Foi a grande
lição que o Papa Francisco deu aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro,
no domingo, dia 19, para a oração mariana do Angelus, ancorado no texto evangélico de Marcos (Mc 9,30-37) que, em consonância como a passagem do Livro da
Sabedoria que o XXV domingo do Tempo Comum no Ano B assume como 1.ª leitura (Sb 2,12.17-20), faz assentar a grandeza da pessoa nos critérios de
Deus, rejeitando os critérios do mundo.
O aludido extrato do Livro da Sabedoria mostra os
ímpios a conspirar de muitas formas contra o justo, que os incomoda com a sua
postura, e a maquinar a sua morte, para se verem livres dele. E, zombando,
afirmam que pretendem verificar se é verdade o que ele diz, pois assegura que é
filho de Deus e que Deus o assistirá e libertará das mãos dos ímpios, o que faz
lembrar o sarcasmo dos zombadores que passam diante da Cruz do Senhor (cf Mc 15,29-32).
Porém, segundo Dom António Couto é de ter em
consideração a passagem do Livro da Sabedoria 5,1-15, contraponto do presente
capítulo. Lá se prevê que os ímpios provocadores e zombadores se reencontrarão,
no dia do julgamento, com o justo que maltrataram. E, ao verem-no de pé, dirão apavorados
e atónitos, entre soluços de angústia:
“Este é aquele de quem outrora nos
ríamos, de quem fizemos alvo de chacota, nós, insensatos. Considerávamos
loucura a sua vida e infame o seu fim. Como é que agora é contado entre os
filhos de Deus e partilha a sorte dos santos?” (Sb 5,4-5).
E confessam:
“Extraviámo-nos do caminho da
verdade; a luz da justiça não brilhou para nós; para nós não nasceu o sol.
Cansámo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição…” (Sb 5,6-7).
Esta figura
do justo concretiza-se em Jesus de Nazaré, o Messias de Deus, que prescreve que
o seu seguimento voluntário implica percorrer o caminho que Ele mesmo traçou, o
caminho do serviço. Por isso, o Papa elege o serviço como o tema atitudinal que
deve estar no centro da vida da Igreja e de cada cristão, de tal modo que, se
alguém quer destacar-se entre os outros, que sirva mais, melhor e sempre. Com
efeito, na ótica de Francisco, a da verdadeira Igreja discipular e missionária,
“a nossa fidelidade ao Senhor depende de nossa disponibilidade em servir” e
fica assente que “o serviço não nos diminui, antes nos faz crescer”. Mais: se
servirmos os esquecidos, que não podem nos retribuir, “também nós recebemos o
terno abraço de Deus”.
Todas estas
asserções papais afloraram diante dos peregrinos e turistas reunidos na Praça
São Pedro para o tradicional encontro dominical, com a oração do Angelus, encontro em que Francisco
começou por comentar a discussão entre os discípulos narrada por Marcos sobre
quem entre eles era o maior. E citou a frase que Jesus disse a eles, uma frase
“que vale também para nós hoje” – “Se
alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a
todos” –, acrescentando que quem quiser ser o primeiro, deve ir para a
fila, ocupar o último lugar “e servir a todos”. Foi isto que o Mestre fez e o
discípulo não é mais que o mestre.
Este dizer
de Jesus marca uma inversão nos critérios do que realmente importa. E o Papa
vinca:
“O valor duma pessoa não depende
mais do papel que ela desempenha, do sucesso que tem, do trabalho que faz, do
dinheiro no banco; não, não, não, não depende disso; a grandeza e o sucesso,
aos olhos de Deus, têm um padrão, uma medida diferente: são medidos no serviço.
Não no que se tem, mas no que se dá. Quer sobressair? Sirva. Este é o caminho.”.
Convicto de
que “quanto mais servimos, mais sentiremos
a presença de Deus”, o Santo Padre observa que, hoje em dia, a palavra ‘serviço’ “parece um pouco desbotada,
desgastada pelo uso”, mas frisa que “no Evangelho tem um significado preciso e
concreto”. De facto, em termos evangélicos, “servir não é uma expressão de
cortesia: é fazer como Jesus”, o qual, resumindo em poucas palavras a sua vida,
disse que veio “não para ser servido, mas para servir”. Portanto, se quisermos
seguir Jesus, devemos percorrer o caminho que Ele traçou, o caminho do serviço.
Assumir este modo de ver o seguimento do Senhor postula a aceitação de
que “a nossa fidelidade ao Senhor depende de nossa disponibilidade em servir”,
disponibilidade que, em geral, custa e tem o olor e o “gosto da cruz”. Contudo,
“à medida que aumenta o cuidado e a disponibilidade para com os outros,
tornamo-nos mais livres interiormente, mais semelhantes a Jesus”, pois “quanto
mais servimos, mais sentimos a presença de Deus, sobretudo quando servimos
aqueles que não têm nada para nos restituir, os pobres, abraçando a suas
dificuldades e necessidades, com a terna compaixão: e ali descobrimos ser, por
sua vez, amados e abraçados por Deus”.
O Papa considerou que, para ilustrar a importância da doação
gratuita, Jesus colocou uma criança entre os discípulos – “os gestos de Jesus
são mais fortes que as palavras que usa”. Ora, no dizer do Pontífice, “a
criança, no Evangelho não simboliza tanto a inocência, mas a pequenez”, já que “os
pequenos, como as crianças, dependem dos outros, dos grandes, têm necessidade
de receber”. Por isso, “Jesus abraça aquela criança e diz que quem acolhe um pequenino,
uma criança, O acolhe a Ele”. E o Sumo Pontífice destaca:
“Eis, antes de tudo, a quem
servir: aqueles que têm necessidade de receber e não têm como retribuir.
Acolhendo quem está à margem, abandonado, acolhemos Jesus, porque Ele está ali.
E num pequeno, num pobre a quem servimos, também nós recebemos o terno abraço
de Deus.”.
E Francisco sugeriu que, interpelados
pelo Evangelho, nos interroguemos em claro exame da nossa consciência:
“Eu, que sigo Jesus, interesso-me
por quem é mais abandonado? Ou, como os discípulos naquele dia, estou em busca
de gratificações pessoais? Entendo a vida como uma competição para abrir espaço
para mim mesmo à custa dos outros ou acho que se sobressair significa servir?
E, concretamente, dedico tempo a algum ‘pequeno’, a uma pessoa que não tem
meios para retribuir? Cuido de alguém que não me pode retribuir ou apenas dos
meus parentes e amigos?”.
Por fim,
invocou a Virgem Maria, humilde serva do Senhor, para que “nos ajude a
compreender que o serviço não nos diminui, mas nos faz crescer, e que há mais
alegria em dar do que em receber”.
***
Para saborearmos um pouco melhor o discurso papal, talvez
seja conveniente olhar para a reflexão de Dom António Couto sobre a bietápica passagem
evangélica em referência, inserida na chamada “secção do caminho” do Evangelho
de Marcos.
Em primeiro lugar, no descendente caminho de Cesareia
de Filipe para Cafarnaum, Jesus, a sós com os discípulos, repetidamente
ensinava: “O Filho do Homem vai ser
entregue por Deus nas mãos dos homens, que o matarão, mas, três dias depois de
morto, ressuscitará” (Mc
9,31). Assim, Jesus
passará das nossas mãos violentas para as mãos afáveis do Pai. Jesus faz
questão de ensinar clara e abertamente a sua paixão, morte e ressurreição, emergindo
a violência das mãos humanas. Porém, aqueles discípulos de Jesus (e nós também) “não queriam compreender tais
dizeres e temiam vir a compreendê-los. Até seria o medo de virem a compreendê-los
que os impedia de fazer qualquer pergunta a Jesus (cf Mc 9,32).
Precisam de tempo os discípulos de Jesus para compreenderem
que, se o modo de ser de Deus é o amor, então Ele tem de descer (baixar) ao nosso nível, envolvendo-se na mentira do nosso
coração e na violência das nossas mãos, mas até amando a nossa violência “até
ao fim e ao fundo”. Ora, tendo chegado a Cafarnaum e entrado na casa (a casa de Pedro), os discípulos são confrontados com a
pergunta de Jesus acerca do assunto que vinham a debater no caminho: “Que discutíeis pelo caminho” (Mc 9,33). E, se já antes não arriscaram a
perguntar nada a Jesus, agora também não se atrevem a responder. E o
evangelista fornece duas informações: eles calavam-se (silêncio continuado); e tinham disputado no caminho uns
com os outros sobre quem seria o maior (cf Mc 9,34).
A pergunta de Jesus supõe diálogo e debate de ideias,
mas a referência do evangelista faz pressupor uma competição e uma luta de
interesses; e, enquanto Jesus ensina o caminho do amor humilde e oblativo, até
ao fim, os discípulos preocupam-se com as grandezas.
Então, Jesus senta-se (no Evangelho de Marcos, Jesus só se senta três vezes), chama para Si os Doze e diz-lhes: “Se alguém quer ser o primeiro, será o último
‘de todos’ e o servo ‘de todos’.” (Mc 9,35). E continua a ensinar, agora com gestos e palavras: recebeu uma criança
pequena (“paidíon”), colocou-a no meio deles
e disse: “Quem receber uma destas crianças
pequeninas no meu nome, recebe-me a Mim…” (Mc 9,36-37).
E Dom António Couto anota que aquele “no meio” é o
lugar mais importante e que aquele “no meu nome” quer dizer “ao jeito de Jesus”,
ao estilo de Deus, como sublinha tantas vezes o Papa. E Jesus deixa claro que,
para se receber uma criança pequenina, são precisas mãos
maternais, que acariciam e dão vida, ao invés das mãos que agarram e matam,
retratadas em Marcos 9,31. Por outro lado, a criança pequenina traduz todos os
irmãos dependentes, cuja vida depende de nós, não nos sendo lícito abandoná-los
e voltar-lhes as costas.
Por fim, há ter em conta que tanto se pode aprender
com Jesus “na casa” como “no caminho”. E o que importa é aprender a descer, a
abrir as mãos fechadas e armadas e a revestir-se de gestos de amor serviçais,
maternais, afáveis.
Na verdade, Jesus, o justo, caminha por entre o
sofrimento e a zombaria. E, como Ele e com Ele, hão de caminhar os discípulos.
O fim é a glória da Ressurreição. Quereremos nós alinhar verdadeiramente no grupo
dos discípulos de Cristo e ser seus arautos e irmãos?
***
Também São Tiago (vd Tg 3,16-4,3) nos interpela sobre o modo como lemos o nosso mundo e o
nosso coração. Assim, adverte que a inveja e a discórdia geram desordem e ações
perversas, ao passo que a Sabedoria é pura, pacífica, conciliadora,
misericordiosa, cheia de bons frutos, sem duplicidade, hipocrisia ou arrogância.
E, de forma penetrante e pedagógica, pergunta:
“Donde vêm as guerras e os
conflitos entre vós? Não é das vossas paixões que lutam nos vossos membros?”.
E verifica:
“Cobiçais e nada tendes; então,
assassinais. Sois ciumentos e nada conseguis; então, entrais em conflitos e
guerras. Não tendes, porque não pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal.”.
***
Face a esta lição da Sabedoria, de Jesus e do Apóstolo,
há que refletir, orar e agir. E o Salmo 54 ajuda. Com efeito, nesta súplica
estão três agentes, o ‘eu’, que ora; eles (os inimigos); e Deus. E são três os momentos de oração: o passado de ventura; o
presente de amargura; e o futuro esperançoso. Ora Deus está sempre do lado de
quem ora, pelo que “o tempo está carregado de esperança”. Os inimigos são
apontados como estranhos, gente fora da comunidade e longe de Deus, que não
respeita Deus nem o modo de vida dos justos. Nestes termos, o Salmo guia a
releitura da agressividade e zombaria, que a figura do ímpio estulto incarna, e
mostra a segurança do justo, apesar da adversidade, pois tem Deus consigo.
Quando nos sentiremos nesta plena confiança em Deus e
na sua paz?
2021.09.20 – Louro de Carvalho
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