sábado, 26 de maio de 2018

Recorrente e abusiva entrega de casos de conotação política à justiça


É sempre a mesma cantilena. Um detentor de cargo político, um gestor público ou o administrador duma grande empresa são apanhados em infração que possa configurar um atropelo à ética ou mesmo constituir ilícito criminal e vem logo uma das seguintes asserções: não há qualquer ilegalidade nem transgressão de qualquer quadro ético, não se permitindo julgamentos de caráter, no caso de não correr investigação por parte das autoridades judiciárias; e a justiça tem o seu tempo e deve dar-se à política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Alguns alegam que não fizeram nada; outros estão esquecidos de tudo, como foi o caso de Zeinal Bava; e outros apontam o dedo ao contabilista.
Declarações do teor da não quebra da legalidade ou do quadro ético aplicável foram produzidas recentemente pelo Presidente do PS e pelo Presidente da Assembleia da República, a propósito da dupla subsidiação de viagens a deputados insulares, mesmo não feitas, no que se defraudou o erário público no caso de não terem sido efetuadas e se sobrecarregou no caso da dupla subsidiação, não se tendo observado as normas gerais da contabilidade pública se se fez um pagamento sem a apresentação do respetivo comprovativo. E a memória não longa faz esquecer afirmações de teor semelhante em tempos idos, tal como uma visão não imparcial não permite mirar situações de incumprimento que estão à vista de todos, mas que ninguém vê, como é, por exemplo, a declaração de falsa morada para obtenção de mais proveitos ou a elusão fiscal.
Quanto à remessa dos casos de ilícito criminal ou de contraordenação de conotação política remetidos para a justiça, temos vários, alguns dos quais reiteradamente afirmados e outros pontuais. E isto sucede em vários partidos, institutos públicos e empresas.
Está quase esquecido o caso dos Secretários de Estado e de deputados apanhados nas viagens para assistir a jogos de futebol a convite e a expensas da GALP. Mantiveram-se os governantes nos cargos até que raiou no horizonte a investigação por parte do Ministério Público (MP) e a iminência da constituição de arguidos. Ora, as alegadas infrações deveriam, num país de sã democracia, ter sido tratadas politicamente, sem que a justiça tivesse de intervir. E havia várias formas, tais como a explicação parlamentar, o pedido de desculpas público, a desvinculação do tratamento de assuntos de Estado relacionados com a empresa e até a demissão – não ficando a investigação judiciária dispensada de agir se entendesse que as medidas políticas não tinham sido suficientes para a clarificação da situação.
A questão de Manuel Pinho ter eventualmente proferido um despacho que alegadamente beneficiou a EDP e prejudicou o Estado nos CMEC, sucedâneos dos CAE, com a configuração de rendas excessivas para a elétrica, bem como as suspeitas de haver recebido um suplemento pecuniário da parte do GES para compensação de perda de vencimento pelo exercício de funções ministeriais, constituiu abundante matéria de divulgação por parte da comunicação social. Por isso mesmo e por se tratar de um antigo ministro da República, o caso merecia um tratamento político adequado. Esse tratamento passaria necessariamente pela demarcação do partido socialista e por uma comissão parlamentar de inquérito, que deveria tentar saber toda a verdade para a expor aos portugueses. Não se trata de ficar com vergonha ou de generalizar a culpabilização, mas da busca da verdade e da reposição possível da fatia em causa nas contas públicas. E, sim, as autoridades judiciárias que se encarregassem da vertente criminal.
É óbvio que as autoridades judiciárias não estão imunes da autoria da confusão que se lança na arena pública. Ora, se a PGR considera nulo o propalado despacho de Pinho, porque não promoveu junto do competente tribunal administrativo o juízo de declaração de nulidade para a devida produção de efeitos? E é caso para perguntar se o Governo, após tomada de conhecimento desse parecer da Procuradoria-Geral de República (PGR), não poderia agir administrativamente e preparar a sua defesa face a uma provável acusação por parte da EDP.
Depois, como se viu pela declaração judicial de nulidade da acusação apresentada pelo MP, a remissão dum problema para a justiça pode não o resolver. Com efeito, nem a justiça é infalível e a declaração de nulidade baseia-se em aspetos formais, que não de substância.
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Sobre a mesa do debate colocou-se, esta semana, a situação do Ministro-Adjunto Pedro Siza Vieira. Trata-se de um advogado que foi convidado para suceder a Augusto Cabrita por este ter passado a sobraçar a pasta da Administração Interna. Mas, na véspera da sua tomada de posse como Ministro-Adjunto, criou em parceria com a esposa uma empresa assumindo-se como sócio-gerente, cargo que desempenhou até janeiro, momento em que se deu conta de estar em situação de incompatibilidade face à Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, cuja última alteração foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro.     
Face à ferroada infligida por parte da oposição no debate quinzenal com o Primeiro-Ministro, este declarou que o Ministro não infringiu nenhum código de conduta (mormente o criado por este XXI Governo a partir do caso dos Secretários de Estado, referido). É certo que as objeções da oposição se referiam também à relação do governante com a China Three Gorges e à sua OPA à EDP. Neste aspeto, o Chefe do Governo deu a cara pelo Ministro explicando que foi a seu pedido e por seu encargo que o Ministro estudou a legalidade da OPA, dado o seu conhecimento anterior (não atual) da empresa, desvinculando-se do processo logo que este foi preliminarmente anunciado.
Se em relação à China Three Gorges se percebe não haver, pelo menos comprovadamente, quebra do código de conduta, em relação à acumulação do desempenho do múnus ministerial com a gerência da empresa há efetivamente uma infração à lei. E tanto o Ministro como o Chefe do Governo deviam ter assumido publicamente essa infração e tratá-la politicamente. Terá sido um lapso? Como é que um jurista não se apercebeu da incompatibilidade e cria uma empresa na véspera da tomada de posse como governante? Não terá sido, antes, uma tentativa na esperança de que o barro pegasse no muro sem que a opinião pública fizesse o devido escrutínio? Num caso destes o caminho era a demissão. E, se António Costa entendia que a demissão pela via exoneratória seria uma medida precipitada, deveria consultar a PGR e seguir o seu parecer, sem estar à espera de que a PGR tivesse acionado o mecanismo da suscitação da pureza e da tempestividade da declaração de rendimentos e de património no Tribunal Constitucional (TC).
E, porque vem a talho de foice, é de criticar a pressa com que o Presidente do TC veio declarar que este não falhou na análise das declarações. Nem era disso que se tratava. Era simplesmente se aquele titular de cargo político tinha ou não prestado declarações ao TC em devido tempo e se estas tinham sido completas e conformes às circunstâncias do mesmo. E competiria à competente instância administrativa pronunciar-se pela situação de incompatibilidade por parte do Ministro-Adjunto. O Presidente do TC bem poderia ter-se escudado no seu desconhecimento do caso em concreto e prometer humildemente tentar a averiguar a verdade dos factos. Provavelmente a cátedra não lho permitiria!
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Porém, o caso mais clamoroso é o do antigo Primeiro-Ministro José Sócrates, acusado de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
O caso vem de longe e rebentou pública e pomposamente em vésperas do Congresso do PS em 2014. Aí, o Secretário-Geral do partido – tendo preliminarmente invocado a sua sensibilidade pessoal marcada pela amizade e a sua experiência de antigo Ministro da Justiça, que o induzia a não pronunciar-se sobre casos correntes na justiça, deixando à justiça o que dela é – conseguiu que o incidente Sócrates não fosse tema do Congresso, a contento da generalidade dos congressistas e com a compreensão da opinião pública.
Não obstante, as circunstâncias evoluíram e António Costa, que visitou o antigo Secretário-Geral em Évora no estabelecimento prisional, repetia a cassete, não se convencendo de que o assunto tinha de ser tratado politicamente. E Sócrates ficou desgostoso por esta atitude neutra do partido. Dizem que foi a mesma que tomara em relação a Ferro Rodrigues quando este se viu acossado pela suposta teoria da cabala. Mas um caso não justifica outro. Ferro até se demitiu do cargo de Secretário-Geral em rota de colisão com Jorge Sampaio, que não dissolveu o Parlamento aquando da partida de Barroso para a UE.
É óbvio que o percurso investigatório a Sócrates contribuiu para a não vitória eleitoral do PS nas legislativas de 2015. Porém, o PS e o Governo, que resultou da configuração de forças políticas no Parlamento, nunca trataram o caso do ponto de vista político, enquanto a opinião pública era permanentemente bombardeada por informação abundante e alegadamente fidedigna sobre peças do processo, mesmo durante o tempo em que estava abrangido pelo segredo de justiça, e a defesa tinha dificuldade em passar o contraditório de forma sustentável para o público. Aí, ficaram os pontos pela mão do recluso n.º 44, que ganhou redobrado fôlego quando saiu do Estabelecimento Prisional de Évora e, mais tarde, ao ser-lhe retirada qualquer medida de coação.
E foi o caso de Manuel Pinho que levou Sócrates à boleia nas declarações de vergonha de Carlos César e de João Galamba, depois de Ana Gomes ter desafiado o PS a explicar por que o partido se tornara asilo de corruptos. Ou seja, se não fosse Pinho, Sócrates continuava sem tratamento. E foi um tratamento insuficiente o que teve.
Agora, o 22.º Congresso do PS fala em José Sócrates para, a pretexto do 45.º aniversário do partido, elogiar as políticas inovadoras e progressistas do antigo Primeiro-Ministro. De resto, as questões jurídico-políticas passam ao lado. Alega-se que é preciso tratar do futuro e do médio prazo. Só que tratar do futuro sem encarar o presente e resolver o passado é meter a cabeça na areia. Assim, o PS perde a oportunidade e o país fica sem uma alternativa de governação consistente. Não. O Congresso – e já o pré-Congresso – devia tratar adequadamente o caso Sócrates. Se não o faz, resta-lhe esperar pela paciência e poder de encaixe do recém-desfiliado, o que é um risco.
E custaria alguma coisa referir claramente que o PS assume a sua história de êxitos e fracassos e que a sua governação cometeu alguns erros pelos quais já sofreu o merecido juízo eleitoral dos cidadãos? Custaria muito declarar que o partido e o XXI Governo lamentam os factos de que é indiciado o antigo Primeiro-Ministro, que parecem configurar ilícitos criminais, os quais ficam desde já condenados se vierem a comprovar-se judicialmente, mas ressalvando que a presunção de inocência do acusado fica de pé até decisão transitada em julgado. Ademais, seria salutar referir que em bom pano cai nódoa.
Por outro lado, o partido e os antigos governantes com Sócrates deveriam pedir publicamente desculpas por não se terem apercebido dos indícios de irregularidade que recaíram sobre o antigo Primeiro-Ministro, porque é inadmissível crer e fazer crer que ele tenha cometido tais erros sem cumplicidades de n governantes e assessores e 121 deputados. E deviam explicitamente prontificar-se a promover, dentro do possível, a reparação dos erros.
Aliás, a remissão pura e simples para a justiça teve um efeito perverso. Como o caso não foi tratado politicamente nem pelo partido nem pelo Governo nem pelo Parlamento, as autoridades judiciárias – por negócio, agenda política/protagonismo político, fuga de informação ou excesso de complexidade – deixaram ou fizeram transpirar para a opinião pública o teor das diversas peças processuais. Não se fez o juízo político (o juízo político eleitoral sobre uma pessoa não colhe numa situação destas; colhe sobre o partido, não sobre o indivíduo), mas o juízo condenatório dos cidadãos está feito. E, em termos judiciais, arriscamo-nos a dormir para sempre com a presunção de inocência de José Sócrates.
A quem aproveitará isto?                         
2018.05.26 – Louro de Carvalho          

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