quarta-feira, 9 de maio de 2018

“Renovação” e rapidez na Justiça para salvar o Estado de direito


Em entrevista à Rádio Renascença e ao jornal Público, divulgada no dia 7 de maio, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa pede à Justiça renovação e rapidez como condição necessária para salvar o Estado de direito.
Na convicção de que está criada uma perceção perigosa sobre a lentidão da Justiça – “Isto é de tal maneira que morremos primeiro” –, o Presidente da República aponta caminho à separação de processos e a mudanças legislativas para fazer face à corrupção e proteger o Estado de Direito democrático, que vive uma situação que “já é crítica”. Com efeito, é possível, segundo Marcelo, fazer mais na prevenção da corrupção e é preciso atuar contra a lentidão da Justiça a julgar casos de colarinho branco, pelo que os partidos devem usar o pacto da Justiça que o próprio Presidente promoveu, podendo até ir mais longe.
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Confrontado, na predita entrevista, com os casos de Sócrates e de Pinho, até porque, no discurso do 25 de Abril abordou a temática da corrupção das pessoas e a corrupção das instituições, obviamente disse não comentar casos específicos e pendentes de intervenção ou investigação judicial”, mas assegurou que tem “há muito pensado sobre a corrupção, não no sentido estrito do termo, mas sobre crimes de colarinho branco, que respeita as relações entre poderes económicos e poderes políticos”. Anotou o facto de a sociedade portuguesa ter sofrido “uma grande evolução, mesmo de mentalidade, em relação a esta matéria”. E contou com algum detalhe o “longo processo” que induziu essa evolução, sobretudo com a criação do DCIAP, com a sua liderança partidária socialdemocrata e com a atividade parlamentar. Disse Marcelo:
Quando foi criado o DCIAP, uma das finalidades era ter uma capacidade acrescida para uma realidade nova que surgia com maior premência na sociedade portuguesa. Recordaria também que, há 20 anos, eu como líder do PSD levantei como tema a relação entre o poder económico e o poder político. Isso deu um grande debate. Hoje, à distância, tenho a noção de que até o destino da minha liderança partidária foi marcado por esse debate e por matérias que suscitei – que chocaram muita gente porque eram relativamente novas no universo político português. Depois, uma década volvida, houve um pacote legislativo apresentado por um parlamentar, o deputado João Cravinho, que suscitou um debate e teve consequências a prazo, como a criação do Conselho de Prevenção, mas que se deparou com grandes incompreensões.”. 
Regista, porém, o facto de os casos “que chegaram ao fim – no sentido de uma primeira decisão judicial, embora pendente de recurso” – terem sido “pouco numerosos: um no quadro financeiro e outro no quadro de relacionamento entre poder económico e poder político”. Isto, apesar de a realidade atual mostrar dados importantes, como: “uma mudança de mentalidade na sociedade e, portanto, de escrutínio; uma mudança no sentido da perceção de como para a qualidade da democracia é importante debater os temas e haver uma atenção generalizada” – o que é positivo.
Releva explicitamente a “multiplicação da abertura de investigações judiciais, em relação a atuações administrativas a todos os níveis, mais ou menos ligadas a atividades do setor social ou do setor privado”. Todavia, salienta duas realidades preocupantes. A primeira refere-se à prevenção. Com efeito, como refere, “de vez em quando os próprios protagonistas no domínio da prevenção dizem que podia ir mais além”, pois “talvez fosse possível (quer na elaboração de leis, quer na elaboração de novos regimes jurídicos sobre o relacionamento da Administração Pública com a sociedade em geral) que essa componente fosse mais estreita”. A segunda diz respeito à tensão existente na sociedade portuguesa pela maior mediatização desta temática dando origem a “um tempo mediático, que nalguns casos é o tempo político”.
Neste âmbito, verifica a existência, na sociedade, da sensação do “desfasamento enorme entre o tempo mediático – “ou político – e o tempo judicial”, desfasamento que induz a comparação “com o verificado noutras sociedades”. Se é certo que, de vez em quando, responsáveis no quadro do poder judicial vêm dizer que “não há assim tanta diferença”, também é verdade que a opinião pública tem a sensação de que “o tempo mediático ou político é um e depois o tempo judicial, o tal tempo até haver uma primeira decisão, é muitíssimo superior” – o que pode ter consequências. Assim, uma delas – presente em vários setores da sociedade portuguesa – é “a crítica em relação ao sistema judicial, achando que uma justiça que é muito lenta acaba por ser menos justa – porque chega tarde demais”. Depois, vem o risco de se prescindir do sistema com desculpas do género: “Isto é de tal maneira que nós morremos primeiro, ou passa a ser irrelevante a decisão que houver”. E pode induzir a tentação de, na dúvida, se optar pelo debate político, “porque, se esperamos por uma decisão judicial, ela não chega”. Ora, Marcelo não esconde que “isto é grave num Estado de Direito democrático”.
E o Presidente, para relevar a importância da Justiça, recorda que, pouco tempo depois de ter iniciado funções, visitou o DCIAP, o que foi considerado “iniciativa um pouco original. Mas explicou então que “o objetivo era mostrar a atenção com que acompanhava a investigação criminal” e “chamar a atenção para a preocupação” com que encarava “esta questão: que o tempo mediático era um, o tempo político era outro e o tempo judicial estava a alongar-se”.
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Para obviar ao perigo de contaminação (quando não há decisões, cresce o sentimento de que são todos corruptos e ninguém é condenado...), o Presidente propõe a renovação contínua do “sistema judicial, em todas as suas componentes” para não haver “um risco do alongamento do tempo judicial, que será sempre mais longo”. De facto, como observa, “fazer justiça será sempre [um processo] mais longo do que dar notícia do que é o início de um procedimento” e “mais longo em muitos casos do que os ciclos políticos – cada vez mais curtos”. Contudo, não pode ser tão longo que “de repente nós entremos numa situação que já é crítica para o Estado de Direito democrático”.
E, interpelado neste aspeto, sustenta que esta renovação contínua não carece, na maior parte das matérias, de revisão constitucional, se excetuarmos talvez a unificação das jurisdições (judicial e administrativa) e a nomeação de titulares de topo no sistema judicial. E explica:
Acho que a Constituição tem amplitude suficiente para permitir a reforma da Justiça. Eu sei que há matérias que passam pela revisão constitucional. Dou-lhe um exemplo: saber se deve continuar a haver um contencioso administrativo separado da justiça comum – ou não. É um dos pontos tratados na tal convergência dos parceiros de Justiça. Esse concretamente suporia uma revisão da Constituição. Mas na generalidade dos casos não é necessário.”.
Quanto à oportunidade de legislar sobre a reforma da Justiça, os entrevistadores provocaram Marcelo ao perguntarem se “acha que os políticos devem olhar para esse dilema” do desfasamento dos tempos esperando pela resolução de casos como o de José Sócrates, casos mediáticos, para só depois legislar” ou se “acha que não há tempo a esperar e que é preciso fazer alguma coisa agora”. Mas o Presidente contornou a questão discorrendo:
Eu sentindo que porventura era melindroso dirigir o apelo em primeira instância aos partidos políticos, dirigi-o aos parceiros da Justiça. Pensei: se se colocarem de acordo, isso permitirá depois a intervenção parlamentar, dos parceiros políticos. Houve um trabalho realizado, que uns considerarão insuficiente, outros, excessivo, mas continuo a esperar que esse trabalho realizado conheça alguns frutos. Mas admito que há muitas outras iniciativas pensáveis, que vão para [lá] daquilo que foi na altura discutido pelos parceiros da Justiça.”.
Concordando que na corrupção os parceiros praticamente não tocaram, no quadro do Pacto da Justiça, adiantando que a atuação dos partidos não deve depender de casos concretos, diz:
Aí houve, digamos, uma intervenção mais limitada, é evidente. Até porque há temáticas que são consideradas muito polémicas e que deparam com o juízo de inconstitucionalidade do TC. Mas para lhe responder: se há necessidade de elaborar legislação que corresponda verdadeiramente àquilo que é fundamental para o país ou para o Estado de Direito democrático, então eu penso – mas está nas mãos dos partidos – que os partidos devem atuar, não dependendo de casos concretos, de processos concretos, de vicissitudes concretas.”.
Para anular ou minorar a contaminação num momento em que são envolvidas a maior elétrica do país, o banco público, deputados, ex-governantes, de modo a contrariar o sentimento de corrupção a grassar na classe política – levando as pessoas, em especial os jovens, a divorciarem-se completamente da política e dos políticos – o Presidente insiste na importância do encurtamento do tempo judicial. Diz ele:
Aí o tempo judicial é muito importante. Porque, se nós renunciamos à ideia de que num Estado de Direito democrático é possível haver justiça em tempo, estamos a renunciar a ele. E olhando para outros países, até para casos que não são menos complexos noutros países, encontramos que nesses países tem havido decisões – é certo que processo a processo, não em bloco, mas por uma gestão não diversificada de processos...”.
À verificação, por parte dos entrevistadores, de que o Presidente não é fã de juntar casos em megaprocessos, Marcelo reagiu:
A um Presidente não compete estar a interferir no âmbito específico do poder judicial. Agora, sou sensível à sua pergunta. É que a partir de determinado momento vai começar a encontrar nos próprios protagonistas políticos esta reação: como não vai haver decisão judicial nos próximos longuíssimos anos, o melhor é começarmos a debater politicamente, chegamos a uma conclusão política, tomamos decisões políticas e, olhe, quando chegar a decisão judicial fica pro memoria. Fica para se saber, para quem for vivo naquela ocasião, o que é que a justiça apurou. Mas, temos que convir, não é o melhor para o Estado de Direito democrático.”.
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Por seu turno, a Ministra da Justiça veio à liça dizer que a morosidade na justiça é uma realidade “preocupante, mas “muito circunscrita”.
Francisca Van Dunem comentou hoje, dia 8 de maio, as declarações de Marcelo no que este apontou de insuficiências na prevenção da corrupção, respondendo que “essa realidade não abrange todo o sistema de justiça”, circunscrevendo-se ao segmento dos processos de corrupção.
Sublinhou a Ministra perante os jornalistas no final da sessão solene do centenário do Tribunal da Relação de Coimbra:
O Presidente da República falou de uma realidade que é, de facto, preocupante, mas que é muito circunscrita. Estamos a falar de um segmento específico do processo criminal, que são os processos da área económico-financeira.”.
Para Francisca Van Dunem, são processos “numericamente muito reduzidos”, mas “causam essa perturbação” e geram uma perceção de falta de eficácia e de desigualdade na aplicação da justiça. Porém, vincou que “essa realidade não abrange todo o sistema de justiça”, considerando que, na generalidade, a resposta do setor “é positiva” e as pendências têm diminuído tendencialmente. E relevou o outro alerta de Marcelo – a prevenção da corrupção –, para sublinhar que é importante os serviços públicos atualizarem os seus planos de prevenção da corrupção, como pediu recentemente aos do Ministério que lidera que o façam. E notou: “Uns têm, outros não os têm atualizados”.
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Em termos genéricos o Presidente tem a razão do seu lado. É preciso ir renovando a Justiça sem estar à espera da revisão constitucional e, quando esta surgir, reveja-se o que tem de ser revisto. Por outro lado, é preciso prevenir eficazmente a corrupção, o que passa por ter pessoas isentas no terreno, melhorar a legislação e colocar os titulares de cargos públicos a seguir os trâmites não só da lei, mas também da ética – e, ao mínimo sinal consistente de desvio deste quadro, advertir e, em caso de reincidência comprovada, promover a sua exoneração. É de acabar com o escândalo presente dos infratores dos vulgares quadros éticos para virem à ribalta envergonhar-se dos outros e condenar as prevaricações alheias, ignorando as próprias.
Marcelo tem ainda razão quando defende que o legislador não pode andar a reboque dos casos concretos. Todavia, do meu ponto de vista não pode deixar de legislar só porque ainda há casos concretos em curso; e por outro lado, o primado da atividade legislativa cabe aos partidos e não aos operadores da Justiça, que obviamente devem ser ouvidos, pelo que duvido da legitimidade do Pacto da Justiça qua tali.
A Ministra da Justiça bem poderia recordar que, para lá dos casos de corrupção, em que a Justiça é morosa, como concede, estão os casos cíveis que são excessivamente morosos, em que se “criam” demasiadas complicações (tanto assim é que para os analistas a morosidade da justiça é um dos entraves ao relançamento da economia e ao crescimento económico), bem como decisões de justiça administrativa tão tardias como as da corrupção. Só que muitos dos casos de corrupção nem decisão judicial conhecem, nem condenatória nem absolutória.
Por outro lado, é preciso ter em conta que as pessoas, sendo um dos elementos fundamentais de qualquer organização, são reconhecidas como a pedra valiosa neste sistema. Convém também salientar que são elas que nos processos de mudança oferecem mais resistência, pelo que deveriam ser motivadas e formadas para a mudança.
E, emergindo um poder judiciário com sede de protagonismo, a contrario, possivelmente, teríamos um sistema judicial mais célere se a relação entre o poder judicial e o poder legislativo não fosse conturbada. O sistema judicial português atravessa uma crise de legitimação, à semelhança do que sucede um pouco por toda a Europa, América Latina, e África.
A justiça e o seu problemático funcionamento sempre têm vindo a ser apontadas como uma das causas para o estado geral da nossa máquina burocrática, sendo recorrentemente apontada por todas as forças políticas como uma das áreas prioritárias de intervenção no âmbito de uma qualquer reforma da nossa Administração Pública, seja ela global, seja ela parcial. A justiça tem que chegar a todos os cidadãos em tempo útil, com celeridade, julgando bem e eliminando com isenção os conflitos que se lhe deparam.
Muitos destes problemas de morosidade só se resolvem com mais formação contínua e mais meios humanos, tecnológicos, infraestruturas – o que há de pesar no Orçamento de Estado.
A morosidade da justiça deve ser combatida com a redução da burocracia, aquela que terá um relevo menor quando lograr reduzir a própria burocracia com vista à redução da morosidade processual. É fundamental implantar meios tecnológicos e recursos humanos com formação adequada à sua utilização, abolir os expedientes desnecessários, promover a cultura da eficiência dos operadores de Justiça e desencadear contínuas campanhas de informação aos cidadãos tendo em linha de conta os direitos que lhes assistem. (cf Guilherme Alberto Mendes Pereira, A Morosidade da Justiça em Portugal: A percepção dos juízes dos Tribunais de 2.ª Instância, dissertação de mestrado, U.M., 2010).
Importa que a Justiça chegue universal, rápida, eficaz e imparcial – pela segurança, liberdade e democracia.
2018.05.08 – Louro de Carvalho

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