terça-feira, 1 de maio de 2018

A questão do cravo e da “Grândola Vila Morena”


O semanário “O Diabo” de hoje, dia 1 de maio, apresenta um instantâneo, na sua última página, sob o título “Cravo ou não cravo”, atestando que o cravo na lapela é a moda da esquerda no aniversário do 25 de Abril. Além disso, o dito instantâneo distingue supostamente “um Presidente que se lembra de que é representante de todos os portugueses” e “um primeiro-ministro (nesta fase, de gravata azul a compensar) e o presidente da AR (sempre vermelhusco a condizer)” a sentir que “apenas representam a ‘sua’ metade da população”.
Para já, é de sublinhar a desigualdade de tratamento ortográfico por parte de “O Diabo”. Por que raio é que o editor grafa Presidente com maiúscula na referência ao Presidente da República e o título de António Costa e o de Ferro Rodrigues com minúscula, quando o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro são, respetivamente, a segunda figura e a terceira do Estado? Quem faz uma crítica deve ter autoridade moral para o fazer, a qual postula, antes de mais, o respeito pelas pessoas e pelas instituições.
Quanto ao cravo, claramente há duas hipóteses: ou se assume como símbolo da efeméride ou não. E, se se assume, coloca-se na lapela ou lugar similar, não se leva na mão ou se tem ao pé do dono, como entendia o antigo comentador político Marcelo que o então Presidente Cavaco Silva deveria fazer.
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Quanto aos críticos do cravo, devo salientar que o cravo vermelho é símbolo político, não da esquerda portuguesa nem da direita nem do centro, mas da revolução abrilina, que implantou no país uma democracia consentânea com a modernidade como a entende o mundo ocidental. Com efeito, quando os cravos vermelhos começaram a enfeitar as metralhadoras ninguém sabia qual era a ideologia do movimento dos capitães. E, se muitos se revelaram colados à esquerda, seria surreal apelidar de esquerdistas militares de abril como Salgueiro Maia, Sanches Osório, Firmino Miguel, Costa Brás, Sousa e Castro Pires Veloso e tantos outros.  
Além disso, não é por um cravo ter sido usado por um comunista ou por um socialista que ele fica refém ou propriedade do comunismo ou do socialismo. A questão é se os cidadãos portugueses aceitam ou não o 25 de Abril com os poderes que o povo vai legitimando e escrutinando. Se não o aceitam, digam-no com frontalidade e não se escudem nas meias tintas.
Obviamente, em contexto de liberdade, cada um é senhor de dizer o que pensa, aquilo por que opta, tal como tem o direito de falar como o de se remeter ao silêncio.
E, muito embora saiba que os alfaiates portugueses não tiveram mãos a medir no trabalho de virar casacas nos dias subsequentes a 25 de abril de 1974 – muitas declarações foram publicadas nos jornais, até 12 de março de 1975, de que A, B ou C não tinham sido membros da UN/ANP, da PIDE/DGS, da LP ou da MP – a maior parte dos portugueses saudou a Revolução e, na altura própria foi ao sufrágio para a Assembleia Constituinte. Sendo assim, o cravo, a crescer como grito vermelho do inconformismo, tal como a gaivota é o arrojo voador da liberdade, é património cultural e político da totalidade moral dos cidadãos de Portugal, não sendo lícito, do meu ponto de vista, deixa que ele murche por malquerer, incúria ou por inabilidade.
É claro que o cravo vermelho não é exclusivo do teatro político. A este propósito, apraz-me recordar um episódio ocorrido no decurso do ano de 1980. Fui a Freixinho, de Sernancelhe, celebrar missa uma tarde de um dia de semana. Um homem de boa vontade acompanhou-me, visto que eu não tinha carta de condução automóvel. Ao chegar, um grupito de crianças abeirou-se de mim e ofereceu-me um ramito de cavos vermelhos, o que agradeci. O referido senhor disse-lhes que me deviam ter oferecido rosas brancas a lembrar Nossa Senhora (com a sua pureza e inocência). Como achei descabida a advertência, acudi a dizer que os cravos vermelhos remetiam para o Sagrado Coração de Jesus, o símbolo do Amor de Deus, o sangue do martírio e o fogo do Espírito Santo. E, sim, a Liturgia seleciona paramentos de cor vermelha para celebrações do Espírito Santo, da Paixão de Cristo e dos Mártires.
Há mais de 2000 anos, o craveiro já era utilizado pelos gregos em coroas de cerimónias. Ao longo da história, esta flor tem assumido vários significados – por exemplo, a fidelidade matrimonial, no Renascimento, e o amor pelos pais, nas Coreias. E os cravos representam, na maioria das culturas mundiais, a boa sorte, o dom de atrair bênçãos e vitórias; e são usados como símbolo em bandeiras e festivais de muitos países, principalmente europeus. Os cravos vermelhos, segundo Anna Jarvis, são símbolo da homenagem às mães em vida; e os cravos brancos, o símbolo da saudade das mães que já partiram. Também os cravos são muito usados na capela dos noivos durante os casamentos, ocasiões de augúrio de vida feliz.
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No que diz respeito à “Grândola Vila Morena”, recordo que foi transmitida como senha da Revolução pela Rádio Renascença, Emissora Católica Portuguesa. Confesso que nunca percebi a razão por que a conotaram com os comunistas. Se foi por ter sido seu autor Zeca Afonso, recordo que obra artística, literária ou musical, uma vez produzida, não fica refém do autor.
Nem ao diabo lembraria concluir que, se tivesse sido a letra da canção da autoria de um bispo, de um padre ou de uma freira, ela teria de ser classificada como um poema religioso e católico. Nem a Igreja Católica ou a Rádio Renascença a assumiu exclusivamente como sua.
É certo que, num sábado do mês de junho de 1974, se realizou, em Lamego, no Salão de Festas do Centro Apostólico, um agradável espetáculo de variedades, aberto com um concerto da Banda Filarmónica do Seminário Maior, de cujo repertório constou, entre outras composições, precisamente a “Grândola Vila Morena”, orquestrada para piano pelo saudoso Dr. Rui Morais Botelho e com transcrição minha para Banda por mim, então instrumentista de saxofone alto. Estranha, mas claramente, durante a sua execução se ouviu uma voz da plateia: “Comunistas”! Porém, a malta nova de Lamego e arredores nunca deixou de cantar“ Grândola Vila Morena”.
Aliás, recordo que a terra da fraternidade é uma criação do cristianismo e foi assumida pela Revolução Francesa em 1789, a par da liberdade e da igualdade. Por outro lado, o poder ao povo é um pressuposto fundamental da democracia e da “república” enquanto causa comum (independentemente da forma de governo do Estado, mas sobretudo o q adota os sistema de poder estribado no mecanismo de pesos e contrapesos) ou plataforma de fomento da igualdade de base reconhecida a todos e de promoção da justiça social como imperativo primordial do bem comum.
Assim, a plataforma da igualdade, proclamada por Grândola, a par da fraternidade, tem obviamente de comportar a vizinhança efetiva e afetiva cultivada com a amizade.
Não é justo que os cristãos – e o cristianismo constitui a primacial matriz cultural da génese do país – possam renegar ou subestimar os valores da soberania do povo (que se crê obra e espelho de Deus), que não do indivíduo, os direitos de cada homem ou mulher, a liberdade a que, segundo a Carta de Paulo aos Gálatas, fomos chamados, a igualdade que nos advém de sermos vizinhos, amigos e irmãos, a vez e a voz que são apanágio da cidadania e a justiça que dá a cada um aquilo de que precisa para viver condignamente, a partir do trabalho, teto, repouso, educação, segurança e saúde – o que tem de gerar em cada dia a solidariedade e a disponibilidade para o bom samaritanismo.
Por tudo isto, um cristão deve sentir-se com o direito e com o dever de livremente proclamar: “25 de Abril sempre”!   
2018.05.01 – Louro de Carvalho        

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