quinta-feira, 24 de maio de 2018

Oeconomicae et pecuniariae quaestiones


É o título do documento da Congregação para a Doutrina da Fé e do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, de 6 de janeiro e publicado a 17 de maio, por ordem de Francisco, que tece considerações para um discernimento ético sobre alguns aspetos do atual sistema económico-financeiro. Dele se respigam os dados tidos por mais pertinentes.
Reconhecendo a crescente influência do mercado no bem-estar material de boa parte da humanidade, a Santa Sé evidencia a necessidade da adequada regulação das suas dinâmicas e da clara fundamentação ética, que assegure ao bem-estar uma qualidade humana das relações que os mecanismos económicos, por si, não produzem. Neste sentido, vem ao de cima “a necessária harmonia entre o saber técnico e a sabedoria humana, sem a qual todo o agir humano termina por deteriorar-se”, podendo-se, ao invés, com esta harmonia, “progredir numa via de um bem-estar para o homem que seja real e integral”. A preocupação da Igreja por estas matérias insere-se no âmbito da “promoção integral de cada pessoa, de cada comunidade humana e de todos os homens”, enquanto “horizonte último daquele bem comum que a Igreja se propõe de realizar como sacramento universal de salvação”. Com efeito, a caridade “como via mestra da ação eclesial, é chamada a exprimir-se também no amor social, civil e político”, que se mostra “em todas as ações que procuram construir um mundo melhor”. De facto, “o amor ao bem integral, inseparavelmente do amor pela verdade, é a chave de um autêntico desenvolvimento”.
Há em todas as culturas “multíplices convergências éticas, expressão de uma comum sabedoria moral, em cuja ordem objetiva se funda a dignidade da pessoa”. E, no quadro dos princípios comuns emergentes dessas convergências leem-se “os fundamentais direitos e deveres do homem, sem os quais o arbítrio e o abuso do mais forte acabam por dominar na realidade humana”. E essa ordem ética, radicada na sabedoria do Criador, é o “fundamento para edificar uma digna comunidade humana regulada por leis baseadas numa justiça verdadeira” e constitui a “reta orientação da razão” que não pode faltar “em cada setor do agir humano”, de modo que se consiga “uma ética fundada na liberdade, na verdade, na justiça e na solidariedade, longe do egoísmo e individualismo e estranha à ganância. Ora, “isto vale também para os âmbitos em que vigoram as leis da política e da economia: pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana”. Na verdade, cada atividade humana “é chamada a produzir fruto dispondo, com generosidade e equidade, dos dons que Deus pôs originariamente à disposição de todos e desenvolvendo com viva confiança as sementes do bem inscritas, como promessa de fecundidade, na Criação inteira” – o que significa “um convite permanente para a liberdade humana, mesmo se o pecado insidia sempre este originário projeto divino”.
Apesar de o bem-estar económico global ter crescido imenso e rápido, ao longo da 2.ª metade do século XX, aumentaram as desigualdades entre os vários países e no interior dos mesmos e continua ingente o número de pessoas a viver em condições de extrema pobreza.
A recente crise financeira, que podia ser ocasião para o desenvolvimento duma economia atenta aos princípios éticos e para nova regulamentação da atividade financeira a neutralizar os aspetos predatórios e especulativos e a valorizar o serviço à economia real, não conseguiu, apesar dos muitos esforços positivos, levar a “repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece “retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes”.
É verdade que, em primeiro lugar, cabe aos competentes operadores “elaborar novas formas de economia e finanças, cujas práticas e regras estejam voltadas para o progresso do bem comum e sejam respeitadoras da dignidade humana, no seguro sulco oferecido pelo ensinamento social da Igreja”. Todavia, a Santa Sé pretende oferecer algumas considerações de fundo e pontualizações em prol do progresso social e em defesa da dignidade da pessoa humana. Em particular, sente-se a necessidade duma reflexão ética sobre alguns aspetos da intermediação financeira, “cujo funcionamento, quando foi desvinculado de adequados fundamentos antropológicos e morais”, “produziu evidentes abusos e injustiças” e se revelou criador de crises sistémicas e de alcance mundial. É um “discernimento oferecido a todos os homens e mulheres de boa vontade”.
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Considerações elementares de fundo (de índole epistemológica)
- Não existem receitas económicas válidas sempre e universalmente, devendo, em cada momento, tomar-se conhecimento da situação histórica em que vivemos.
- Cada realidade e atividade humana, se vivida no horizonte duma ética adequada (no respeito da dignidade humana e orientada para o bem comum), é positiva – o que vale para todas as instituições da sociabilidade humana em que se incluem os mercados, mesmo os financeiros.
- Os mercados, antes de se regularem por dinâmicas anónimas, elaboradas com base em tecnologias sofisticadas, fundam-se em relações que não podem ser instauradas sem o envolvimento da liberdade das pessoas singulares, pelo que a economia, como qualquer outro âmbito humano, tem necessidade não duma ética qualquer, mas duma ética amiga da pessoa.
- Sem uma adequada visão do homem não é possível fundar nem uma ética, nem uma práxis à altura da sua dignidade e dum bem que seja realmente comum.
- A nossa época revelou as limitações da visão individualista do homem, entendido como consumidor, cuja vantagem consistiria na otimização dos seus ganhos pecuniários.
- É fundamental no homem a índole relacional e dialogal caraterizada por uma racionalidade que resiste a qualquer redução reificante das suas exigências de fundo. Não é possível calar que hoje existe a tendência a reificar cada troca de bens reduzindo-os a mera troca de “coisas”. Ora,
na transferência de bens está em jogo algo mais que a simples troca de coisas, pois os bens materiais são comummente veículos de outros bens imateriais (vg: confiança, equidade, cooperação...).
- Cada progresso do sistema económico não pode considerar-se tal se medido só nos parâmetros da qualidade e eficácia em produzir ganhos, mas deve ser medido também na base da qualidade de vida que produz e da extensão social do bem-estar que difunde.
- As instituições universitárias e as business schools devem prever nos curricula de estudos, não em sentido marginal ou acessório, mas essencial, cursos de formação que eduquem para a compreensão da economia e da finança à luz duma visão completa do homem, não reduzida a algumas de suas dimensões, e duma ética que a expresse (a Doutrina social da Igreja oferece uma ajuda).
- O bem-estar deve ser avaliado com critérios mais amplos que o PIB (produto interno bruto) dum País, levando em consideração outros parâmetros, como segurança, saúde, crescimento do capital humano, qualidade da vida social e do trabalho.
- O ganho pode ser sempre buscado, mas não a qualquer custo nem como referência totalizante da ação económica.
- É pertinente o reconhecimento da conveniência humana da gratuitidade que provém da regra formulada por Jesus no evangelho, chamada regra de ouro, que nos convida a fazer aos outros aquilo que gostaríamos que fosse feito a nós (cf Mt 7, 12; Lc 6, 31).
- A atividade económica não se sustenta longamente a não ser num clima de sadia liberdade de iniciativa. Porém, a liberdade de que gozam os agentes económicos, se compreendida de modo absoluto e distante da intrínseca referência à verdade e ao bem, gera centros de supremacias e formas de oligarquias que prejudicam a eficiência do sistema económico e desorientam os que devem exercer o poder político, ficando impotentes face à supranacionalidade daqueles agentes e pela volatilidade dos capitais por eles geridos.
- Todas as dotações e meios utilizados pelos mercados para potencializar a sua capacidade distributiva (allocation) e não voltados contra a dignidade da pessoa nem indiferentes ao bem comum, são moralmente admissíveis. Todavia, os mercados não são capazes de se regularem por si mesmos, pois não sabem produzir os pressupostos do seu desenvolvimento regular (coesão social, honestidade, confiança, segurança, leis...), nem corrigir os efeitos e as externalidades prejudiciais à sociedade humana (desigualdade, assimetrias, degradação ambiental, insegurança social, fraudes...). E é de notar que no mundo económico-financeiro se verificam condições em que alguns destes meios, mesmo não sendo imediatamente inaceitáveis do ponto de vista ético, configuram casos de imoralidade próxima, isto é, ocasiões em que muito facilmente se criam abusos e enganos, em especial, prejuízos à contraparte menos favorecida. Por exemplo, comercializar alguns instrumentos financeiros, por si mesmo é lícito. Contudo, em situação de assimetria, aproveitar-se das lacunas conhecidas ou da fragilidade contratual duma das contrapartes constitui violação da devida exatidão relacional e é grave infração do ponto de vista ético.
- Também o dinheiro é por si mesmo um instrumento bom, como muitas coisas de que o homem dispõe: é um meio à disposição da sua liberdade e do alargamento das suas possibilidades. Mas pode voltar-se facilmente contra o homem. E o financiamento do mundo empreendedor, consentindo às empresas ter acesso ao dinheiro mediante o ingresso no mundo da livre contratação bolsista, sendo positivo, apresenta o risco de acentuar a ideia ruim de financiamento da economia de fazer com que a riqueza virtual, concentrando-se sobretudo em transações caraterizadas pelo mero intento especulativo e em negociações de alta frequência (high frequency trading), atraia a si excessiva quantidade de capitais, subtraindo-os em tal modo dos circuitos virtuosos da economia real.
- Considerando a função social do crédito, cuja disponibilidade incumbe antes de mais a intermediadores financeiros habilitados e afidáveis, é claro que aplicar taxas de juros excessivamente elevadas, não sustentáveis pelos sujeitos que tomaram os créditos, representa uma operação não só eticamente ilegítima, mas também disfuncional à saúde do sistema económico.
Em suma,
O fenómeno inaceitável sob o ponto de vista ético não é o ganhar, mas o aproveitar duma assimetria para própria vantagem, criando notáveis ganhos a dano de outrem.

Pontualizações no contexto contemporâneo em prol da dignidade humana e bem comum
- O mercado, graças ao progresso da globalização e da digitalização, é comparável a um grande organismo, em cujas veias corre, como linfa vital, grandíssima quantidade de capitais. Podemos então falar da “saúde” de tal organismo, quando os meios e instrumentos realizam a boa funcionalidade do sistema, caminhando harmonicamente o crescimento e difusão da riqueza. Na presença da saúde do sistema-mercado, é mais fácil ser respeitada e promovida a dignidade dos homens e o bem comum.
- Compreende-se, como imperativo moral, a exigência de introduzir uma certificação da parte da autoridade pública em relação aos produtos que provêm da inovação financeira, com o objetivo de preservar a saúde do sistema e prevenir efeitos colaterais negativos.
- Tal saúde nutre-se duma multiplicidade e diversidade de recursos que constituem uma certa “biodiversidade” económica e financeira, que representa um valor agregado ao sistema económico a favorecer e salvaguardar através de adequadas políticas económico-financeiras, para assegurar nos mercados a presença duma pluralidade de sujeitos e instrumentos sadios, com riqueza e diversidade de carateres com vista à sustentabilidade da sua ação e à obstaculização do que deteriore a funcionalidade dum sistema de produção e difusão de riqueza.
- Quando o homem reconhece a fundamental solidariedade que o vincula a todos os outros homens, sabe bem que não pode reter só para si os bens de que dispõe, mas que estes são utilizados não apenas para as próprias necessidades como também se multiplicam, levando sempre um fruto além do esperado, para os outros.
- A experiência dos últimos decénios mostrou com evidência, dum lado, a ingenuidade da confiança na presumida autossuficiência da capacidade funcional dos mercados, independente de qualquer ética, e de outro, a imperiosa necessidade duma adequada regulação dos mesmos.
- Tal regulação tornou-se ainda mais necessária pela constatação de que entre os principais motivos da recente crise económica se contam as condutas imorais dos expoentes do mundo financeiro, pelo facto de a dimensão supranacional do sistema económico consentir em contornar facilmente as regras estabelecidas pelos países singulares, bem como pela extrema volatilidade e mobilidade dos capitais investidos no mundo financeiro. Por isso, os mercados precisam de sólidas e robustas orientações macroprudenciais e normativas, o mais possível partilhadas e uniformes, e de regras a atualizar continuamente, que devem favorecer uma completa transparência do que é negociado, com o objetivo de eliminar qualquer forma de injusta desigualdade, buscando garantir o mais possível um equilíbrio nas trocas.
- Um sistema financeiro sadio exige também a máxima informação possível, de modo que cada sujeito possa tutelar em plena e consciente liberdade os seus interesses.
- Ora, há uma série de comportamentos moralmente criticáveis dos consultores financeiros na gestão dos recursos: excessiva movimentação da carteira de títulos para aumentar os ganhos originários das comissões pela intermediação; diminuição da devida imparcialidade na oferta de instrumentos de poupança, em regime de acordos ilícitos com alguns bancos, quando produtos de outros se adaptariam melhor às exigências do cliente; falta de adequada diligência ou negligência dolosa por parte dos consultores, em relação à tutela dos interesses relativos aos ganhos dos próprios clientes; e concessão dum financiamento, por parte dum intermediário bancário, em via subordinada à contextual subscrição doutros produtos financeiros emitidos pelo mesmo, talvez não conveniente ao cliente.
- A empresa constitui importante rede de relações e representa um verdadeiro corpo social intermédio com cultura e prática próprias, que, enquanto determinantes da organização interna da empresa, influenciam o tecido social em que ela age. A este nível, a Igreja ressalta a importância duma responsabilidade social da empresa, que se explicita ad extra ad intra.
- A avaliação do mérito do crédito exige a individuação de beneficiários dignos e capazes de inovar e evitar colusões incorretas. Porém, a banca deve dispor de convenientes reservas operativas e patrimoniais para sustentar cabalmente os riscos e para a eventual socialização de perdas se limitar o mais possível e recair sobretudo sobre os responsáveis efetivos.  
- Os títulos de crédito de alto risco – que operam uma espécie de criação fictícia de valor, sem adequado controlo de qualidade e correta avaliação do crédito – podem enriquecer os que os intermediam, mas criam facilmente insolvência em prejuízo de quem deve recebê-los.
- Denuncia-se a construção de estruturas cada vez mais complexas, associadas a alguns produtos financeiros, como os “derivados”, em que é difícil estabelecer, em modo racional e équo, o valor fundamental delas e que chegam gerar bolhas as ditas bolhas financeiras.
- Aponta-se o dinamismo que regula os mercados financeiros, seja na taxa de juros relativa aos empréstimos interbancários (LIBOR), que serve de guia no mercado monetário, sejam as taxas de câmbio oficiais de diversas moedas praticadas pelos bancos. Porém, a manipulação destas taxas constitui grave violação ética, com consequências de amplo alcance, e mostra a fragilidade e a exposição a fraudes dum sistema financeiro não suficientemente controlado por regras e desprovido de sanções proporcionadas às violações em que incorrem os seus atores.
- Por isso, os que operam no mundo financeiro devem ser dotados de organismos internos que garantam uma função de compliance, ou seja, de autocontrolo da legitimidade dos principais passos do processo decisional e dos maiores produtos oferecidos pela empresa. Todavia, a prática do sistema económico-financeiro com frequência se funda substancialmente na conceção “negativa” da compliance, ou seja, em obséquio meramente formal dos limites estabelecidos pelas leis. Daqui derivou a frequente prática de fugir dos controlos normativos, pela prática de ações voltadas a manipular os princípios normativos com a preocupação de não contradizer explicitamente as suas normas, para não sofrer as sanções.
- Para evitar isto, tem o juízo de compliance de entrar no mérito das operações de modo “positivo”, verificando a sua efetiva correspondência aos princípios que constituem a normativa vigente. Tal função facilitar-se-ia com a instituição de Comissões Éticas a operar junto dos Conselhos de Administração, como um natural interlocutor dos que devem garantir, no concreto operar do banco, a conformidade de comportamentos com as normativas existentes. Assim, no interior da empresa providenciar-se-ia a linhas-guia que consintam em agilizar um semelhante juízo de correspondência, que possa discernir quais, entre as operações tecnicamente realizáveis sob o aspeto jurídico, sejam concretamente também legítimas e praticáveis do ponto de vista ético (a questão que põe-se, por exemplo, de modo muito relevante quanto as práticas de elusão fiscal). Passar-se-ia da obediência formal à substancial.
- Escalpeliza-se a tentativa de fuga ao controlo das entidades estatais e a prática da fraude e evasão fiscais pela subtração de informação em devido tempo, pela falsificação de documentos e pela transferência de altas verbas para os chamados paraísos fiscais, sendo que do desígnio especulativo se nutre o mundo das finanças offshore, que, oferecendo também outros serviços lícitos, constitui, mediante muitos e difusos canais de elusão fiscal, quando não de evasão e de lavagem de dinheiro fruto do crime, um ulterior empobrecimento do normal sistema de produção e distribuição de bens e de serviços. É difícil distinguir se muitas de tais situações configuram casos de imoralidade próxima ou imediata, mas é claro que tais realidades, se tiram injustamente a linfa vital da economia real, dificilmente podem encontrar legitimação, seja do ponto de vista ético, seja do ponto de vista da eficiência global do sistema económico. E surge cada vez mais evidente o grau de correlação não transcurável entre os comportamentos não éticos dos operadores e os resultados falimentares do sistema no seu complexo. É inegável que as carências éticas exacerbam as imperfeições dos mecanismos do mercado.
- Sendo razão para legitimar a presença das sedes offshore livrar os investidores institucionais da dupla taxação, primeiro, no país de residência e, depois, no país de domiliação dos fundos, de facto, aqueles lugares tornaram-se em grande medida ocasião de operações financeiras que frequentemente estão no limite do permitido (border line), quando não o ultrapassam (beyond the pale), quer do ponto de vista normativo, quer do ético, ou seja, duma cultura económica sadia e livre de meras intenções de manipulação fiscal.
- Dissimulando o facto de as operações offshore não ocorrerem nas suas sedes financeiras oficiais, alguns Estados consentiam que se tirasse ganho mesmo com o crime, sentindo-se desresponsabilizados por os ganhos não serem realizados formalmente sob a jurisdição deles – o que representa, do ponto de vista moral, uma evidente forma de hipocrisia.
- O sistema tributário estabelecido pelos Estados não é sempre équo. Assim, é de destacar como tal iniquidade vai, por vezes, em desvantagem dos sujeitos económicos mais frágeis e em vantagem dos mais providos e capazes de influenciar os sistemas normativos que regulam os tributos. Ora, a tributação, se equitativa, desenvolve a fundamental função de justiça e redistribuição da riqueza, não só em prol dos que necessitam de oportunos subsídios, mas também para sustentáculo dos investimentos e do crescimento da economia real. Porém, a manipulação fiscal dos principais atores do mercado, em especial dos grandes intermediários financeiros, representa injusta subtração de recursos da economia real e lesa toda a sociedade civil. E, considerada a opacidade daqueles sistemas, é difícil estabelecer a quantidade de capitais que transitam nos mesmos. Porém, calcula-se que bastaria uma mínima taxa sobre as transações realizadas offshore para resolver muito do problema da fome no mundo. Ademais, as sedes offshore favorecem uma enorme saída de capitais de muitos países de baixa renda, gerando numerosas crises políticas e económicas e impedindo os mesmos de tomar finalmente a direção do crescimento e dum saudável desenvolvimento.
- Diversas instituições internacionais denunciaram isto e alguns governos nacionais tentaram limitar o efeito das sedes offshore. Todavia, até agora não conseguiram impor acordos e normativas eficazes, pois os esquemas normativos propostos por reconhecidas organizações internacionais foram frequentemente inaplicáveis ou tornados ineficazes, graças às notáveis influências que aquelas sedes financeiras conseguem exercitar, considerando o grande capital de que dispõem, em relação a tantos poderes políticos. Ora, isto constitui grave dano à boa funcionalidade da economia real e representa uma estrutura que resulta de tudo inaceitável do lado da ética. Portanto, é urgente estabelecerem-se, a nível internacional, oportunos remédios a tais iníquos sistemas, praticando, a todos os níveis, a transparência financeira (por exemplo, pela obrigação da prestação de contas públicas pelas empresas multinacionais, das respetivas atividades e dos impostos pagos em cada país onde operam através de próprias sociedades subsidiárias) e impondo sanções rígidas aos países que repetem as práticas desonestas referidas acima (evasão e elusão fiscal, lavagem de dinheiro).
- O sistema offshore, sobretudo em países de economias menos desenvolvidas, agrava a dívida pública. De facto, a riqueza privada de algumas elites acumulada nos paraísos fiscais quase iguala a dívida pública dos respetivos países. Isto evidencia como na origem de tal dívida estão frequentemente os passivos económicos gerados pelos privados, depois colocados nos ombros do sistema público. Além disso, importantes sujeitos económicos tendem a prosseguir de forma constante, com a conivência dos políticos, a prática de socialização das perdas.
- Muitas vezes, a dívida pública é gerada por uma negligente – e até dolosa – gestão do sistema administrativo público. De facto, o total de passivos financeiros que pesa sobre os Estados representa um dos maiores obstáculos ao funcionamento e crescimento das várias economias nacionais, que arcam com pesado serviço da dívida (vg: juros), ficando impedidas de fazer os necessários ajustamentos estruturais.
- Assim, por um lado, os Estados individualmente são chamados a pôr remédio com adequadas gestões do sistema público e sábias reformas estruturais, prudentes subdivisões das despesas e atentos investimentos; por outro lado, a nível internacional, mesmo pondo cada país frente às suas responsabilidades, são de promover e favorecer racionais vias de saída das espirais da dívida, não pondo nos ombros dos Estados – portanto, nos dos cidadãos, isto é, de milhões de famílias – as obrigações que resultam insustentáveis. Com estas medidas se devem aliar políticas de racional e acordada redução da dívida pública, sobretudo quando esta está em poder de sujeitos cuja consistência económica lhes permita oferecê-la. Tais soluções são pedidas para a saúde do sistema económico internacional para evitar a contaminação de crises potencialmente sistemáticas e para a busca do bem comum dos povos conjuntamente.
- Isto não é obra só de entidades superiores; recai na esfera das nossas responsabilidades e possibilidades, pois dispomos de instrumentos para contribuir para a solução dos problemas. Por exemplo, como os mercados vivem da procura e a oferta, podemos influenciar de modo decisivo dando forma à procura pelo exercício crítico e responsável do consumo e da poupança e pelo empenho quotidiano com que nos provemos do necessário através da escolha entre os produtos oferecidos pelo mercado. Optando por bens portadores dum percurso digno do ponto de vista ético, expressamos, através do gesto de consumo, aparentemente banal, uma ética e somos chamados a tomar uma posição diante do que traz vantagem ou dano ao homem concreto.
- Idênticas considerações se fazem quanto à gestão das poupanças e capitais, por exemplo, endereçando-os às empresas que operam com claros critérios, inspiradas na ética respeitadora de todo o homem e de todos os homens e num horizonte de responsabilidade social. Cada um é chamado a cultivar práticas de produção da riqueza em consonância com a sua índole relacional e propícia a um desenvolvimento integral da pessoa.

Em suma
Ante a imponência e difusão dos contemporâneos sistemas económico-financeiros, podemos ser tentados a ceder ao cinismo e pensar que pouco podemos fazer com as nossas pobres forças.
Ora, cada um pode fazer muito, sobretudo se não permanece só. Muitas associações da sociedade civil representam uma reserva de consciência e de responsabilidade social de que não se pode prescindir. Somos chamados a vigiar como sentinelas da vida de qualidade e intérpretes do novo protagonismo social, orientando a ação pela busca do bem comum e fundando-a sobre os sólidos princípios da solidariedade e da subsidiariedade. Cada gesto de liberdade, mesmo frágil e insignificante, se verdadeiramente orientado para o bem, apoia-se Naquele que é o Senhor bom da história, e torna-se parte duma positividade que supera as nossas forças, unindo indissoluvelmente todos os atos de boa vontade numa rede que liga céu e terra, verdadeiro instrumento de humanização do homem e do mundo.
A Igreja, Mãe e Mestra, consciente de ter recebido como dom um depósito imerecido, oferece aos homens e às mulheres de cada tempo os recursos para uma esperança confiável. E Maria, Mãe de Deus feito homem por nós, tomará em suas mãos os nossos corações e os guiará na sábia construção daquele bem que seu filho Jesus, mediante a sua humanidade tornada nova pelo Espírito Santo, veio inaugurar para a salvação do mundo.
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Um apelo romano a que vejamos, ouçamos e leiamos, mas também a que façamos qualquer coisa, como a interior e pública tomada de posição crítica, a orientação ética na escolha dos bens de consumo que adquirirmos e a entrega das poupanças a agentes que se pautem pela ética respeitadora da liberdade e da dignidade e promotora do bem comum! Um apelo romano aos políticos para que decidam eticamente e aos agentes económicos e financeiros para que procedam em conformidade, sem se refugiarem em esquemas escusos e a prescindirem da tentação de dominar os poder político!  
2018.05.24 – Louro de Carvalho

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