segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Presidente da República não deve comentar a vida interna partidária

 

O constitucionalista Vital Moreira, no “Causa Nossa”, sustenta – e concordo – que não cabe ao Presidente da República (PR)enveredar pela especulação ou pela intriga político-partidária”, devendo, ao invés, “pautar-se pela discrição e pela imparcialidade em matéria partidária”.

E, além do seu entendimento dos poderes presidenciais à luz da Constituição, o académico sente-se confortavelmente acompanhado pelos comentários de Alexandre Homem Cristo, no “Observador”, e de José Miguel Júdice, no “Expresso”, ambos bastantes críticos da “última incursão presidencial no seu papel de compulsivo comentador político”, que fez manchete no “Expressocanal das opiniões não oficiais de Belém.

Para Moreira, é “incompatível com a função presidencial o papel  adicional de comentador político”, o qual não tem precedente em Portugal nem tem “paralelo noutras repúblicas não presidencialistas”, mormente quando os comentários têm por objeto a vida interna ou a orientação de partidos do Governo ou da oposição, visando exercer influência sobre eles. Aliás, os comentários do PR estão longe de ser anódinos ou inocentes.

Por outro lado, quando entender que deve tornar conhecidas as suas opiniões políticas, o PR deve assumir plenamente o ónus perante o público em vez de recorrer ao truque da transmissão por suposta fonte não identificada sob a capa do “diz-se no Palácio de Belém”, “fonte de Belém referiu”, “colaboradores do Presidente afirmam”, etc. Isso faz supor que o Presidente sabe das consequências do pensamento que está a exprimir por interpostas pessoas, tem-nas na intenção e não quer ser objeto de críticas por isso. Ademais, por os seus comentários não serem comprováveis, passará incólume pelos pingos de chuva que a crítica faça impender sobre o Palácio de Belém e seu inquilino. Salva-o ter um Primeiro-Ministro que tudo faz para evitar uma crise política de sua iniciativa e que vai dando uma no cravo e outra na ferradura, dizendo que não há divergências institucionais, embora haja pensamentos diferentes em determinadas matérias, mas que a cooperação entre órgãos de soberania está perfeita.

Ora, este tipo de atitudes belemitas não honram nem o comentador-mor compulsivo nem o veículo de transmissão para o público. E a Vital Moreira parece “evidente que, nesta missão, o ‘Expresso não passa de ‘ventríloquo’ direto de Belém” e “ou o semanário imputa as opiniões presidenciais diretamente a declarações expressas da sua real fonte ou identifica a sua suposta fonte intermediária em Belém. Com efeito, como assegura o eminente jurista, “a deontologia jornalística exclui fontes anónimas em matéria de opinião”. 

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Vem isto a propósito do facto de António Costa ter garantido, em entrevista a Miguel Sousa Tavares, transmitida pela TVI e TVI 24, que não se está a envolver nem nunca se envolverá na corrida para a sucessão no PS, negando ter aproveitado o congresso de Portimão para lançar a Ministra da Saúde como alternativa para baralhar a competição entre possíveis candidatos a secretário-geral como Pedro Nuno Santos, Ana Catarina Mendes, Fernando Medina e Mariana Vieira da Silva. Até disse que é “muito menos maquiavélico do que as pessoas pensam” e que “é preciso um país estar muito obcecado em inventar casos para não perceber uma ironia”, o que, segundo Costa, sucedeu quando disse a jornalistas que, no próximo congresso, Marta Temido já teria tempo de militância suficiente para poder ser candidata à liderança.

Reiterando a garantia de que só em 2023 decidirá sobre a sua manutenção (ou não) à frente do PS e enquanto primeiro-ministro, partindo do princípio de que o resultado das legislativas desse ano o permitam, afirmou que “ninguém toma essa decisão a dois anos de distância” e quando tem pela frente desafios como a pandemia e a aplicação e execução do PRR.

E, em cenário em que decida ter chegado a hora de abandonar a liderança socialista após avaliar os seus mandatos e ouvir a mulher, o partido e o país, o Primeiro-Ministro garantiu que não designará sucessores e não dará apoio a ninguém no dia em que decidir sair, esperando que “todos e todas se possam desenvolver”.

Mais disse que os partidos da oposição “não têm nenhuma alternativa a apresentar” – sendo tal apresentação algo que julga “fundamental para combater populismos” – e que “todos vão bater no PS”, parecendo incluir no rol as forças com que tem contado na aprovação do Orçamento.

Confrontado com as acusações de Jerónimo de Sousa no encerramento da Festa do Avante, de que o Governo prossegue “políticas de direita”, Costa optou por ser cáustico inquirindo:

Se eu me irritasse com os discursos de políticos e com o que dizem os comentadores, acha que ainda estava na vida política?”.

Sobre a possibilidade de Rangel suceder a Rio na liderança do PSD após o que o entrevistador antecipou poder vir a ser uma “vitória esmagadora” do PS, Costa disse não se meter na vida dos outros partidos. E, sobre a garantia, publicada em recente edição do “Expresso” de que Marcelo está convicto de que ele sairá do partido e do governo em 2023, sentenciou:

Não sou analista de analistas e muito menos de uma manchete feita com base numa fonte anónima que diz que ouviu alguém a dizer algo”.

Se ainda fosse comentador televisivo, Marcelo teria dito que o Congresso do PS foi a confirmação de que António Costa não se quer recandidatar em 2023. Mesmo assim, partilhou em Belém a sua análise de que “ele não se recandidata”. E, embora Costa nunca tenha garantido ao PR o que fará, a convicção consolidada no palácio cor-de-rosa (e há muito antecipada por Marques Mendes, sucessor de Marcelo nos comentários dominicais) é de que sairá no final da legislatura. Foi o próprio Primeiro-Ministro que admitiu, em entrevista ao “Expresso”, não se recandidatar e a alimentar o tabu, quando afirmou: “Decido em 2023 se me recandidato”. Mas, na análise do PR, não há tabu e as razões que levarão o chefe do Governo a anunciar em tempo útil a sua decisão prendem-se com desgaste pessoal e falta de perspetivas. Independentemente de conseguir ou não um lugar na Europa, Costa terá percebido que, mesmo que ganhe as próximas legislativas, não terá condições de governabilidade melhores que as atuais e não estará disposto a manter-se refém de maioria que não se baste a si própria (O PCP estará no limite do apoio ao Governo). E Costa dificilmente repetirá o feito da reeleição no partido com mais de 95% dos votos, mantendo, uma popularidade ímpar no país, sobretudo para quem está ininterruptamente há mais de 20 anos em funções executivas.

Em Belém, onde os sinais do Congresso de Portimão são considerados “muito claros, comenta-se que, se ele se recandidatar, corre pior. Aliás, “quem lançou o tema da sucessão foi ele próprio e só falou do futuro até 2023”. E, tendo um PRR e milhões de Bruxelas para executar até 2026, poderia ter aproveitado o Congresso para lançar uma agenda reformista para os próximos 5 anos, mas não o fez (não falou em regionalização, reforma do Estado, alteração do sistema político…); e, se não o fez, é por querer sair, sabendo que dificilmente sairá em alta após outra legislatura.

O facto de ter lançado o argumento da mulher que disse querer ouvir antes de tomar a decisão é apontado pelo PR como fator simbólico. De facto, sem garantias de conseguir o lugar de presidente do Conselho Europeu, que vaga em 2024, poderá candidatar-se ao Parlamento Europeu nas eleições que ocorrerão nesse ano; e, a partir daí, poderá ou candidatar-se a presidente do Parlamento Europeu ou tentar chegar ao cargo máximo no Conselho. Em caso de falha destas hipóteses, pode reservar-se para as eleições presidenciais de 2026 em Portugal.

Para Marcelo, a saída do Primeiro-Ministro com quem manteve parceria cordial não será boa notícia, sobretudo se a direita não ganhar as próximas legislativas. Havendo mais uma vitória da esquerda, “o mais cómodo” para o Presidente, dizem em Belém, seria ter Costa na governação. E a hipótese de Pedro Nuno Santos liderar o PS, virando o partido à esquerda e firmando entendimentos mais sólidos com o BE e com o PCP, complica a vida ao PR, que se limitará a repetir a frase da sua primeira vitória de há 5 anos: “O povo é quem mais ordena”.

De olhos postos na direita, de que espera novas a curto prazo sobretudo se Paulo Rangel se candidatar a líder do PSD, o PR não esconde o cenário que seria mais clarificador no confronto entre os dois candidatos mais fortes à esquerda e à direita: Marcelo pensava em Costa e Passos Coelho, o que o levou a confidenciar achou um erro Passos descartar regressar agora.

Sobre o desafio que António Costa lhe lançou no Congresso ao dizer esperar que o PR continue igual ao que foi no 1.º mandato, desafio que Carlos César, presidente do PS, secundou ao pedir “colaboração” ao Chefe de Estado, Marcelo vê-o como sinal de fraqueza. Com efeito, para os socialistas, viver os próximos 2 anos em perspetiva de fim de ciclo não será fácil e a bazuca não fará milagres se a ideia do chefe de Governo em saída se consolidar na opinião pública.

O Presidente tem três princípios de que não está disposto a ceder: estabilidade política até 2023, não a eleições antecipadas e exigência na execução da ‘bazuca’. A partir de 2023, na reta final do 2.º mandato, dependerá do resultado das legislativas. Se a direita ganhar, Marcelo verá a alternativa que almeja há anos; se a esquerda se aguentar, a perspetiva de 10 anos em Belém sem ver a sua família política chegar ao poder não o livrará da ira dos que o acusam de não ter feito o que podia para fragilizar o ‘costismo’. Seja como for, o PR terá a fase mais difícil de 2023 em diante, sobretudo se as legislativas não derem maioria absoluta a ninguém e o país continuar a ser governado à bolina. E a quem espera que Marcelo mude de registo, o recado percetível em Belém remete para a frase que o próprio disse no arranque do 2.º mandato:

O Presidente é o mesmo, as circunstâncias é que mudam”.

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Alexandre Homem Cristo diz que “já não há paciência para os jogos de Marcelo” e que “Portugal é um país onde os cidadãos são tratados como crianças, onde ninguém responde ao essencial” e onde o PR, “em vez de meter ordem nisto, investe em intrigas e jogos políticos”.

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Já José Miguel Júdice assinala que a postura do PR a anunciar o que vai acontecer no futuro em Portugal reveste, inevitavelmente, “a natureza de relevante facto político” e exprime a “vontade de influir na evolução do curso histórico”, pois um ator político com função tão cimeira não se limita à mera previsão. A sua previsão de um facto futuro interfere necessariamente no próprio processo histórico. E “Portugal é seguramente o único País do Mundo com um presidente que se dedica, de forma permanente e sistemática, ao comentário político”. Apesar de haver, no mundo, presidentes oriundos da polícia política ou que eram artistas cómicos, atores de segunda qualidade, jornalistas e até padres, tendo muitos continuado a agir como tinham aprendido, é de apontar que este caso é singular: alguém que dedica o melhor do seu tempo e brilhantíssimo cérebro ao comentário político e “parece que apenas exerce as suas funções presidenciais nas horas vagas que sobram, depois de descontar – antes da pandemia – os beijos e as selfies”.

Segundo Júdice, o PR não comenta às escondidas, antes estila os comentários de forma clara para os “media” e para quem o visita ou com ele tem audiências formais. Como o melhor comentador da história da democracia, é capaz de desempenhar a função de comentador-mor do Reino bem como a de Rei de Portugal e, sem dúvida, melhor do que a de PR. E os portugueses gostam: até o reelegeram de forma esmagadora e o reelegeriam de novo se tal fosse possível.

O problema é que, ao fazer comentário político, o PR altera mais a realidade político-social do que quando no passado inventava “factos políticos”. Por isso, objetiva e subjetivamente, quando Marcelo anuncia um facto futuro, está a desejar que isso aconteça ou a “plantar sementes da árvore a que se abrigar se algo correr mal e que se chama: eu avisei, não tenho culpa”.

O comentador-mor (também denominado papagaio-mor) prevê que António Costa abandonará a vida política em 2023, não se apresentando à eleição legislativa daqui a 2 anos na liderança do PS.

Esta afirmação do comentador, que exerce também a função presidencial, tem imediatos efeitos políticos: no PS, a luta pela sucessão será menos perigosa para quem a intente que a inércia cautelosa de incensar o Primeiro-Ministro e não lhe desagradar; no PSD, acelera-se a luta pela sucessão de Rio, não tendo os putativos candidatos de esperarem por nova derrota do líder daqui a 2 anos, pois Costa ganharia a qualquer candidato alternativo, o que desperta ambições; e, no país como um todo, aumenta a tendência para ver Costa como um “lame duck” (pato manco), o que fará nascer coragem por vários lados e esvaziar, em parte, o poder de que ele desfruta.

Pouco importa se a previsão se revelará correta. É impossível sabê-lo, até porque o Comentador-Presidente altera os dados da realidade com a sua intervenção. O que importa é perceber a intenção do PR com esta jogada política disfarçada de comentário ou análise.

O 1.º mandato presidencial tem como objetivo a reeleição e o segundo construir um lugar na História. E a questão é: se acabasse hoje o 2.º mandato, que ficaria do Presidente Marcelo para os livros de História? Ficariam, é certo, inúmeros méritos, mas, até agora, com dificuldade se encontra uma pegada histórica no seu percurso.

É certo que a hegemonia do PS lhe deixa pouco espaço, pois Costa antecipa e defende-se das armadilhas e a oposição de Direita é o que é. A opção presidencial de colagem ao PS em 5 anos não ajuda a que os portugueses acreditem numa alternativa que seria contra Marcelo na opinião pública. E é seguro que, se Costa se recandidatar em 2023, voltará a ganhar. E, nesse caso, os 10 anos presidenciais serão mais do mesmo e quem se tornará num “pato manco” será o Presidente.

Veremos se o esforço de comentador tem sucesso e se o Presidente-Comentador consegue criar as condições para que António Costa desista de se recandidatar. E, se falhar com esta hábil estratégia, dificilmente preservará um legado que resista à passagem do tempo.

O melhor será o PR remeter-se às funções presidenciais e cessar o comentário a torto e a direito, até para não ser acusado de extrapolar as suas funções e meter-se na vida partidária.

Cuide-se, pois está em jogo o seu prestígio e o seu papel histórico! Aliás, onde está o garante do regular funcionamento das instituições democráticas (cf art.º 120.º da CRP)? Os partidos políticos também são instituições democráticas (cf art.º 5.º da Lei dos Partidos Políticos) e são-no como tal reconhecidas pelo Tribunal Constitucional (cf art.º 14.º da referida Lei)

2021.09.12 – Louro de Carvalho

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