Não é, do
meu ponto de vista, o pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS), porque este é obra da República cujo órgão principal
é a Assembleia da República. Porém, se não fosse a intuição, habilidade e
teimosia de Arnaut, Ministro dos Assuntos Sociais – no que foi politicamente escorado
por Mário Soares, líder do II Governo Constitucional (de janeiro a
agosto de 1978, de coligação entre PS e CDS) – de que resultou o embrião do SNS plasmado no despacho que tornou este político
amigo dos deserdados do sistema, o SNS, de acesso universal, teria enormes
dificuldades em vingar. O país gostou da experiência de que beneficiou e
habitou-se a ela.
Arnaut, em
vez de e mais do que pai, foi o autor genético e a ama do serviço. E, em 1979,
tornou-se o seu paladino no Parlamento contribuindo de forma ativa e
persistente para a aprovação da lei do Serviço Nacional de Saúde, que sofreu,
em 1990, um significativo retrocesso. E o histórico socialista, que não era
médico, mas diciólogo da vida, da vida de qualidade e da vida condigna de todos
e de todas, não deixou de estar atento aos golpes experienciais que desígnios poderosos
iam infligindo ao SNS pela via da transformação do Sistema Nacional de Saúde na
Arca de Noé dos interesses privados.
Regressado da
política à vida profissional da advocacia, sempre se mostrou um homem proativo,
livre e interventor. Tanto assim é que o Parlamento tem à sua disposição uma proposta
de lei Serviço Nacional de Saúde publicada em formato de livro em parceria com
o médico João Semedo, que foi coordenador e deputado do Bloco de Esquerda.
***
Entretanto, o
histórico socialista e cofundador do PS, nascido em Penela, faleceu, aos 82
anos, ontem, dia 21 de maio, no Centro Hospitalar de Coimbra, mais propriamente
no Hospital da Universidade, onde estava internado em razão de doença oncológica.
E o seu corpo esteve em câmara ardente na antiga igreja do Convento de São
Francisco, em Coimbra, a partir das 18,30 horas do dia 21, e foi transportado
na tarde de hoje para o crematório da Figueira da Foz.
Em 2016,
recebeu a Grã-Cruz da Ordem da
Liberdade, que distingue “serviços relevantes prestados em defesa
dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa
da Liberdade”. Era uma referência da Maçonaria pertencendo ao Grande Oriente
Lusitano, a mais antiga obediência maçónica, de que foi Grão-Mestre durante
três anos. A este respeito, Henrique Monteiro destaca, no Expresso (acesso pago), “o
seu sentimento de fraternidade e a sua crença numa transcendência que vai para
além de Igrejas e religiões, da sua tolerância, que vai para além de partidos e
ideologias, e da sua liberdade interior que lhe permitiu ser dos homens mais
alegres e livres”
que Monteiro conheceu.
***
As reações
dos diversos quadrantes políticos e profissionais não se fizeram esperar.
O
secretário-geral do PS decretou “luto
partidário”, com a bandeira socialista a meia haste em todas as sedes do
país, Manuel Alegre recordou o amigo que considera ser “o socialista mais
genuíno” e o Ministro da Saúde destacou o “importante legado” deixado pelo
socialista.
António Costa diz
que “o PS está de luto com o falecimento de António Arnaut”, que era desde
o último congresso partidário, em 2016, “presidente honorário” do partido. Com efeito,
o “fundador do PS, militante dedicado, honrou-nos como deputado à Assembleia
Constituinte e à Assembleia da República e como governante”. Para a eternidade,
todos o recordaremos justamente como o pai do SNS”, declarou ainda o líder
socialista e Primeiro-Ministro.
O Presidente
da Assembleia da República diz que Arnaut “personificava, como poucos, o conceito de ética republicana“. Em
nota enviada às redações, Ferro Rodrigues lembra o “combatente antifascista,
deputado à Assembleia Constituinte e fundador do Partido Socialista”, o homem
que ficará na história pelo seu contributo para “uma das principais conquistas sociais da democracia portuguesa”,
o Serviço Nacional de Saúde. E diz que Arnaut “foi, até ao último dia, um cidadão empenhado e um militante ativo da
causa dos direitos sociais, porque sabia bem que, sem igualdade de
oportunidades, a liberdade não tem condições para ser exercida”.
A conta
oficial do Twitter do PS colocou o símbolo do partido a negro, em sinal de luto.
Manuel Alegre diz
que “morreu o socialista mais genuíno”. O socialista, amigo de longa data de Arnaut,
recorda um homem “coerente, generoso, um grande cidadão e um grande português”.
Alegre e
Arnaut estiveram juntos na Guerra
do Ultramar. E é aí que Alegre regressa, num exercício de memória, para
reviver um episódio que envolveu ambos. Arnaut tinha pendurado na parede dois
quadros. Um de Fidel Castro, com uma inscrição de um discurso proferido em 1959
pelo antigo líder cubano: “Nem liberdade
sem pão nem pão sem liberdade”. Ao lado estava a imagem do Papa João XXIII,
mas o comandante ordenou apenas que tirasse a do cubano. “O António disse-lhe
que não podia fazer isso, não tirava um quadro para deixar o outro porque isso
obrigava-o a fazer uma distinção e ele recusava-se a fazê-lo”.
“Era um dos
meus grandes amigos e era o socialista mais genuíno e que criou a maior transformação
social do nosso país”. Por isso, diz o também histórico do PS, “a melhor
homenagem que o país lhe podia fazer era cumprir o apelo que fez, para que se
salve o SNS”.
O Ministro da Saúde, Adalberto Campos
Fernandes, também disse estar “profundamente triste pelo
desaparecimento de alguém que nos ensinou a olhar a política com muita humildade”.
O governante considera que Arnaut
“Deixa um importante legado na construção do
nosso sistema democrático, não só no papel que teve na criação do Serviço
Nacional de Saúde, mas também pelos ensinamentos que nos deixou e pelo exemplo
de combate político, como poeta, como escritor, como cidadão que sempre
valorizou o exercício da democracia”.
O presidente
do PS prestou homenagem a um homem “apaixonado” pela causa da saúde
pública e um “representante do
sentido humanista” que a política deve ter. Para Carlos César, Arnaut
“não era apenas um socialista, era um socialista muito simbólico, representante
do sentido humanista com que a política se desenvolve”, um socialista
“empenhado, apaixonado naquilo que sempre constituiu a sua grande causa, a
causa da saúde pública”.
A secretária-geral
Adjunta do PS usou o facebook para fazer a sua homenagem ao “presidente
honorário do PS, fundador do partido e fundador do Serviço Nacional de Saúde”.
O presidente
do PSD reagiu à notícia da morte de António Arnaut, lembrando uma “figura incontornável” do pós-25 de Abril e
do panorama político nacional. Rui Rio disse que “todos nós, portugueses, temos
que agradecer” a marca deixada por Arnaut.
O PCP
destaca nele o “posicionamento
antifascista” e a “participação em ações unitárias democráticas”. Em
comunicado, os comunistas destacam a “intervenção institucional” e o “empenho”
de Arnaut “na defesa de valores de Abril, nomeadamente no que toca à saúde
e a outros direitos sociais e democráticos consagrados na Constituição da
República Portuguesa”.
A eurodeputada
Ana Gomes transmitiu, no Twitter, o “tremendo sentimento de perda” e escreveu que
o “tributo” a Arnaut é “mais do que salvar o SNS: é salvar a Democracia”.
Carlos
Zorrinho deixou uma palavra a “um homem extraordinário” e defende, nas redes sociais, que “a
melhor homenagem” ao histórico socialista passa por “defender o SNS”.
O médico socialista
Álvaro Beleza faz acompanhar uma imagem de Arnaut duma mensagem:
“Saibamos
ser dignos do seu legado! Caráter,
coragem, cultura! Uma “referência ética republicana!”.
O deputado
Diogo Leão recorda “um campeão das
liberdades” que o país perdeu. E a socialista e Secretária de
Estado Adjunta do Primeiro-Ministro, Mariana Vieira da Silva, deixou um
agradecimento também no Twitter.
A coordenadora
do Bloco de Esquerda destaca a “homenagem e gratidão”, devida ao histórico
socialista. “Deixa-nos a responsabilidade de continuar a sua causa”, considera
Catarina Martins.
Numa nota
simples, a eurodeputada Marisa Matias, eleita pelo Bloco de Esquerda, agradece
o contributo deixado por Arnaut, escrevendo: “obrigado”.
Francisco
George, ex-diretor-geral de Saúde e atual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa,
considera que “o país perde uma figura, mas ganhou o Serviço Nacional de Saúde
(SNS) que ele fundou”. À agência Lusa, George diz que o país “perde uma figura política de
impressionável transparência, mas ganhou um SNS para sempre”. Dizendo que Arnaut colocou “Portugal no topo a nível
internacional” – no atinente à “saúde da população, em particular das
mães e das crianças” –, tendo uma capacidade de “tomada de decisão inabalável”,
frisou:
“A decisão, uma vez tomada, era inabalável
para ele. Ia para a frente, não recuava, não estava sujeito a pressões, a
interesses. Isto na perspetiva do interesse público, do interesse de todos os
portugueses, no interesse dos mais pobres, mais vulneráveis.”.
Numa
mensagem mais extensa – e com um cunho pessoal – João Semedo diz-se
“amargurado, gelado e invadido por um vazio que retira todo o sentido” à
mensagem que pretendia partilhar sobre este momento. O médico, ex-deputado e
ex-dirigente do Bloco de Esquerda lamenta não encontrar palavras que lhe
permitam descrever a “dimensão como cidadão e ser humano nas múltiplas facetas
em que a sua riquíssima vida se desdobrou”. Para Semedo, Arnaut, “muito mais”
que o pai do SNS, “foi um insubmisso e
permanente lutador da liberdade, pela igualdade e pela justiça social, um
incansável combatente pelos valores da República, da esquerda e do socialismo”.
Assunção Cristas realça “homem profundamente dedicado às causas em
que acreditou”.
A líder do
CDS Assunção Cristas, em
Viana do Castelo no âmbito das jornadas parlamentares do partido foi apanhada
de surpresa, pelo que disse ao jornalista:
“Não sabia, está a dar-me a notícia em
primeira mão, mas naturalmente que realço um homem profundamente dedicado às
causas em que acreditou, nomeadamente à construção do Serviço Nacional de Saúde”.
E, saudando
depois os familiares e amigos, mas também o Partido Socialista, do qual Arnaut
era “destacado membro e dirigente”, acrescentou:
“Todos ficamos unidos nessa perda, que é uma
perda também por aquilo que é a nossa saúde. E hoje em Portugal tanto temos de
batalhar para que o SNS funcione melhor. Independentemente de termos posições
diferentes, o nosso objetivo é lutarmos para que possa haver melhor saúde para
todos os portugueses.”.
O Sindicato Independente dos Médicos também
já lamentou a morte de António Arnaut, “uma pessoa que, sem ser médico, criou o
SNS e até ao fim o defendeu em palavras e atos”.
A bastonária
da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, diz que “morreu um dos últimos
homens bons e sérios”; e o bastonário da Ordem dos Médicos considera
ser “uma grande perda para o país, não só pelo seu papel fundamental no
Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas por toda a sua atividade política, como
grande defensor dos direitos, liberdades e garantias”.
Miguel
Almeida considera que a figura de António Arnaut é insubstituível, destacando
as suas “posições irreverentes”, tentando sempre “puxar pela carroça com o
objetivo de salvar o SNS”.
***
A sua última
intervenção política foi há duas semanas, após a desfiliação de Sócrates do
PS. Considerando que José Sócrates fez bem em desfiliar-se do partido,
justificou:
“É uma atitude que já devia ter tomado, em
face da gravidade das acusações e das críticas severas que lhe são feitas […] independentemente
de ter sido culpado dos factos que lhe são imputados, que são gravíssimos,
levou uma vida acima das suas possibilidades, uma vida de fausto, acima
daqueles que são os padrões indissociáveis da ética republicana e socialista.”.
Não
esquecendo a “presunção de inocência”, frisou que Sócrates devia ter-se
afastado com base num “conceito antigo, que hoje está muito esquecido: a
lisura”. E disse:
“Para mim a honra é muito importante”.
Já sabia na
altura que não iria ao Congresso do PS do próximo fim de semana por razões de
saúde. Esperamos que lá tenha a merecida homenagem póstuma e que os congressistas
se tornem verdadeiros socialistas e inspirem todos os militantes e
simpatizantes, deixando-se de incoerências e arranjismos de oportunidade e
seguindo os parâmetros da ética.
***
O Conselho de Ministros aprovou ontem (dia 21) o decreto que
declara luto nacional para o dia 22 de maio, pelo falecimento de António Duarte
Arnaut, “uma figura de proa da República Portuguesa”. O Governo vê no fundador
do PS o “antifascista e democrata convicto” que “cedo se juntou à resistência
contra o Estado Novo, não hesitando em opor-se-lhe, uma e outra vez, por
palavras e ações”. E, em comunicado, salienta:
“Depois da
Revolução de 1974, foi eleito deputado à Assembleia Constituinte e nomeado
ministro dos Assuntos Sociais do II Governo Constitucional. Nessa qualidade,
impulsionou a que foi ‘uma das grandes conquistas do Portugal democrático: a
criação de um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente
gratuito, que assegura a todos os cidadãos o direito fundamental à proteção da
saúde’.”.
Em nota da presidência,
Marcelo Rebelo de Sousa refere:
“O nome de António Arnaut ficará para sempre
inscrito na memória da democracia portuguesa como combatente pela liberdade,
fundador e Presidente do Partido Socialista e ‘pai do Serviço Nacional de Saúde’,
razões pelas quais lhe atribuí a 25 de abril de 2016 a Grã Cruz da Ordem da Liberdade.
Na verdade, o SNS muito deve, na sua génese e no seu desenvolvimento, ao
humanismo de António Arnaut, ao seu espírito de serviço à causa pública e à sua
empenhada atenção aos outros e à comunidade.
Jurista prestigiado, homem de leis e de letras,
cidadão de Coimbra e do mundo, meu colega na Assembleia Constituinte e Ministro
da Saúde, António Arnaut deixa-nos um exemplo ímpar de republicanismo cívico e
de patriotismo humanista, que os milhões de utentes do Serviço Nacional de
Saúde – e, no fundo, todos os Portugueses – jamais esquecerão.”.
***
Porém, Arnaut, além de advogado, maçon
e governante, foi escritor e poeta. Neste sentido, foi um dos fundadores
do Círculo Cultural Miguel Torga e
presidente da sua Assembleia Geral. Em 1995, fundou a Associação Portuguesa de Escritores Juristas, de que foi presidente.
E publicou livros de poesia (vg: “Miniaturais outros
sinais: poesia”, “Do litoral do teu corpo: antologia do amor” e “Por este caminho”),
ficção (vg:
“Rio das sombras”), poesia e ficção (vg: “As Noites Afluentes”), e ensaio (vg: “Estudos Torguianos”).
Escrevia, sempre que podia, ao som de música clássica. Os
seus compositores favoritos eram Mozart, Beethovan e, ainda, os clássicos
russos, preferencialmente Alexander Borodin.
2018.05.22 – Louro de Carvalho
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