É o título do documento da Congregação
para a Doutrina da Fé
e do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, de 6 de janeiro e publicado a 17 de maio,
por ordem de Francisco, que tece considerações para um discernimento ético sobre alguns aspetos do atual
sistema económico-financeiro. Dele se respigam os dados tidos por mais pertinentes.
Reconhecendo
a crescente influência do mercado no bem-estar material de boa parte da
humanidade, a Santa Sé evidencia a necessidade da adequada regulação das suas
dinâmicas e da clara fundamentação ética, que assegure ao bem-estar uma
qualidade humana das relações que os mecanismos económicos, por si, não produzem.
Neste sentido, vem ao de cima “a necessária harmonia entre o saber técnico e a
sabedoria humana, sem a qual todo o agir humano termina por deteriorar-se”,
podendo-se, ao invés, com esta harmonia, “progredir numa via de um bem-estar
para o homem que seja real e integral”. A preocupação da Igreja por estas matérias
insere-se no âmbito da “promoção integral de cada pessoa, de cada comunidade humana
e de todos os homens”, enquanto “horizonte último daquele bem comum que a
Igreja se propõe de realizar como sacramento universal de salvação”. Com efeito, a caridade “como via mestra da ação eclesial, é
chamada a exprimir-se também no amor social, civil e político”, que se mostra “em
todas as ações que procuram construir um mundo melhor”. De facto, “o amor ao
bem integral, inseparavelmente do amor pela verdade, é a chave de um autêntico
desenvolvimento”.
Há em todas
as culturas “multíplices convergências éticas, expressão de uma comum sabedoria
moral, em cuja ordem objetiva se funda a dignidade da pessoa”. E, no quadro dos
princípios comuns emergentes dessas convergências leem-se “os fundamentais
direitos e deveres do homem, sem os quais o arbítrio e o abuso do mais forte
acabam por dominar na realidade humana”. E essa ordem ética, radicada na
sabedoria do Criador, é o “fundamento para edificar uma digna comunidade humana
regulada por leis baseadas numa justiça verdadeira” e constitui a “reta
orientação da razão” que não pode faltar “em cada setor do agir humano”, de
modo que se consiga “uma ética fundada na liberdade, na verdade, na justiça e
na solidariedade”, longe do egoísmo e individualismo e
estranha à ganância. Ora, “isto vale também para os âmbitos em que vigoram as
leis da política e da economia: pensando no bem comum, hoje precisamos
imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem
decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida
humana”. Na verdade, cada atividade humana “é chamada a produzir fruto
dispondo, com generosidade e equidade, dos dons que Deus pôs originariamente à
disposição de todos e desenvolvendo com viva confiança as sementes do bem
inscritas, como promessa de fecundidade, na Criação inteira” – o que significa “um
convite permanente para a liberdade humana, mesmo se o pecado insidia sempre
este originário projeto divino”.
Apesar de o
bem-estar económico global ter crescido imenso e rápido, ao longo da 2.ª metade
do século XX, aumentaram as desigualdades entre os vários países e no interior
dos mesmos e continua ingente o número de pessoas a viver em condições de
extrema pobreza.
A recente crise
financeira, que podia ser ocasião para o desenvolvimento duma economia atenta aos
princípios éticos e para nova regulamentação da atividade financeira a
neutralizar os aspetos predatórios e especulativos e a valorizar o serviço à
economia real, não conseguiu, apesar dos muitos esforços positivos, levar a “repensar
aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo”.
Antes, parece “retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que,
prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de
criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje
tão evidentes”.
É verdade que,
em primeiro lugar, cabe aos competentes operadores “elaborar novas formas de
economia e finanças, cujas práticas e regras estejam voltadas para o progresso
do bem comum e sejam respeitadoras da dignidade humana, no seguro sulco
oferecido pelo ensinamento social da Igreja”. Todavia, a Santa Sé pretende
oferecer algumas considerações de fundo e pontualizações em prol do progresso
social e em defesa da dignidade da pessoa humana. Em particular, sente-se a
necessidade duma reflexão ética sobre alguns aspetos da intermediação
financeira, “cujo funcionamento, quando foi desvinculado de adequados
fundamentos antropológicos e morais”, “produziu evidentes abusos e injustiças”
e se revelou criador de crises sistémicas e de alcance mundial. É um “discernimento
oferecido a todos os homens e mulheres de boa vontade”.
***
Considerações elementares de fundo (de índole epistemológica)
- Não existem
receitas económicas válidas sempre e universalmente, devendo, em cada momento,
tomar-se conhecimento da situação histórica em que vivemos.
- Cada
realidade e atividade humana, se vivida no horizonte duma ética adequada (no respeito da dignidade humana e
orientada para o bem comum), é positiva – o que vale para todas as instituições da sociabilidade
humana em que se incluem os mercados, mesmo os financeiros.
- Os
mercados, antes de se regularem por dinâmicas anónimas, elaboradas com base em
tecnologias sofisticadas, fundam-se em relações que não podem ser instauradas
sem o envolvimento da liberdade das pessoas singulares, pelo que a economia, como
qualquer outro âmbito humano, tem necessidade não duma ética qualquer, mas duma
ética amiga da pessoa.
- Sem uma
adequada visão do homem não é possível fundar nem uma ética, nem uma práxis à
altura da sua dignidade e dum bem que seja realmente comum.
- A nossa
época revelou as limitações da visão individualista do homem, entendido como
consumidor, cuja vantagem consistiria na otimização dos seus ganhos
pecuniários.
- É fundamental
no homem a índole relacional e dialogal caraterizada por uma racionalidade que
resiste a qualquer redução reificante das suas exigências de fundo. Não é possível
calar que hoje existe a tendência a reificar cada troca de bens reduzindo-os a
mera troca de “coisas”. Ora,
na
transferência de bens está em jogo algo mais que a simples troca de coisas,
pois os bens materiais são comummente veículos de outros bens imateriais (vg: confiança, equidade, cooperação...).
- Cada
progresso do sistema económico não pode considerar-se tal se medido só nos parâmetros
da qualidade e eficácia em produzir ganhos, mas deve ser medido também na base
da qualidade de vida que produz e da extensão social do bem-estar que difunde.
- As
instituições universitárias e as business schools devem prever
nos curricula de estudos, não em sentido marginal ou
acessório, mas essencial, cursos de formação que eduquem para a compreensão da
economia e da finança à luz duma visão completa do homem, não reduzida a algumas
de suas dimensões, e duma ética que a expresse (a Doutrina social da Igreja oferece uma ajuda).
- O bem-estar
deve ser avaliado com critérios mais amplos que o PIB (produto interno bruto) dum País, levando em consideração
outros parâmetros, como segurança, saúde, crescimento do capital humano,
qualidade da vida social e do trabalho.
- O ganho pode
ser sempre buscado, mas não a qualquer custo nem como referência totalizante da
ação económica.
- É
pertinente o reconhecimento da conveniência humana da gratuitidade que provém da
regra formulada por Jesus no evangelho, chamada regra de ouro, que
nos convida a fazer aos outros aquilo que gostaríamos que fosse feito a nós (cf Mt 7, 12; Lc 6, 31).
- A atividade
económica não se sustenta longamente a não ser num clima de sadia liberdade de
iniciativa. Porém, a liberdade de que gozam os agentes económicos, se
compreendida de modo absoluto e distante da intrínseca referência à verdade e
ao bem, gera centros de supremacias e formas de oligarquias que prejudicam a
eficiência do sistema económico e desorientam os que devem exercer o poder político,
ficando impotentes face à supranacionalidade daqueles agentes e pela volatilidade
dos capitais por eles geridos.
- Todas as
dotações e meios utilizados pelos mercados para potencializar a sua capacidade
distributiva (allocation) e não voltados contra a dignidade
da pessoa nem indiferentes ao bem comum, são moralmente admissíveis. Todavia, os
mercados não são capazes de se regularem por si mesmos, pois não sabem produzir
os pressupostos do seu desenvolvimento regular (coesão social, honestidade, confiança, segurança,
leis...), nem corrigir
os efeitos e as externalidades prejudiciais à sociedade humana (desigualdade, assimetrias, degradação
ambiental, insegurança social, fraudes...). E é de notar que no mundo económico-financeiro se
verificam condições em que alguns destes meios, mesmo não sendo imediatamente
inaceitáveis do ponto de vista ético, configuram casos de imoralidade
próxima, isto é, ocasiões em que muito facilmente se criam abusos e enganos,
em especial, prejuízos à contraparte menos favorecida. Por exemplo,
comercializar alguns instrumentos financeiros, por si mesmo é lícito. Contudo,
em situação de assimetria, aproveitar-se das lacunas conhecidas ou da
fragilidade contratual duma das contrapartes constitui violação da devida
exatidão relacional e é grave infração do ponto de vista ético.
- Também o
dinheiro é por si mesmo um instrumento bom, como muitas coisas de que o homem
dispõe: é um meio à disposição da sua liberdade e do alargamento das suas
possibilidades. Mas pode voltar-se facilmente contra o homem. E o financiamento
do mundo empreendedor, consentindo às empresas ter acesso ao dinheiro mediante
o ingresso no mundo da livre contratação bolsista, sendo positivo, apresenta o
risco de acentuar a ideia ruim de financiamento da economia de fazer com que a
riqueza virtual, concentrando-se sobretudo em transações caraterizadas pelo
mero intento especulativo e em negociações de alta frequência (high frequency trading), atraia a si excessiva quantidade
de capitais, subtraindo-os em tal modo dos circuitos virtuosos da economia
real.
-
Considerando a função social do crédito, cuja disponibilidade incumbe antes de mais
a intermediadores financeiros habilitados e afidáveis, é claro que aplicar
taxas de juros excessivamente elevadas, não sustentáveis pelos sujeitos que
tomaram os créditos, representa uma operação não só eticamente ilegítima, mas
também disfuncional à saúde do sistema económico.
Em suma,
O fenómeno
inaceitável sob o ponto de vista ético não é o ganhar, mas o aproveitar duma
assimetria para própria vantagem, criando notáveis ganhos a dano de outrem.
Pontualizações no contexto contemporâneo em prol da dignidade
humana e bem comum
- O mercado,
graças ao progresso da globalização e da digitalização, é comparável a um
grande organismo, em cujas veias corre, como linfa vital, grandíssima quantidade
de capitais. Podemos então falar da “saúde” de tal organismo, quando os meios e
instrumentos realizam a boa funcionalidade do sistema, caminhando
harmonicamente o crescimento e difusão da riqueza. Na presença da saúde do
sistema-mercado, é mais fácil ser respeitada e promovida a dignidade dos homens
e o bem comum.
- Compreende-se,
como imperativo moral, a exigência de introduzir uma certificação da parte da
autoridade pública em relação aos produtos que provêm da inovação financeira,
com o objetivo de preservar a saúde do sistema e prevenir efeitos colaterais
negativos.
- Tal saúde
nutre-se duma multiplicidade e diversidade de recursos que constituem uma certa
“biodiversidade” económica e financeira, que representa um valor agregado ao
sistema económico a favorecer e salvaguardar através de adequadas políticas
económico-financeiras, para assegurar nos mercados a presença duma pluralidade
de sujeitos e instrumentos sadios, com riqueza e diversidade de carateres com
vista à sustentabilidade da sua ação e à obstaculização do que deteriore a
funcionalidade dum sistema de produção e difusão de riqueza.
- Quando o
homem reconhece a fundamental solidariedade que o vincula a todos os outros
homens, sabe bem que não pode reter só para si os bens de que dispõe, mas que estes
são utilizados não apenas para as próprias necessidades como também se
multiplicam, levando sempre um fruto além do esperado, para os outros.
- A
experiência dos últimos decénios mostrou com evidência, dum lado, a ingenuidade
da confiança na presumida autossuficiência da capacidade funcional dos
mercados, independente de qualquer ética, e de outro, a imperiosa necessidade duma
adequada regulação dos mesmos.
- Tal
regulação tornou-se ainda mais necessária pela constatação de que entre os
principais motivos da recente crise económica se contam as condutas imorais dos
expoentes do mundo financeiro, pelo facto de a dimensão supranacional do
sistema económico consentir em contornar facilmente as regras estabelecidas
pelos países singulares, bem como pela extrema volatilidade e mobilidade dos
capitais investidos no mundo financeiro. Por isso, os mercados precisam de
sólidas e robustas orientações macroprudenciais e normativas, o mais possível
partilhadas e uniformes, e de regras a atualizar continuamente, que devem
favorecer uma completa transparência do que é negociado, com o objetivo de
eliminar qualquer forma de injusta desigualdade, buscando garantir o mais
possível um equilíbrio nas trocas.
- Um sistema
financeiro sadio exige também a máxima informação possível, de modo que cada
sujeito possa tutelar em plena e consciente liberdade os seus interesses.
- Ora, há uma
série de comportamentos moralmente criticáveis dos consultores financeiros na
gestão dos recursos: excessiva movimentação da carteira de títulos para
aumentar os ganhos originários das comissões pela intermediação; diminuição da
devida imparcialidade na oferta de instrumentos de poupança, em regime de
acordos ilícitos com alguns bancos, quando produtos de outros se adaptariam melhor
às exigências do cliente; falta de adequada diligência ou negligência dolosa
por parte dos consultores, em relação à tutela dos interesses relativos aos ganhos
dos próprios clientes; e concessão dum financiamento, por parte dum
intermediário bancário, em via subordinada à contextual subscrição doutros
produtos financeiros emitidos pelo mesmo, talvez não conveniente ao cliente.
- A empresa
constitui importante rede de relações e representa um verdadeiro corpo social
intermédio com cultura e prática próprias, que, enquanto determinantes da
organização interna da empresa, influenciam o tecido social em que ela age. A
este nível, a Igreja ressalta a importância duma responsabilidade social da
empresa, que se explicita ad extra e ad intra.
- A avaliação do mérito do crédito exige a individuação
de beneficiários dignos e capazes de inovar e evitar colusões incorretas. Porém,
a banca deve dispor de convenientes reservas operativas e patrimoniais para
sustentar cabalmente os riscos e para a eventual socialização de perdas se
limitar o mais possível e recair sobretudo sobre os responsáveis efetivos.
- Os títulos de crédito de alto risco – que operam uma espécie de criação
fictícia de valor, sem adequado controlo de qualidade e correta
avaliação do crédito – podem enriquecer os que os intermediam, mas criam
facilmente insolvência em prejuízo de quem deve recebê-los.
- Denuncia-se a construção de estruturas cada vez mais complexas,
associadas a alguns produtos financeiros, como os “derivados”,
em que é difícil estabelecer, em modo racional e équo, o valor fundamental
delas e que chegam gerar bolhas as ditas bolhas financeiras.
- Aponta-se o
dinamismo que regula os mercados financeiros, seja na taxa de juros relativa
aos empréstimos interbancários (LIBOR), que serve de
guia no mercado monetário, sejam as taxas de câmbio oficiais de diversas moedas
praticadas pelos bancos. Porém, a manipulação destas taxas constitui grave
violação ética, com consequências de amplo alcance, e mostra a fragilidade e a
exposição a fraudes dum sistema financeiro não suficientemente controlado por
regras e desprovido de sanções proporcionadas às violações em que incorrem os
seus atores.
- Por isso, os
que operam no mundo financeiro devem ser dotados de organismos internos que
garantam uma função de compliance, ou seja, de autocontrolo da
legitimidade dos principais passos do processo decisional e dos maiores
produtos oferecidos pela empresa. Todavia, a prática do sistema económico-financeiro
com frequência se funda substancialmente na conceção “negativa” da compliance,
ou seja, em obséquio meramente formal dos limites estabelecidos pelas leis. Daqui
derivou a frequente prática de fugir dos controlos normativos, pela prática de
ações voltadas a manipular os princípios normativos com a preocupação de não
contradizer explicitamente as suas normas, para não sofrer as sanções.
- Para evitar
isto, tem o juízo de compliance de entrar no mérito das operações de modo “positivo”,
verificando a sua efetiva correspondência aos princípios que constituem a
normativa vigente. Tal função facilitar-se-ia com a instituição de Comissões Éticas
a operar junto dos Conselhos de Administração, como um natural interlocutor dos
que devem garantir, no concreto operar do banco, a conformidade de
comportamentos com as normativas existentes. Assim, no interior da empresa providenciar-se-ia
a linhas-guia que consintam em agilizar um semelhante juízo de correspondência,
que possa discernir quais, entre as operações tecnicamente realizáveis sob o
aspeto jurídico, sejam concretamente também legítimas e praticáveis do ponto de
vista ético (a questão
que põe-se, por exemplo, de modo muito relevante quanto as práticas de elusão
fiscal). Passar-se-ia da
obediência formal à substancial.
- Escalpeliza-se
a tentativa de fuga ao controlo das entidades estatais e a prática da fraude e evasão
fiscais pela subtração de informação em devido tempo, pela falsificação de documentos
e pela transferência de altas verbas para os chamados paraísos fiscais, sendo
que do desígnio especulativo se nutre o mundo das finanças offshore, que,
oferecendo também outros serviços lícitos, constitui, mediante muitos e difusos
canais de elusão fiscal, quando não de evasão e de lavagem de dinheiro fruto do
crime, um ulterior empobrecimento do normal sistema de produção e distribuição
de bens e de serviços. É difícil distinguir se muitas de tais situações
configuram casos de imoralidade próxima ou imediata, mas é claro
que tais realidades, se tiram injustamente a linfa vital da economia real,
dificilmente podem encontrar legitimação, seja do ponto de vista ético, seja do
ponto de vista da eficiência global do sistema económico. E surge cada vez mais
evidente o grau de correlação não transcurável entre os comportamentos não
éticos dos operadores e os resultados falimentares do sistema no seu complexo. É
inegável que as carências éticas exacerbam as imperfeições dos mecanismos do
mercado.
- Sendo razão
para legitimar a presença das sedes offshore livrar os investidores
institucionais da dupla taxação, primeiro, no país de residência e, depois, no
país de domiliação dos fundos, de facto, aqueles lugares tornaram-se em grande
medida ocasião de operações financeiras que frequentemente estão no limite do
permitido (border line), quando não o ultrapassam (beyond the pale), quer do ponto de vista
normativo, quer do ético, ou seja, duma cultura económica sadia e livre de
meras intenções de manipulação fiscal.
- Dissimulando
o facto de as operações offshore não ocorrerem nas suas sedes
financeiras oficiais, alguns Estados consentiam que se tirasse ganho mesmo com
o crime, sentindo-se desresponsabilizados por os ganhos não serem realizados
formalmente sob a jurisdição deles – o que representa, do ponto de vista moral,
uma evidente forma de hipocrisia.
- O sistema
tributário estabelecido pelos Estados não é sempre équo. Assim, é de destacar
como tal iniquidade vai, por vezes, em desvantagem dos sujeitos económicos mais
frágeis e em vantagem dos mais providos e capazes de influenciar os sistemas
normativos que regulam os tributos. Ora, a tributação, se equitativa,
desenvolve a fundamental função de justiça e redistribuição da riqueza, não só
em prol dos que necessitam de oportunos subsídios, mas também para sustentáculo
dos investimentos e do crescimento da economia real. Porém, a manipulação
fiscal dos principais atores do mercado, em especial dos grandes intermediários
financeiros, representa injusta subtração de recursos da economia real e lesa
toda a sociedade civil. E, considerada a opacidade daqueles sistemas, é difícil
estabelecer a quantidade de capitais que transitam nos mesmos. Porém,
calcula-se que bastaria uma mínima taxa sobre as transações realizadas offshore para
resolver muito do problema da fome no mundo. Ademais, as sedes offshore favorecem
uma enorme saída de capitais de muitos países de baixa renda, gerando numerosas
crises políticas e económicas e impedindo os mesmos de tomar finalmente a direção
do crescimento e dum saudável desenvolvimento.
- Diversas
instituições internacionais denunciaram isto e alguns governos nacionais tentaram
limitar o efeito das sedes offshore. Todavia, até agora não
conseguiram impor acordos e normativas eficazes, pois os esquemas normativos
propostos por reconhecidas organizações internacionais foram frequentemente
inaplicáveis ou tornados ineficazes, graças às notáveis influências que aquelas
sedes financeiras conseguem exercitar, considerando o grande capital de que
dispõem, em relação a tantos poderes políticos. Ora, isto constitui grave dano
à boa funcionalidade da economia real e representa uma estrutura que resulta de
tudo inaceitável do lado da ética. Portanto, é urgente estabelecerem-se, a
nível internacional, oportunos remédios a tais iníquos sistemas, praticando, a
todos os níveis, a transparência financeira (por exemplo, pela obrigação da prestação de contas
públicas pelas empresas multinacionais, das respetivas atividades e dos
impostos pagos em cada país onde operam através de próprias sociedades subsidiárias) e impondo sanções rígidas aos
países que repetem as práticas desonestas referidas acima (evasão e elusão fiscal, lavagem de
dinheiro).
- O
sistema offshore, sobretudo em países de economias menos
desenvolvidas, agrava a dívida pública. De facto, a riqueza privada de algumas
elites acumulada nos paraísos fiscais quase iguala a dívida pública dos respetivos
países. Isto evidencia como na origem de tal dívida estão frequentemente os
passivos económicos gerados pelos privados, depois colocados nos ombros do
sistema público. Além disso, importantes sujeitos económicos tendem a prosseguir
de forma constante, com a conivência dos políticos, a prática de socialização
das perdas.
- Muitas
vezes, a dívida pública é gerada por uma negligente – e até dolosa – gestão do
sistema administrativo público. De facto, o total de passivos financeiros que
pesa sobre os Estados representa um dos maiores obstáculos ao funcionamento e
crescimento das várias economias nacionais, que arcam com pesado serviço da
dívida (vg: juros), ficando impedidas de fazer os necessários
ajustamentos estruturais.
- Assim, por
um lado, os Estados individualmente são chamados a pôr remédio com adequadas
gestões do sistema público e sábias reformas estruturais, prudentes subdivisões
das despesas e atentos investimentos; por outro lado, a nível internacional, mesmo
pondo cada país frente às suas responsabilidades, são de promover e favorecer
racionais vias de saída das espirais da dívida, não pondo nos ombros dos
Estados – portanto, nos dos cidadãos, isto é, de milhões de famílias – as
obrigações que resultam insustentáveis. Com estas medidas se devem aliar políticas
de racional e acordada redução da dívida pública, sobretudo quando esta está em
poder de sujeitos cuja consistência económica lhes permita oferecê-la. Tais
soluções são pedidas para a saúde do sistema económico internacional para
evitar a contaminação de crises potencialmente sistemáticas e para a busca do
bem comum dos povos conjuntamente.
- Isto não é obra
só de entidades superiores; recai na esfera das nossas responsabilidades e possibilidades,
pois dispomos de instrumentos para contribuir para a solução dos problemas. Por
exemplo, como os mercados vivem da procura e a oferta, podemos influenciar de
modo decisivo dando forma à procura pelo exercício crítico e responsável do
consumo e da poupança e pelo empenho quotidiano com que nos provemos do
necessário através da escolha entre os produtos oferecidos pelo mercado. Optando
por bens portadores dum percurso digno do ponto de vista ético, expressamos, através
do gesto de consumo, aparentemente banal, uma ética e somos chamados a tomar
uma posição diante do que traz vantagem ou dano ao homem concreto.
- Idênticas
considerações se fazem quanto à gestão das poupanças e capitais, por exemplo,
endereçando-os às empresas que operam com claros critérios, inspiradas na ética
respeitadora de todo o homem e de todos os homens e num horizonte de
responsabilidade social. Cada um é chamado a cultivar práticas de produção da
riqueza em consonância com a sua índole relacional e propícia a um
desenvolvimento integral da pessoa.
Em suma
Ante a
imponência e difusão dos contemporâneos sistemas económico-financeiros, podemos
ser tentados a ceder ao cinismo e pensar que pouco podemos fazer com as nossas
pobres forças.
Ora, cada um pode
fazer muito, sobretudo se não permanece só. Muitas associações da sociedade
civil representam uma reserva de consciência e de responsabilidade social de que
não se pode prescindir. Somos chamados a vigiar como sentinelas da vida de
qualidade e intérpretes do novo protagonismo social, orientando a ação pela
busca do bem comum e fundando-a sobre os sólidos princípios da solidariedade e
da subsidiariedade. Cada gesto de liberdade, mesmo frágil e insignificante, se
verdadeiramente orientado para o bem, apoia-se Naquele que é o Senhor bom da
história, e torna-se parte duma positividade que supera as nossas forças,
unindo indissoluvelmente todos os atos de boa vontade numa rede que liga céu e
terra, verdadeiro instrumento de humanização do homem e do mundo.
A Igreja, Mãe
e Mestra, consciente de ter recebido como dom um depósito imerecido, oferece
aos homens e às mulheres de cada tempo os recursos para uma esperança
confiável. E Maria, Mãe de Deus feito homem por nós, tomará em suas mãos os
nossos corações e os guiará na sábia construção daquele bem que seu filho
Jesus, mediante a sua humanidade tornada nova pelo Espírito Santo, veio
inaugurar para a salvação do mundo.
***
Um apelo romano
a que vejamos, ouçamos e leiamos, mas também a que façamos qualquer coisa, como
a interior e pública tomada de posição crítica, a orientação ética na escolha
dos bens de consumo que adquirirmos e a entrega das poupanças a agentes que se
pautem pela ética respeitadora da liberdade e da dignidade e promotora do bem comum!
Um apelo romano aos políticos para que decidam eticamente e aos agentes
económicos e financeiros para que procedam em conformidade, sem se refugiarem
em esquemas escusos e a prescindirem da tentação de dominar os poder político!
2018.05.24 – Louro de Carvalho
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