segunda-feira, 14 de maio de 2018

Jesus eleva-se ao Céu, envia os discípulos em missão e garante apoio efetivo


A celebração da Solenidade da Ascensão de Jesus – conclusão das aparições pascais e ponto de partida da missão dos apóstolos – ensina que, no final do caminho percorrido no amor e na doação, está a vida definitiva, a da comunhão com Deus e que Jesus nos deixou em testamento a incumbência de assumir e desenvolver, em união com Ele, o projeto libertador de Deus para os homens e para o mundo.
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O Ressuscitado, aparecendo aos discípulos, estimula-os a superar a desilusão e o comodismo, envia-os em missão como testemunhas do projeto de salvação e garante que a sua partida para junto do Pai não configura o seu alheamento da missão, mas a garantia da sua presença ubíqua junto dos discípulos em saída por todo o mundo, a todas as periferias existenciais. Ou seja, de ao pé do Pai, acompanha os discípulos e, por eles, a oferece a todos a vida nova e definitiva.
A perícopa (Mc 16,9-20) de que se toma um pequeno trecho para proclamação evangélica na Solenidade da Ascensão (Mc 9,15-20) distingue-se, no conjunto do Evangelho de Marcos, pelo estilo e vocabulário muito diferentes do resto do texto de Marcos, sendo que os manuscritos mais antigos deste Evangelho concluíam o relato em 16,8, com o medo das mulheres por, na manhã de Páscoa, encontrarem o túmulo vazio. Terá Marcos concluído a narrativa com um final “aberto” como que a convidar o leitor ou o ouvinte a completar o relato com a sua própria experiência pessoal de seguimento de Jesus, vencendo o medo e a propor-se ver Jesus e dar testemunho d’Ele. Porém, a insatisfação causada nos leitores induziu várias tentativas de oferecer ao 2.º Evangelho um final mais explícito e satisfatório. Dessas tentativas, algumas vêm atestadas em diversos documentos antigos portadores do 2.º Evangelho. E, de entre elas, uma se impôs. Trata-se dum texto do séc. II, que apresenta um relato sintético das aparições do Ressuscitado contadas por outros evangelistas. Embora tardio este, “final” é, contudo, parte integrante da Escritura. E a Igreja reconhece-o como inspirado por Deus e como Palavra divina.
Os elementos do trecho evangélico tomado para a Solenidade da Ascensão são a súmula dos relatos de outros evangelistas atinentes ao tema. Assim, a aparição do Ressuscitado aos Onze é retirada de Lc 24,36-43 e Jo 20,19-29; a definição da missão dos apóstolos, de Mt 28,16- 20 e Lc 24,44-49; e o relato da Ascensão, de Lc 24,50-53 e At 1,4-11.
O quadro traçado pelo autor do trecho mostra a reação negativa dos discípulos ao facto de Jesus já não estar com eles. Na manhã da ressurreição, estavam “em luto e em pranto” (Mc 16,10); depois, recebem o testemunho das mulheres que encontraram Jesus, com incredulidade e coração obstinado (cf Mc 16,14); e negam-se a continuar a aventura iniciada com Jesus. O medo do risco leva-os ao comodismo do lamento instalado. É a expressão do antisseguimento. Ora, o encontro com Jesus indu-los a sair do letargo e a assumir o compromisso e a responsabilidade inerentes à condição de membros ativos da comunidade do Reino, com vista à sua expansão.
A questão central é a do papel dos discípulos no mundo, após a partida de Jesus ao encontro do Pai. O texto consta de três elementos: o Ressuscitado define a missão dos discípulos; o Ressuscitado parte ao encontro do Pai; os discípulos partem ao encontro do mundo a concretizar a missão que o Ressuscitado lhes confiou.
Para a definição da missão (vv 15-18), o Ressuscitado acorda os discípulos da letargia em que estavam instalados e define a missão que são chamados a desempenhar no mundo. Esta missão para que são enviados tem como primeiro selo a universalidade. Com efeito, a missão destina-se a “todo o mundo” e não podendo deter-se face a barreiras étnicas, geográficas ou culturais. Depois, precisa o conteúdo do anúncio: o “Evangelho”. Ora, no Antigo Testamento (sobretudo no Déutero-Isaías e no Trito-Isaías), a palavra “evangelho” é a “boa notícia” da chegada da salvação para o Povo de Deus. Mas, na boca de Jesus, a palavra “Evangelho” designa o anúncio de que o “Reino de Deus” chegou à vida dos homens com a paz, a libertação, a felicidade. Assim, para os catequistas das primeiras comunidades cristãs, o “Evangelho” é o anúncio dum acontecimento único, fundamental: em Jesus Cristo, Deus veio ao encontro do homem, manifestou-lhe o seu amor, inseriu-o na sua família, convidou-o a integrar a comunidade do Reino e ofereceu-lhe a vida definitiva, a da comunhão com Deus, com os irmãos e com o mundo. Nestes termos, o único e exclusivo “evangelho” vem mudar o curso da história e transformar o sentido e os horizontes da existência. O anúncio do “Evangelho” obriga os homens a uma escolha. Quem aderir à proposta evangélica, chegará à vida plena (“quem crer e for batizado será salvo”); e quem a recusar, ficará à margem (“quem não acreditar será condenado” – v 16).
O anúncio do Evangelho atingirá não só os homens, mas “toda a criatura”. De facto, o homem, sob critérios de egoísmo, cobiça e lucro, explora a criação, “boa” e harmoniosa que Deus criou. E a proposta de salvação destina-se a transformar o coração do homem, eliminando o egoísmo e a maldade, daqui resultando uma nova relação do homem com todas as criaturas – marcada pelo respeito e pelo amor. Assim, desabrochará uma nova humanidade e uma nova natureza.
A presença da salvação tornar-se-á realidade através dos gestos dos discípulos. Comprometidos com Jesus, vencerão a divisão, injustiça e opressão (“expulsarão os demónios em meu nome” – da intriga, acusação), serão arautos da união, paz e entendimento (“falarão novas línguas”), levarão a esperança e a vida em abundância a todos os que sofrem e que são prisioneiros da doença e do sofrimento (“quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados”); e Jesus estará com eles em todos os momentos, ajudando-os a vencer as contrariedades e oposições.
O segundo elemento do trecho em causa (v 19) mostra que Jesus sobe ao céu e Se senta à direita de Deus. A elevação de Jesus ao céu (ascensão) sugere que, após o cumprimento da sua missão no meio dos homens, Jesus foi ao encontro do Pai reentrando na comunhão com o Pai. É esta a entronização de Jesus que mostra a veridicidade da sua proposta. Na conceção dos povos antigos, quem se senta à direita do rei é uma personagem distinta que o rei quer honrar de forma especial. Ora, Jesus, tendo cumprido com total fidelidade o plano de Deus para com os homens, é honrado pelo Pai ficando sentado à sua direita. A proposta de Jesus acolhida pelos discípulos não é aventura sem sentido e sem saída, mas o projeto de salvação que Deus oferece ao homem.
E o terceiro elemento do texto em causa (v 20) sintetiza a ação missionária dos discípulos: eles partiram (i.e, deixaram para trás as seguranças e afetos humanos) a pregar (i.e, a anunciar com palavras e gestos concretos a vida nova que Deus ofereceu aos homens por Jesus) por toda a parte (propondo a todos os homens, sem exceção, a proposta salvadora de Deus).
E os discípulos não estão sozinhos ao longo durante a missão. Jesus, vivo e ressuscitado, está com eles, coopera com eles e manifesta-Se ao mundo nas palavras e nos gestos deles.
A Solenidade da Ascensão de Jesus é, sobretudo, o momento em que os discípulos se consciencializam da sua missão e papel no mundo. A Igreja – comunidade dos discípulos, reunida à volta de Jesus e animada pelo Espírito, não se esgotando em si própria, mas almejando a sua dilatação e o livre envolvimento de toda a criatura em prol do Reino de Deus – é, essencialmente, a comunidade missionária cuja missão é testemunhar no mundo a proposta de salvação e de libertação; e, por outro lado, preparar a entrada definitiva dos batizados na comunhão com o Pai e a ocupação dum lugar à Sua direita com e como Cristo.
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A primeira leitura da Solenidade (At 1,1-11) reitera a mensagem essencial do mistério: Jesus, depois de ter apresentado ao mundo o projeto do Pai, entra na vida definitiva da comunhão com Deus – a mesma que espera todos os que trilham o “caminho” que Jesus percorreu. E os discípulos não podem ficar a olhar para o céu em passividade pasmada e alienante, nem ficar a ver o mundo a partir da varanda do Palácio, mas têm de ir para o meio dos homens continuar o projeto de Jesus, testemunhando-o, presentificando-o e evidenciando-lhes os germes de futuro.
O livro dos “Atos dos apóstolos” dirige-se a comunidades que vivem em contexto de crise (na década de 80, cerca de 50 anos após a morte de Jesus). Passada a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o Reino, surge a desilusão psicológica e a confusão nas questões doutrinais; a monotonia favorece a vida cristã ora pouco comprometida; as comunidades instalam-se na mediocridade; e falta o entusiasmo e o empenho. O mundo está na mesma e fica protelada a esperada intervenção vitoriosa de Deus. É neste ambiente que se insere o texto lucano e, em especial, o trecho tomado como primeira leitura da Solenidade. Nele, Lucas avisa que o projeto de salvação e de libertação passou de Jesus para as mãos da Igreja, animada pelo Espírito. A construção do Reino é tarefa não consumada, mas tem de ser concretizada na história exigindo o empenho contínuo de todos os crentes. Os cristãos são, pois, instados a redescobrir o seu papel, no sentido de testemunhar o projeto de Deus, na fidelidade ao “caminho” percorrido por Jesus – Jesus ora presente no pobre, no doente e no descartado.
O trecho começa com o prólogo (vv 1-2) que relaciona “Atos” com o 3.° Evangelho, tanto na referência a Teófilo, a quem dedica o Evangelho, como na alusão a Jesus, seus ensinamentos e à sua ação no mundo (tema central do 3.° Evangelho). São ainda apresentados os protagonistas do livro – o Espírito Santo e os apóstolos, vinculados com Jesus, presente na Palavra proclamada.
Depois desta apresentação, vem o relato da despedida de Jesus (vv 3-8). O autor faz referência aos “quarenta dias” que mediaram entre a ressurreição e a ascensão, nos quais Jesus falou aos discípulos “sobre o Reino de Deus” (o que parece contradizer o Evangelho, onde ressurreição e ascensão são apresentadas no dia de Páscoa – cf Lc 24). O número quarenta, como número simbólico, define o tempo requerido para o discípulo aprender e repetir as lições do mestre. Aqui define, portanto, o tempo de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado. As palavras de despedida (vv 4-8) realçam dois aspetos: a vinda do Espírito e o testemunho que os discípulos são chamados a dar “até aos confins do mundo”. Temos aqui em síntese a experiência missionária da comunidade de Lucas: o Espírito derramar-se-á sobre a comunidade crente e dará a força para testemunhar Jesus em todo o mundo, de Jerusalém a Roma. Trata-se do programa que Lucas apresenta, posto na boca de Jesus ressuscitado. O autor mostra com a sua obra que o testemunho e a pregação da Igreja estão entroncados no próprio Jesus e são impulsionados pelo Espírito. E os temas da pregação apostólica ficam explicitados: uso das Escrituras; apelo à conversão; anúncio do perdão; e testemunho dos Doze. O último tema é o da ascensão (vv 9-11), passagem que precisa de interpretação para, na roupagem dos símbolos, a mensagem aparecer com toda a claridade. Na elevação de Jesus ao céu, não temos a pessoa a descolar literalmente da terra e a elevar-se. Estamos, antes, a falar num sentido teológico, pois a ascensão é a forma simbólica de expressar que a exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supraterrenas; é a forma literária de descrever o culminar da vida vivida para Deus por parte de quem agora reentra na glória da comunhão com o Pai, ora antecipada pela presença de Jesus na Eucaristia.
A seguir, temos a nuvem que subtrai Jesus aos olhos dos discípulos. Pairando entre o céu e a terra, a nuvem é teofânica, no A. T., ou seja, símbolo privilegiado de expressão da presença divina (cf Ex 13,21.22; 14,19.24; 24,15b-18; 40,34-38). Simultaneamente esconde e manifesta: sugere o Deus escondido e presente, cujo rosto o Povo não pode ver, mas cuja presença adivinha nos acidentes do percurso. Céu e terra, divino e humano, são dimensões inerentes ao Ressuscitado, ora elevado à glória do Pai, mas que, oculto, continua a caminhar com os discípulos.
E é esta simbiose da presença de Jesus com os discípulos, e na comunidade dos discípulos reunidos, e da consciência da missão que não permite à Igreja a condição de pasmada a olhar para o Alto sem ter os pés assentes na terra e aptos para o caminho (angelismo), mas que também não lhe permite caminhar pressurosamente sem a força do Alto e sem a sua referência (ativismo).
Temos, assim, que os discípulos se tentam a ficar a olhar para o céu. Ou seja, a comunidade tenta-se a ficar na ansiosa expectativa da segunda vinda de Cristo, a fim de passivamente levar a termo o projeto de libertação do homem e do mundo. Por isso, vêm os dois homens vestidos de branco, sugerindo o mundo de Deus, o que indica que o testemunho dos discípulos vem de Deus, mas que não pode fechar-se em si mesmo ou reduzir-se ao pequeno mundo dos atuais crentes. Assim, os dois homens convidam os discípulos a continuar no mundo, animados pelo Espírito, a obra libertadora de Jesus; agora, é a comunidade que tem de continuar, na história, a obra de Jesus, embora com a esperança posta na definitiva vinda do Senhor.
O sentido fundamental da Ascensão não é admirar a elevação de Jesus, mas convidar-nos a seguir o “caminho” de Jesus, olhando, não para o ar ou para o balão, mas para o céu e para o futuro, entregando-nos à realização do seu projeto de salvação no meio do mundo.
Assim, a carta aos Efésios, tomada para 2.ª leitura insta os discípulos à consciência da esperança a que estão chamados, devendo caminhar ao encontro dela de mãos dadas com os irmãos – membros do mesmo “corpo” – e em comunhão com Cristo, a “cabeça” desse “corpo”. Cristo reside no seu “corpo”, que é a Igreja, e, nela torna-se hoje presente no meio dos homens.
Nesta nossa peregrinação, esta “esperança”, alicerçada na ressurreição, ascensão e glorificação de Jesus, é o garante da nossa própria ressurreição e glorificação. Formamos com Ele um “corpo” destinado à vida plena. Esta ótica dá-nos a força para enfrentar a história e avançar no “caminho” do amor e da entrega total que Cristo percorreu. Fazer parte do “corpo de Cristo” implica viver em comunhão com Ele e receber, a cada instante, a vida que nos alimenta na Palavra e na Eucaristia; e implica a comunhão, em solidariedade total com todos os irmãos, membros deste “corpo”, alimentados pela mesma vida. E crer que a Igreja é o “pleroma” de Cristo requer a obrigação de testemunhar Cristo, de O tornar presente no mundo, de levar à plenitude o projeto de libertação que Ele começou em favor dos homens. Esta é tarefa que só estará consumada quando, pelo testemunho e pela ação dos crentes, Cristo for “um em todos”.
2018.05.14 – Louro de Carvalho

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