medo de virem a compreendê-los que os impedia de fazer qualquer pergunta a Jesus (cf Mc 9,32).

Precisam de tempo os discípulos de Jesus para compreenderem que, se o modo de ser de Deus é o amor, então Ele tem de descer (baixar) ao nosso nível, envolvendo-se na mentira do nosso coração e na violência das nossas mãos, mas até amando a nossa violência “até ao fim e ao fundo”. Ora, tendo chegado a Cafarnaum e entrado na casa (a casa de Pedro), os discípulos são confrontados com a pergunta de Jesus acerca do assunto que vinham a debater no caminho: “Que discutíeis pelo caminho(Mc 9,33). E, se já antes não arriscaram a perguntar nada a Jesus, agora também não se atrevem a responder. E o evangelista fornece duas informações: eles calavam-se (silêncio continuado); e tinham disputado no caminho uns com os outros sobre quem seria o maior (cf Mc 9,34).

A pergunta de Jesus supõe diálogo e debate de ideias, mas a referência do evangelista faz pressupor uma competição e uma luta de interesses; e, enquanto Jesus ensina o caminho do amor humilde e oblativo, até ao fim, os discípulos preocupam-se com as grandezas.

Então, Jesus senta-se (no Evangelho de Marcos, Jesus só se senta três vezes), chama para Si os Doze e diz-lhes: “Se alguém quer ser o primeiro, será o último ‘de todos’ e o servo ‘de todos’.” (Mc 9,35). E continua a ensinar, agora com gestos e palavras: recebeu uma criança pequena (“paidíon”), colocou-a no meio deles e disse: “Quem receber uma destas crianças pequeninas no meu nome, recebe-me a Mim…(Mc 9,36-37).

E Dom António Couto anota que aquele “no meio” é o lugar mais importante e que aquele “no meu nome” quer dizer “ao jeito de Jesus”, ao estilo de Deus, como sublinha tantas vezes o Papa. E Jesus deixa claro que, para se receber uma criança pequenina, são precisas mãos maternais, que acariciam e dão vida, ao invés das mãos que agarram e matam, retratadas em Marcos 9,31. Por outro lado, a criança pequenina traduz todos os irmãos dependentes, cuja vida depende de nós, não nos sendo lícito abandoná-los e voltar-lhes as costas.

Por fim, há ter em conta que tanto se pode aprender com Jesus “na casa” como “no caminho”. E o que importa é aprender a descer, a abrir as mãos fechadas e armadas e a revestir-se de gestos de amor serviçais, maternais, afáveis.

Na verdade, Jesus, o justo, caminha por entre o sofrimento e a zombaria. E, como Ele e com Ele, hão de caminhar os discípulos. O fim é a glória da Ressurreição. Quereremos nós alinhar verdadeiramente no grupo dos discípulos de Cristo e ser seus arautos e irmãos?

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Também São Tiago (vd Tg 3,16-4,3) nos interpela sobre o modo como lemos o nosso mundo e o nosso coração. Assim, adverte que a inveja e a discórdia geram desordem e ações perversas, ao passo que a Sabedoria é pura, pacífica, conciliadora, misericordiosa, cheia de bons frutos, sem duplicidade, hipocrisia ou arrogância. E, de forma penetrante e pedagógica, pergunta:

Donde vêm as guerras e os conflitos entre vós? Não é das vossas paixões que lutam nos vossos membros?”.

E verifica:

Cobiçais e nada tendes; então, assassinais. Sois ciumentos e nada conseguis; então, entrais em conflitos e guerras. Não tendes, porque não pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal.”.

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Face a esta lição da Sabedoria, de Jesus e do Apóstolo, há que refletir, orar e agir. E o Salmo 54 ajuda. Com efeito, nesta súplica estão três agentes, o ‘eu’, que ora; eles (os inimigos); e Deus. E são três os momentos de oração: o passado de ventura; o presente de amargura; e o futuro esperançoso. Ora Deus está sempre do lado de quem ora, pelo que “o tempo está carregado de esperança”. Os inimigos são apontados como estranhos, gente fora da comunidade e longe de Deus, que não respeita Deus nem o modo de vida dos justos. Nestes termos, o Salmo guia a releitura da agressividade e zombaria, que a figura do ímpio estulto incarna, e mostra a segurança do justo, apesar da adversidade, pois tem Deus consigo.

Quando nos sentiremos nesta plena confiança em Deus e na sua paz?

2021.09.20 – Louro de Carvalho

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