Paira no
espectro político de hoje a notícia da desfiliação socialista de José Sócrates
após 37 anos de militância que lhe proporcionou quase 7 anos de liderança do PS,
no quadro da qual se tornou Primeiro-Ministro, cargo político que exerceu
durante cerca de 7 anos. Tinha assumido funções de Secretário de Estado e de
Ministro nos Governos de António Guterres.
Depois
de uma longa investigação, no âmbito da qual esteve preso preventivamente
durante cerca de 9 meses, acaba por ser acusado de crimes de corrupção, fraude
fiscal e branqueamento de capitais, tendo requerido a instrução.
A prisão
preventiva teve como ponto de partida um ato espetacular de detenção na manga
do Aeroporto Internacional de Lisboa sob as câmaras de televisão tal como a
visita ao seu domicílio – factos ocorridos em véspera do Congresso do PS em que
foi consagrado como líder António Costa, recém-eleito em eleições diretas
depois dumas eleições primárias de que resultou eleito como candidato do PS ao
cargo de Primeiro-Ministro.
António
Costa deu na ocasião o tom de apreciação pública do Caso Sócrates pelos
militantes e sobretudo dos dirigentes do Partido Socialista. E convenhamos que
se manteve nessa linha de remissão das questões de investigação e julgamento de
eventuais ilícitos criminais para a justiça, a par da entrega das questões da
legislação e da governança para a política – pensamento sintetizado no badalado
princípio “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”.
Recordo também algo que tem sido esquecido e que o atual Primeiro-Ministro
sempre referiu: uma coisa é a amizade, que sempre prezou, e a outra a política
e a justiça, tendo cada uma os seus caminhos e os seus ditames e tempos.
Isto pareceu
pouco a José Sócrates, mas segurou os socialistas. No entanto, à medida que o
tempo avançava, era necessário que o Partido Socialista e o Governo se
demarcassem da confusão em que a justiça e a comunicação social testemunharam
sobre a governação de José Sócrates, coisa que não havia meio de acontecer.
Enquanto
Sócrates teimava na leitura do seu caso como um problema político, no que era
secundado, embora com visões diferentes, por consideráveis setores da opinião
pública, os dirigentes partidários refugiavam-se ou no silêncio ou no estafado
principio acima enunciado.
Provavelmente,
falhou a manifestação da amizade e solidariedade suficientes da parte de muitos
socialistas, sobretudo dos que foram compartícipes nas grandes decisões
políticas de Sócrates, hoje postas em causa, e quiçá cúmplices em alguns dos seus
eventuais ilícitos. Não creio, pois, que atos legislativos, regulamentares e
administrativos a coberto dos quais tenham sido praticados ilícitos só tenham a
assinatura do antigo Primeiro-Ministro. Há de haver deputados, ministros e
secretários de Estado corresponsáveis. E onde é que estão? Não terão receio de
que Sócrates os denuncie?
Ao mesmo
tempo, falhou na posição dos dirigentes do Partido Socialista, por um lado, a
assunção da governança socrática na história do partido (uma
organização não pode negar a sua história)
e, por outro, o juízo político sobre a mesma governança. E, neste juízo
político, não cabia, por certo, uma apreciação criminal dos atos, mas a
destrinça entre o que deveria ser continuado como opção política e aquilo que
deveria ser rejeitado ou, se tivesse ponto por onde se lhe pegasse, corrigido.
E isso deveria ter sido feito ainda antes das eleições legislativas de 2015. Não
foi por acaso que o PS não as ganhou, tendo-se mesmo afastado, pela negativa, daquele
poucochinho que António José Seguro conseguira por várias vezes e que António
Costa tanto criticou, tendo-o levado a disputar a liderança partidária.
Agora,
porém, surgida a evidência da indiciação do caso de Manuel Pinho e lançado o
repto de Ana Gomes para a introspeção a fazer dentro do PS, preferencialmente
aproveitando o Congresso para proceder à reflexão sobre os motivos por que o
partido terá albergado um irritante número de corruptos, a direção do PS,
partindo sempre do caso de Manuel Pinho, atingiu o caso de Sócrates, resultando
para um e outro caso que, a confirmarem-se as práticas ilícitas, o Partido Socialista
sai envergonhado e a democracia prejudicada.
Foi, no
fundo, nisso que se cifraram as declarações de Carlos César, Presidente do PS e
do seu grupo parlamentar (devendo este Carlos César proceder
também a uma autocrítica pessoal),
de João Galamba, porta-voz do PS, e António Costa, Secretário-Geral do PS e
Primeiro-Ministro. Porém, este soube situar as coisas na justiça e na política,
acautelou na sua declaração o caso de se confirmarem as acusações e faz a
destrinça entre os eventuais ilícitos criminais e as opções políticas,
salientando algumas das que devem prosseguir.
***
Entretanto,
José Sócrates, que se sentia incomodado com o alegado silêncio da direção do
partido, várias vezes acusou o toque, embora nunca se tenha dessolidarizado da
solução governativa encontrada. E não perdeu a oportunidade de se vitimizar
chegando a acusar as estruturas judiciárias e da comunicação social de ataque
de caráter e de quererem impedi-lo de uma sua candidatura à Presidência da
República.
Agora,
indisposto com as declarações das estruturas hierárquicas do PS, decidiu sair
em defesa de Manuel Pinho, não acreditando nas acusações que lhe estão a fazer,
não acreditando que ele tenha sido capaz de receber proventos da parte de uma
entidade privada enquanto exerceu funções governativas, condenando o julgamento
na praça pública, semelhante ao seu, exigindo que o Ministério Público prove as
acusações que faz e tentando esclarecer as circunstâncias que o levaram a
escolher Pinho para Ministro da Economia, na certeza de que não foi
influenciado por Ricardo Salgado. Aduz que o conhecimento com Pinho resultou da
colaboração deste na área da economia quando fazia parte, na qualidade de
independente, do círculo de estudos de Ferro Rodrigues no tempo da liderança
partidária deste. Adicionalmente, refere que apenas conhecera Salgado num
momento formal em 2006.
E hoje
revelou ter endereçado carta ao Secretário-Geral do PS a apresentar a sua
renúncia como militante do PS e a entregar o respetivo cartão, aduzindo ser
esta a forma de acabar com o embaraço mútuo. Diz ele em Post Scriptum:
“Na verdade, durante
estes quatro anos não ouvi por parte da Direção do PS uma palavra de condenação
destes abusos, mas sou agora forçado a ouvir o que não posso deixar de
interpretar como uma espécie de condenação sem julgamento. Desde sempre, como
seu líder, e agora nos momentos mais difíceis, encontrei nos militantes do PS
um apoio e um companheirismo que não esquecerei. Mas a injustiça que agora a
Direção do PS comete comigo, juntando-se à Direita política na tentativa de
criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável no
convívio pessoal e político. Considero, por
isso, ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo.”.
As
reações não se fizeram esperar. Ana Gomes defende que o partido deve aproveitar
a oportunidade para fazer a introspeção necessária. O Presidente do PS entende
que a sua governação deixou importantes marcas de progresso do país e reitera
que, a confirmarem-se as acusações, tal constituiria vergonha para os
socialistas. O Secretário-Geral e o Vice-Presidente do Grupo Parlamentar dizem
compreender a decisão e mostram-se surpreendidos, embora tenham de a aceitar,
dado tratar-se de uma opção pessoal.
Porém, enquanto
alguns outros socialistas fazem questão de acentuar a amizade com o ora
renunciante, colocando-a acima de tudo, mormente quando ela é mais necessária,
outros veem a decisão sem problemas e julgam que ela, sendo necessária, peca
por tardia. Há, no entanto, alguns que se solidarizam em absoluto com Sócrates
criticando a postura da direção do partido, a qual diz que não mudou de
pensamento nem de atitude, dizendo que o partido, ao embarcar na onda de
julgamento na praça pública, perdeu o seu ADN de defesa das liberdades,
direitos e garantias; e outros recordam que ninguém está acima ou fora da lei nem
da ética republicana.
***
Do meu
ponto de vista, penso que esta decisão de Sócrates já devia ter sido tomada
mais cedo, pelo menos, desde que o Ministério Público deduziu formalmente a
acusação, para não criar embaraços ao partido e aos assuntos do Estado e para
poder arquitetar a sua defesa sem quaisquer constrangimentos políticos e com
toda a liberdade e isenção pessoais. Entendendo que o Ministério Público errou
ao praticar um esquema judiciário de espetáculo e ao deixar sair para a ribalta
informação de peças processuais, violando o segredo de justiça e não dando
oportunidade à defesa de ter atempadamente conhecimento concreto da mesma
informação, bem como ao ter usado e abusado do protelamento de prazos. Por
outro lado, é certo que é quem acusa que deve fazer prova e não quem é acusado –
o que não dispensa este de promover ativamente a sua defesa.
Porém,
apesar de o que sabemos o sabermos por vias ilegítimas, é de sublinhar que a
defesa de Sócrates e o próprio, além de arquitetarem e fazerem a defesa como
têm efetivamente direito, usaram e abusaram de todos os mecanismos disponíveis,
ao menos aparentemente para ganharem tempo, e mostraram uma arrogância
impensável no espaço judiciário.
E, no quadro
da ética de responsabilidade, mesmo que Sócrates venha a ser totalmente
ilibado, tinha a obrigação política de apresentar um pedido de desculpas
público ao partido e ao país por ter dado azo a esta confusão, pois, além de
eventualmente vir a ser condenado, foi ocasião de escândalo no país e no
partido.
É certo
que a direção do PS não mudou efetivamente de agulhas, mas nunca foi tão
assídua e tão clara a manifestar o seu incómodo com o caso de Sócrates. Agora,
porém, fê-lo de forma clara e reiterada, sem exageros, é certo, mas à boleia do
caso de Manuel Pinho. E Pinho, apesar dos males que possa ter feito ao país,
mesmo que sejam maiores que os de Sócrates, não passa de uma peça da governança
do ex-Primeiro-Ministro. Por isso, José Sócrates deveria ter merecido um
tratamento autónomo.
Por fim,
de pouco valem estas lamentações e os usuais apelos à lei e à ética, se os
partidos (todos os partidos, porque não é só o PS que tem
telhados de vidro na área da corrupção, fraude fiscal e branqueamento de
capitais, gestão danosa, etc.)
não fizerem todos a necessária introspeção e se não mudar radicalmente o quadro
das medidas regulamentadoras e fiscalizadoras da ação por parte dos titulares
das estruturas do Estado. Temos leis a mais, se calhar, mas controlo a menos.
2018.05.04 –
Louro de Carvalho
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