segunda-feira, 21 de maio de 2018

Chile sem bispos por causa da pedofilia e abuso sexual de menores


O escândalo da pedofilia (Que termo tão pouco apropriado!) e o abuso sexual de menores (masculinos e femininos) começou a emergir na sociedade, tendo não poucas cabeças rolado na arena política, judicial e da comunicação social. Mas o escândalo sublimou-se no pior sentido quando figuras da Igreja Católica foram surpreendidas quer no crime quer no seu alegado encobrimento.
Assim, como escreve no JN de hoje, dia 21 de maio, o Padre Fernando Calado Rodrigues, o escândalo “desfigurou o rosto da Igreja Católica no dealbar do terceiro milénio da sua história”. Com efeito, embora a figura emblemática de João Paulo II tenha sido pouco beliscada pelo fenómeno, foi ele quem primeiro se viu confrontado com o problema, tendo tomado algumas medidas embora marcadas por uma certa tolerância metódica. Na verdade, o crime é hediondo em qualquer pessoa, mas assume relevante gravidade quando perpetrado por um clérigo, supostamente o homem de Deus, o líder a quem é confiado o encaminhamento e não o descarrilamento das consciências e das sensibilidades.
O Papa Ratzinger, face ao sucedido na Irlanda, a seguir aos EUA, impôs ao episcopado do Orbe a definição de linhas de orientação claras para colmatar o mal logo às primeiras suspeitas. Não obstante, rezam as crónicas que se mantiveram tentativas de calar as vítimas e branquear a realidade.
Terá sido por isso que a visita apostólica de Francisco ao Chile ficou eivada de uma certa amargura. E o Papa, confrontado com o facto duma nomeação episcopal (e subsequente ordenação e tomada de posse da respetiva diocese) dum sacerdote que alegadamente encobriu outro sacerdote, respondeu, primeiro, que tais informações não lhe tinham chegado e, depois, que não havia provas. E, no encontro com os jornalistas num voo de regresso, considerou que talvez a “palavra provas” terá sido inadequada.
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Com efeito, como todos sabemos, apresentar provas destes factos não é de fácil consecução, sobretudo em relação a factos já distantes no tempo.
É verdade que o crime é hediondo, sobretudo o da pedofilia; e o de mero abuso sexual de menores não fica menorizado e muito menos desculpado por eventualmente haver consentimento da vítima, que pode pura e simplesmente não resistir à sedução.
Porém, há aqui um múltiplo dilema. Primeiro, como é que o Bispo diocesano pode sustentar uma denúncia que lhe chegue sem vir suportada por evidências, quando ninguém pode fazer juízo sem provas e é fundamental em direito observar a presunção de inocência até decisão condenatória transitada em julgado? Como é que o Bispo teve conhecimento dos factos? Se foi em sede confissão, não pode revelá-los; se foi através de sacerdotes que tiveram conhecimento via confissão, idem. Segundo, deve o Bispo denunciar os seus padres às autoridades judiciárias, quebrando a relação de confiança com o seu presbitério, ou calar o ato criminoso? Bastará, depois de diligentemente investigar a veridicidade dos factos, advertir, remover ou destituir do exercício das ordens o prevaricador? Terceiro, porque não devem os conhecedores dos factos denunciá-los às autoridades judiciárias? Obviamente, a partir do conhecimento público dos factos, os Bispos podem atuar sem quebrarem a relação de confiança com o presbitério respetivo. Aliás, o julgamento eclesial destes factos e as côngruas penas canónicas compete à Congregação da Doutrina da Fé.
Ora, até ao presente, foram tomadas as atitudes mais díspares.
Casos houve de encobrimento puro, a par de casos prontamente denunciados. Houve situações de tomada de medidas prontas no âmbito eclesiástico, a par de negligência ou de medidas insuficientes. Mas, em vez do redobro de atenção a eventuais indícios, casos houve de apelo público da parte das autoridades centrais diocesanas à denúncia por quem tivesse conhecimento de comportamentos pedófilos ou de abuso sexual de menores no sentido de os comunicar à respetiva vigararia geral.
Convenhamos que o tema é muito problemático. Todavia, não podemos cair num regime inquisitorial de má memória, embora a funciona ao contrário (Recordo que a Inquisição investigava o delito, mas relaxava os penitentes “ao braço secular” – isto ironicamente em tempo de aliança e mesmo confusão entre o trono e o altar). Por outro lado, não se pode atirar mais lama sobre a lama já existente, bem como terá de se evitar qualquer tentativa oportunista, como, por exemplo, denunciar o clérigo apenas quando ele está à beira da promoção (Já se viu disso!) ou correr atrás da indemnização inventando factos, o que tem acontecido algumas vezes com casos de agentes que lidam com crianças, ainda que não se tenham relatado casos deste oportunismo ocorrido com clérigos.         
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Pelo sucedido no Chile e face à continuação dos clamores, o Papa enviou um visitante ao país para averiguar factos e responsabilidades, de cujo relatório resultou um pedido de desculpa às vítimas da parte do Pontífice. Além disso, este promoveu encontros com as vítimas e as famílias. E, não satisfeito com isso, convocou para o Vaticano todos os 34 Bispos do Chile, nos dias 14 a 18 de maio, a quem manifestou a sua vergonha pelos relatórios que
Certificam pressões exercidas sobre aqueles que deveriam levar por diante a instrução dos processos penais ou, inclusive, a destruição de documentos comprometedores por parte de responsáveis de arquivos eclesiásticos, evidenciando assim uma absoluta falta de respeito pelos procedimentos canónicos e, ainda mais, umas reprováveis práticas que deverão ser evitadas no futuro”.
Estas palavras foram pronunciadas logo no início do encontro do Papa com os Bispos do Chile e foram divulgadas num canal chileno. Além da crítica à hierarquia chilena por encobrimento e por não ter sabido lidar com a questão, apelou a todos a que encontrassem formas de reparar os danos causados à Igreja chilena e a toda a Igreja Católica.
Os 34 bispos chilenos entraram num período de reflexão e, no final, decidiram colocar os seus encargos pastorais nas mãos do Papa, para que ele possa decidir quem vai continuar a exercer o ministério episcopal e quem deve ser removido.
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Na manhã do dia 18, no auditório da Secretaria para a Comunicação da Santa Sé, em Roma, o secretário-geral da Conferência Episcopal Chilena, Dom Fernando Ramos, Bispo Auxiliar de Santiago, e o Bispo de San Bernardo, Dom Juan Ignacio Gonzales, leram aos jornalistas uma declaração em espanhol e italiano, e acrescentaram uma explicação ao texto lido.
Primeiro, tomou a palavra Dom Juan Ramos para explicar que, na primeira conferência de imprensa, a do dia 14, os Bispos disseram que vieram “com dor e vergonha a esses encontros com o Papa”. E referiu:
Na terça-feira [dia 15] tivemos a primeira reunião. O Papa leu-nos um documento em que expressou as suas conclusões e reflexões sobre o relatório de Dom Scicluna, após a sua visita ao Chile. O texto do Santo Padre indica claramente uma série de acontecimentos absolutamente reprováveis que ocorreram na Igreja chilena em relação a abusos inaceitáveis de poder, consciência e sexuais, que levaram à diminuição do vigor profético que a caraterizava.”.
Nas três reuniões seguintes, cada bispo expressou sua reação, opinião e visão sobre o que foi apontado pelo Papa. E o Bispo Auxiliar de Santiago explicitou:
Neste contexto de diálogo e discernimento, foram apresentadas várias sugestões de medidas a serem tomadas para enfrentar essa grande crise, bem como foi amadurecendo a ideia de que, para estar mais em sintonia com a vontade do Santo Padre, era conveniente declarar a nossa disponibilidade absoluta de colocar nossos encargos pastorais nas mãos do Papa. Desta forma, faríamos um gesto colegial e solidário, para assumir, com dor, os graves acontecimentos que ocorreram e para que o Santo Padre pudesse dispor livremente de todos nós”.
Dom Juan Ramos frisou que, no dia 17, os bispos chilenos, por escrito, colocaram os seus encargos à disposição do Papa, sublinhando que, “desta forma, ele poderá decidir nas próximas semanas se vai aceitar ou rejeitar o que indicamos”.
Por seu turno, o Bispo de San Bernardo, Dom Juan Ignacio González, membro da Comissão Permanente da Conferência Episcopal do Chile, sublinhou que colocar os encargos pastorais à disposição do Papa “significa que, enquanto o Santo Padre não tomar uma decisão, cada Bispo membro da Conferência Episcopal Chilena continuará os seus trabalhos pastorais e em plena função”. E vincou:
O Santo Padre pode aceitar a saída imediata de um Bispo, pode também rejeitá-la e, portanto, ele permaneceria confirmado em sua função; pode aceitá-la e torná-la efetiva no momento da nomeação de uma nova autoridade diocesana”.
O Bispo agradeceu a todos, sobretudo à imprensa,  que muitas vezes passou horas à espera de informações dos prelados chilenos. E concluiu:
Que o Senhor recompense o seu serviço à verdade. Agradecemos também à Secretária para a Comunicação da Santa Sé pelo seu apoio e proximidade nesses dias e a todos aqueles que muitas vezes nos acompanharam anonimamente com o seu trabalho e oração.”.
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E é de relevar o pedido de perdão dos bispos chilenos ao Papa e à Igreja. Com efeito, após 3 dias de encontros com o Santo Padre e muitas horas dedicadas à meditação e oração, seguindo as indicações de Francisco, os Bispos da Conferência Episcopal Chilena divulgaram uma declaração em que lhe agradecem pela sua “escuta paterna e correção fraterna” e, sobretudo, pedem perdão pela dor causada às vítimas, ao Papa, ao Povo de Deus e ao país pelos “graves erros e omissões cometidos por nós”. Agradecem a Dom Scicluna e ao Rev. Jordi Bertomeu pela “sua dedicação pastoral e pessoal”, bem como pelo “esforço investido nas últimas semanas para tentar sanar as feridas da sociedade e da Igreja” no país. Agradecem às vítimas pela “sua perseverança e coragem”, não obstante as enormes dificuldades “pessoais, espirituais, sociais e familiares” que enfrentaram, “unidas com frequência à incompreensão e ataques da própria comunidade eclesial”. E imploram “o seu perdão e a sua ajuda para continuar a avançar no caminho do tratamento das feridas para que possam ser sanadas”.

E, referindo o facto da colocação dos cargos nas mãos do Pontífice, para que decida livremente por cada um, explicitaram:
Nós colocamo-nos em caminho, sabendo que esses dias de diálogo honesto representam uma pedra angular de um profundo processo de transformação guiado pelo Papa Francisco. Em comunhão com ele, queremos restabelecer a justiça e contribuir para a reparação do dano causado, para dar novo impulso à missão profética da Igreja no Chile, cujo centro sempre deveria ter sido em Cristo.”.
Querem que “a face do Senhor volte a resplandecer” na Igreja chilena, no que se empenham, pedindo a todos, com humildade e esperança, que os “ajudem a percorrer esta estrada”. E rogam a Deus que “nestas horas difíceis, mas repletas de esperança, a Igreja seja protegida pelo Senhor e por Nossa Senhora do Carmo”.
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Concluído encontro, Francisco endereçou uma carta a cada um dos prelados chilenos em que lhes agradece terem acolhido o convite para que, juntos, se fizesse “um discernimento franco face aos graves factos que prejudicaram a comunhão eclesial e debilitaram o trabalho da Igreja do Chile nos últimos anos”. Frisou que “os acontecimentos dolorosos relacionados com abusos – de menores, de poder e de consciência”, devem levar a “mudanças e resoluções a curto, médio e longo prazo”, para “restabelecer a justiça e a comunhão eclesial”. E sublinhou a importância de  responder a esta problemática quanto antes, pela “gravidade” das situações que se passaram e “pelas trágicas que tiveram, particularmente para as vítimas” menores e suas famílias.

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Eis a carta na íntegra:
Discernimento franco sobre graves factos de abusos
Queridos irmãos no episcopado,
Quero agradecer-lhes por terem acolhido o convite para que, juntos, fizéssemos um discernimento franco face aos graves fatos que prejudicaram a comunhão eclesial e debilitaram o trabalho da Igreja do Chile nos últimos anos.
À luz dos acontecimentos dolorosos concernentes aos abusos – de menores, de poder e de consciência –, temos aprofundado a gravidade dos mesmos, bem como as trágicas consequências que tiveram particularmente para as vítimas. A algumas delas eu mesmo pedi perdão de coração, a cujo pedido vocês se uniram numa só vontade e com o firme propósito de reparar os danos causados.
Agradeço a plena disponibilidade que cada um manifestou a aderir e colaborar em todas aquelas mudanças e resoluções que teremos que tomar a curto, médio e longo prazos, necessárias para restabelecer a justiça e a comunhão eclesial.
Depois destes dias de oração e reflexão, convido-os a seguir construindo uma Igreja profética, que sabe colocar no centro o importante: o serviço a seu Senhor no faminto, no preso, no migrante, na vítima de abuso.
17/05/2018
Por favor, não se esqueçam de rezar por mim.
Que Jesus os abençoe e a Virgem Santa os proteja.
Fraternalmente,
Francisco
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E, neste contexto de uma Igreja e de uma Sociedade feridas, ressalta a nobre atitude de nobre reconhecimento da insuficiência da hierarquia chilena, o pedido de perdão e a disponibilidade de promoção e facilitação da retoma da justiça e do aumento da caridade pastoral. Uma lição!
2018.05.21 – Louro de Carvalho  

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