É sempre
a mesma cantilena. Um detentor de cargo político, um gestor público ou o
administrador duma grande empresa são apanhados em infração que possa
configurar um atropelo à ética ou mesmo constituir ilícito criminal e vem logo
uma das seguintes asserções: não há qualquer ilegalidade nem transgressão de
qualquer quadro ético, não se permitindo julgamentos de caráter, no caso de não
correr investigação por parte das autoridades judiciárias; e a justiça tem o
seu tempo e deve dar-se à política o que é da política e à justiça o que é da
justiça. Alguns alegam que não fizeram nada; outros estão esquecidos de tudo,
como foi o caso de Zeinal Bava; e outros apontam o dedo ao contabilista.
Declarações
do teor da não quebra da legalidade ou do quadro ético aplicável foram
produzidas recentemente pelo Presidente do PS e pelo Presidente da Assembleia
da República, a propósito da dupla subsidiação de viagens a deputados
insulares, mesmo não feitas, no que se defraudou o erário público no caso de
não terem sido efetuadas e se sobrecarregou no caso da dupla subsidiação, não
se tendo observado as normas gerais da contabilidade pública se se fez um
pagamento sem a apresentação do respetivo comprovativo. E a memória não longa
faz esquecer afirmações de teor semelhante em tempos idos, tal como uma visão
não imparcial não permite mirar situações de incumprimento que estão à vista de
todos, mas que ninguém vê, como é, por exemplo, a declaração de falsa morada
para obtenção de mais proveitos ou a elusão fiscal.
Quanto à
remessa dos casos de ilícito criminal ou de contraordenação de conotação
política remetidos para a justiça, temos vários, alguns dos quais
reiteradamente afirmados e outros pontuais. E isto sucede em vários partidos,
institutos públicos e empresas.
Está
quase esquecido o caso dos Secretários de Estado e de deputados apanhados nas
viagens para assistir a jogos de futebol a convite e a expensas da GALP.
Mantiveram-se os governantes nos cargos até que raiou no horizonte a
investigação por parte do Ministério Público (MP) e a iminência da constituição
de arguidos. Ora, as alegadas infrações deveriam, num país de sã democracia,
ter sido tratadas politicamente, sem que a justiça tivesse de intervir. E havia
várias formas, tais como a explicação parlamentar, o pedido de desculpas
público, a desvinculação do tratamento de assuntos de Estado relacionados com a
empresa e até a demissão – não ficando a investigação judiciária dispensada de
agir se entendesse que as medidas políticas não tinham sido suficientes para a
clarificação da situação.
A
questão de Manuel Pinho ter eventualmente proferido um despacho que
alegadamente beneficiou a EDP e prejudicou o Estado nos CMEC, sucedâneos dos
CAE, com a configuração de rendas excessivas para a elétrica, bem como as
suspeitas de haver recebido um suplemento pecuniário da parte do GES para
compensação de perda de vencimento pelo exercício de funções ministeriais,
constituiu abundante matéria de divulgação por parte da comunicação social. Por
isso mesmo e por se tratar de um antigo ministro da República, o caso merecia
um tratamento político adequado. Esse tratamento passaria necessariamente pela
demarcação do partido socialista e por uma comissão parlamentar de inquérito,
que deveria tentar saber toda a verdade para a expor aos portugueses. Não se
trata de ficar com vergonha ou de generalizar a culpabilização, mas da busca da
verdade e da reposição possível da fatia em causa nas contas públicas. E, sim,
as autoridades judiciárias que se encarregassem da vertente criminal.
É óbvio
que as autoridades judiciárias não estão imunes da autoria da confusão que se
lança na arena pública. Ora, se a PGR considera nulo o propalado despacho de
Pinho, porque não promoveu junto do competente tribunal administrativo o juízo
de declaração de nulidade para a devida produção de efeitos? E é caso para
perguntar se o Governo, após tomada de conhecimento desse parecer da Procuradoria-Geral
de República (PGR),
não poderia agir administrativamente e preparar a sua defesa face a uma
provável acusação por parte da EDP.
Depois,
como se viu pela declaração judicial de nulidade da acusação apresentada pelo MP,
a remissão dum problema para a justiça pode não o resolver. Com efeito, nem a
justiça é infalível e a declaração de nulidade baseia-se em aspetos formais,
que não de substância.
***
Sobre a
mesa do debate colocou-se, esta semana, a situação do Ministro-Adjunto Pedro Siza
Vieira. Trata-se de um advogado que foi convidado para suceder a Augusto
Cabrita por este ter passado a sobraçar a pasta da Administração Interna. Mas,
na véspera da sua tomada de posse como Ministro-Adjunto, criou em parceria com
a esposa uma empresa assumindo-se como sócio-gerente, cargo que desempenhou até
janeiro, momento em que se deu conta de estar em situação de incompatibilidade
face à Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, cuja última alteração foi introduzida
pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro.
Face à
ferroada infligida por parte da oposição no debate quinzenal com o
Primeiro-Ministro, este declarou que o Ministro não infringiu nenhum código de
conduta (mormente
o criado por este XXI Governo a partir do caso dos Secretários de Estado,
referido). É certo
que as objeções da oposição se referiam também à relação do governante com a China Three Gorges e à sua OPA à EDP.
Neste aspeto, o Chefe do Governo deu a cara pelo Ministro explicando que foi a
seu pedido e por seu encargo que o Ministro estudou a legalidade da OPA, dado o
seu conhecimento anterior (não atual) da empresa, desvinculando-se do
processo logo que este foi preliminarmente anunciado.
Se em
relação à China Three Gorges se
percebe não haver, pelo menos comprovadamente, quebra do código de conduta, em
relação à acumulação do desempenho do múnus ministerial com a gerência da empresa
há efetivamente uma infração à lei. E tanto o Ministro como o Chefe do Governo
deviam ter assumido publicamente essa infração e tratá-la politicamente. Terá sido
um lapso? Como é que um jurista não se apercebeu da incompatibilidade e cria
uma empresa na véspera da tomada de posse como governante? Não terá sido,
antes, uma tentativa na esperança de que o barro pegasse no muro sem que a
opinião pública fizesse o devido escrutínio? Num caso destes o caminho era a
demissão. E, se António Costa entendia que a demissão pela via exoneratória
seria uma medida precipitada, deveria consultar a PGR e seguir o seu parecer,
sem estar à espera de que a PGR tivesse acionado o mecanismo da suscitação da
pureza e da tempestividade da declaração de rendimentos e de património no
Tribunal Constitucional (TC).
E,
porque vem a talho de foice, é de criticar a pressa com que o Presidente do TC
veio declarar que este não falhou na análise das declarações. Nem era disso que
se tratava. Era simplesmente se aquele titular de cargo político tinha ou não
prestado declarações ao TC em devido tempo e se estas tinham sido completas e
conformes às circunstâncias do mesmo. E competiria à competente instância
administrativa pronunciar-se pela situação de incompatibilidade por parte do
Ministro-Adjunto. O Presidente do TC bem poderia ter-se escudado no seu
desconhecimento do caso em concreto e prometer humildemente tentar a averiguar
a verdade dos factos. Provavelmente a cátedra não lho permitiria!
***
Porém, o
caso mais clamoroso é o do antigo Primeiro-Ministro José Sócrates, acusado de
corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
O caso
vem de longe e rebentou pública e pomposamente em vésperas do Congresso do PS
em 2014. Aí, o Secretário-Geral do partido – tendo preliminarmente invocado a sua
sensibilidade pessoal marcada pela amizade e a sua experiência de antigo
Ministro da Justiça, que o induzia a não pronunciar-se sobre casos correntes na
justiça, deixando à justiça o que dela é – conseguiu que o incidente Sócrates
não fosse tema do Congresso, a contento da generalidade dos congressistas e com
a compreensão da opinião pública.
Não obstante,
as circunstâncias evoluíram e António Costa, que visitou o antigo
Secretário-Geral em Évora no estabelecimento prisional, repetia a cassete, não
se convencendo de que o assunto tinha de ser tratado politicamente. E Sócrates
ficou desgostoso por esta atitude neutra do partido. Dizem que foi a mesma que
tomara em relação a Ferro Rodrigues quando este se viu acossado pela suposta
teoria da cabala. Mas um caso não justifica outro. Ferro até se demitiu do
cargo de Secretário-Geral em rota de colisão com Jorge Sampaio, que não
dissolveu o Parlamento aquando da partida de Barroso para a UE.
É óbvio que
o percurso investigatório a Sócrates contribuiu para a não vitória eleitoral do
PS nas legislativas de 2015. Porém, o PS e o Governo, que resultou da
configuração de forças políticas no Parlamento, nunca trataram o caso do ponto
de vista político, enquanto a opinião pública era permanentemente bombardeada
por informação abundante e alegadamente fidedigna sobre peças do processo, mesmo
durante o tempo em que estava abrangido pelo segredo de justiça, e a defesa
tinha dificuldade em passar o contraditório de forma sustentável para o
público. Aí, ficaram os pontos pela mão do recluso n.º 44, que ganhou redobrado
fôlego quando saiu do Estabelecimento Prisional de Évora e, mais tarde, ao
ser-lhe retirada qualquer medida de coação.
E foi o
caso de Manuel Pinho que levou Sócrates à boleia nas declarações de vergonha de
Carlos César e de João Galamba, depois de Ana Gomes ter desafiado o PS a
explicar por que o partido se tornara asilo de corruptos. Ou seja, se não fosse
Pinho, Sócrates continuava sem tratamento. E foi um tratamento insuficiente o
que teve.
Agora, o
22.º Congresso do PS fala em José Sócrates para, a pretexto do 45.º aniversário
do partido, elogiar as políticas inovadoras e progressistas do antigo Primeiro-Ministro.
De resto, as questões jurídico-políticas passam ao lado. Alega-se que é preciso
tratar do futuro e do médio prazo. Só que tratar do futuro sem encarar o
presente e resolver o passado é meter a cabeça na areia. Assim, o PS perde a
oportunidade e o país fica sem uma alternativa de governação consistente. Não. O
Congresso – e já o pré-Congresso – devia tratar adequadamente o caso Sócrates. Se
não o faz, resta-lhe esperar pela paciência e poder de encaixe do recém-desfiliado,
o que é um risco.
E custaria
alguma coisa referir claramente que o PS assume a sua história de êxitos e
fracassos e que a sua governação cometeu alguns erros pelos quais já sofreu o
merecido juízo eleitoral dos cidadãos? Custaria muito declarar que o partido e
o XXI Governo lamentam os factos de que é indiciado o antigo Primeiro-Ministro,
que parecem configurar ilícitos criminais, os quais ficam desde já condenados
se vierem a comprovar-se judicialmente, mas ressalvando que a presunção de inocência
do acusado fica de pé até decisão transitada em julgado. Ademais, seria salutar
referir que em bom pano cai nódoa.
Por outro
lado, o partido e os antigos governantes com Sócrates deveriam pedir publicamente
desculpas por não se terem apercebido dos indícios de irregularidade que recaíram
sobre o antigo Primeiro-Ministro, porque é inadmissível crer e fazer crer que
ele tenha cometido tais erros sem cumplicidades de n governantes e assessores e 121 deputados. E deviam explicitamente
prontificar-se a promover, dentro do possível, a reparação dos erros.
Aliás, a
remissão pura e simples para a justiça teve um efeito perverso. Como o caso não
foi tratado politicamente nem pelo partido nem pelo Governo nem pelo
Parlamento, as autoridades judiciárias – por negócio, agenda política/protagonismo
político, fuga de informação ou excesso de complexidade – deixaram ou fizeram
transpirar para a opinião pública o teor das diversas peças processuais. Não se
fez o juízo político (o juízo político eleitoral sobre uma
pessoa não colhe numa situação destas; colhe sobre o partido, não sobre o
indivíduo), mas o juízo
condenatório dos cidadãos está feito. E, em termos judiciais, arriscamo-nos a
dormir para sempre com a presunção de inocência de José Sócrates.
A quem
aproveitará isto?
2018.05.26 –
Louro de Carvalho
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