A grande questão antropológica
“Que é o
homem”? É a interrogação que o salmista, interpretando o íntimo da alma humana,
dirige a Deus na humilde convicção da sua complexidade (vd Sl. 8, 4-5). E,
abismado na contemplação do Universo, o mesmo salmista responde: “Fizeste-o
pouco menos que um anjo, coroaste-o de glória e esplendor, deste-lhe poder
sobre a obra das tuas mãos” (vd Id. 6-7).
Acerca do
homem há inúmeras opiniões de quem pensa e sente, todas extremamente
importantes pelas suas consideráveis consequências, teóricas e práticas,
sintetizadas em duas. Por umas, como observa o Concílio Vaticano II, o homem
eleva-se até se considerar norma absoluta de vida; por outras, abaixa-se até à
angústia e ao desespero.
Para um conceito de homem,
de pessoa, de pessoa humana
Etimologicamente
“homem” provém do termo latino homo,
hominis (o nascido da terra, o terrestre, o habitante da Terra: em oposição
a bestia ou fera), relacionado com humus,
i (us) – terra fértil, contraposto a siccum
(terra árida, que não tem a potencialidade da humidade dada pelo “sopro” do
espírito). Atente-se nos vocábulos inumar
(enterrar) e exumar (desenterrar).
Da mesma família são humidus, a, um (molhado, parecido com
húmus) humiditas, atis (humidade, com
água, símbolo da vida e biblicamente do “espírito”), humor, oris (humor, elemento líquido), humanitas, atis (natureza humana, caraterística do homem), humanus, a, um (próprio do homem), humilis, e (humilde, com os pés na
terra) e humilitas, atis
(caraterística de quem está perto da terra, pouca elevação) e humiliare (humilhar, baixar à terra).
São termos que remetem para a narrativa bíblica javista da criação do homem:
fez um boneco (no hebraico, ish, ser
já existente) de barro (no hebraico, adam,
vermelho, cor do barro), soprou-lhe nas narinas e ele surgiu com vida (cf Gn
2,7). E este ish animado (a criatura:
homo, humus) contrapõe-se a Deus (o
criador) e a ishah, o ser animado
tirado do ish; este ser vivo (ish e ishah), diferente da bestia
ou da fera, opõe-se a ser não vivo, ser
morto.
Percurso
análogo do lado do grego poderá fazê-lo quem tiver conhecimento bastante da língua.
No entanto, atente-se na palavra άνθρωπος (ánthropos, “homem”) – segundo alguns, composto de ανθος (anthos, “flor”) + ‘ρωψ (róps, moita). Cá
topamos o caráter telúrico do ser humano, como a fina flor (o mais visível) da
flora e fauna criadas. E, se lhe associarmos o vocábulo tρoφη (trofê,
engrossamento, criação, nutrição), tanto melhor para aferir da robustez deste
ser criado como cume ou coroa visível da criação.
Segundo outros, ανθρωπος (ánthropos)
significa ser humano, isto é, com cara de homem, e provém de ανερ (aner: homem, marido, noivo, adulto, qualquer homem, grupo de homens
e/ou mulheres) + οψις (opsis:
semblante, rosto, cara).
Entretanto,
os homens fixaram-se no que era visível, o vulto. E os atores gregos e, depois,
os romanos, para se fazerem notar e ouvir, usavam a máscara e os coturnos.
Assim, o nome feminino do português “pessoa” provém etimologicamente da palavra
latina “persona” (per + sonare, soar através de), que, tal como o termo grego “prósopon”,
significava máscara.
No uso corrente, passou a significar, por
sinédoque, o que estava por dentro da máscara: indivíduo, considerado em si mesmo,
homem ou mulher, ser humano. Quando se indica a entidade que em drama e
narrativa faz de pessoa, diz-se “personagem” (persona + agem); quando se quer
afirmar que o indivíduo se comporta como tal, como verdadeiro ser humano,
diz-se que tem personalidade; e temos a “personificação” e a “prosopopeia” como
recurso estilístico.
Apesar de “pessoa” derivar de “persona”,
esta palavra latina não comportava, em seu uso primitivo, tal sentido que atribuímos
atualmente à noção de pessoa. Uns afirmam que a palavra “persona” foi originariamente
estabelecida em latim, por uma derivação gramatical afixal do prefixo per, proveniente da preposição per e do nome caído em desuso sona ou zona, cintura, círculo, capa, cobertura, armadura (per+sona) – e,
depois, som, fala. Outros defendem que derivara do verbo “personare”, da sua
forma verbal de gerúndio “personando”. Outros, ainda, a fazem resultar da
expressão per se una, enquanto
designa res una per se. Tanto num
caso como no outro, a palavra “persona” serviu para significar o mesmo que a
palavra grega prósopon: máscara e
personagem.
Mas,
persona veio a significar máscara e personagem, não por
traduzir gramatical e semanticamente para o latim a aceção original da palavra
grega “prósopon” (máscara), mas por significar e nomear o ato ou efeito de o
ator, mediante uma abertura na máscara em torno da boca, representar, pelo som
[per+sona] de sua voz e pela postura ante o espectador, uma personagem.
Remonta o uso e significado da palavra ao poeta grego
Homero [850 a.C], em sua célebre epopeia, a Odisseia
(18, 192). Há quem aponte uma certa relação entre a palavra etrusca “persu”,
que significava máscara, já encontrada escrita num monumento da antiguidade
clássica, com a palavra grega “prósopon”.
Segundo outros,
προσωπον (prosopon) significa face, fronte da cabeça humana,
semblante; e provém de προς (pros: em benefício de, em, perto, por,
para, em direção a, com, com respeito a) + οψις (opsis: visão, vista,
face, semblante, aparência, expressão, aspeto, rosto com a visão que exprime
pensamentos e sentimentos, circunstâncias externas).
***
O conceito de
homem mais rico e mais adequado é o de pessoa, um conceito do domínio do
pensamento católico e, em especial da doutrina social da Igreja. Na aceção
transcendente e grandíloqua em que hoje o tomamos, é conceito que a antiguidade
clássica ignorava, não obstante a precisão de certas fórmulas usuais no direito
romano. A pessoa era então somente considerada no plano da cidadania (“civis” e
“civitas”, em Roma; “politês” e “pólis”, na Grécia) e, se Sófocles e alguns
outros, já adotavam valores perpétuos e mesmo eternos que podiam jogar contra o
poder político, as suas não passavam de vozes isoladas. Como geralmente se
reconhece, a noção atual de pessoa nasce e consolida-se no mundo cristão,
difundindo-se pouco a pouco na cultura moderna e contemporânea, precisamente
por influência do cristianismo antigo e medieval.
Efetivamente,
o aprofundamento metafísico deste conceito deve-se seguramente aos filósofos e
teólogos cristãos da Idade Média, na sequência do intenso, penoso e lento labor
intelectual provocado pelas controvérsias trinitárias e cristológicas nos
primeiros séculos da era cristã. A célebre definição de Boécio (século VI) de
“substância individual de natureza racional” (naturae rationalis individua substancia), longamente refletida e
examinada nos séculos seguintes até se chegar à de Tomás de Aquino, não menos
profunda de “o que subsiste em natureza racional” (subsistens in rationali natura) satisfaz a noção de pessoa.
Ao dizer-se “subsistente”,
considera-se que a pessoa existe em si e por si, ou, de outro modo, que existe
sob a forma mais densa e elevada da existência sem dependência necessária de
outrem; e ao enunciar “em natureza racional”, diz-se que existe sobre a forma
de consciência e liberdade interiores, com a capacidade de se refletir a si
mesma e de estar aberta ao mundo dos outros seres e dos valores axiológicos.
Por isso, São Tomás acrescenta que “a pessoa significa o que há de mais perfeito
em toda a natureza” e que a sua “dignidade lhe advém do facto de subsistir numa
natureza racional”.
Em
conformidade com o exposto, deduz-se que a dignidade da pessoa resulta do “ser”
(esse), ou seja, da eminente
perfeição em que Deus a constituiu, e não só do existir (exsistere), muito menos apenas do ter (hebere, tenere) ou do
operar (operari). Um homem, embora
socialmente pequeno, frágil ou mesmo inútil, é sempre imensamente digno por si.
Nunca ninguém está a mais ou é supérfluo; nunca nenhuma pessoa pode ser tratada
como coisa que se usa e, depois de servir, se deita fora. A pessoa é única,
original e irrepetível. Como diz o Papa Francisco na Lumen Fidei, a atenção e o cuidado, o exemplo e a
experiência são exigências para os cristãos. “Para Deus não somos números;
somos importantes, antes somos o que Ele tem de mais importante; apesar de
pecadores, somos aquilo que Lhe está mais a peito”.
A dignidade
pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual transcende em
valor todo o mundo material. A pergunta reflexiva do Mestre: “Que aproveita ao
homem ganhar o mundo inteiro, se vem a perder a sua alma?” (Mc. 8, 36) postula a
afirmação antropológica axiológica tão luminosa como estimulante: o homem vale por
aquilo que “é” e não por aquilo que “tem”, ainda que possua o mundo inteiro e
seus reinos. Não são os bens do mundo (de que os homens precisam para viver e
de que lhes é lícito lançar mão, mas sem abuso nem à custa de tudo e de todos) que
contam, mas o bem da pessoa, “o bem que é a própria pessoa”.
Os mundos do homem
A que mundo
ou mundos pertence o homem? O salmista assume que o homem é obra de Deus (fizeste-o): é criatura (mundo criado) – menor que um anjo (mundo espiritual); com poder sobre a
visível obra (de glória e esplendor)
do Criador (mundo material). Situado
como ponte (ou pontífice) entre os dois mundos – espiritual e material – o homem
é, simultaneamente, espiritual e corporal. Mas o reconhecimento desta dupla
realidade não pode lançar-nos na errática antinomia entre a alma e o corpo,
cada qual agindo por seu lado, dicotomicamente. O homem não é alma a que se
adiciona o corpo; é a unidade de corpo e alma (corpore et anima unus), na precisa expressão da Gaudium et Spes (GS), Constituição
Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual (n.º 14).
Tal é, desde
o início, a posição cristã, assinalada, entre outros, por Justino, cerca do ano
100, segundo o qual a alma, por si só, não é o homem; é apenas a alma do homem
(sem o corpo, não temos homem, pessoa, mas antepassado). E o corpo, por si só,
não é o homem; é apenas o corpo do homem (sem alma, não temos homem, mas
cadáver). Logo, nenhum destes elementos, por si só, é o homem, mas chama-se “homem”
ou “pessoa” ao conjunto de ambos. E, se Deus chamou o homem à vida e
ressurreição, não chamou uma parte dele, mas o todo, isto é, a alma e o corpo»
(vd A Ressurreição, 8). Por isso, alma
e corpo permanecem tão indissociavelmente conexos que não existe no homem nada de
exclusivamente espiritual ou de exclusivamente corporal, mas uma
“interexistência pneumossomática” e uma interação psicossomática. Como o entendiam
os hagiógrafos bíblicos, o corpo é a expressão substancial da alma, é a alma
vista de fora, o “eu” na sua forma sensível, empírica, manifestada – dir-se-ia
hoje, a sua narração “fenoménica”.
Tudo o que
vimos afirmando remete-nos para a extrema complexidade e completude do ser
humano e o seu vulto quase paradoxal. O homem é criatura, como se afirmou, mas
encontra-se na fronteira entre as criaturas espirituais (as coisas invisíveis) e as criaturas corporais (as coisas invisíveis) – vd símbolo (credo) niceno-constantinopolitano. Não sendo anjo
nem simples animal, tem algo de um e de outro, constituindo-se em microcosmos. Através do corpo, atravessa
o tempo e o espaço, sujeito à natureza material, comum aos reinos animal,
vegetal e mineral. Pelo espírito, ultrapassa e transcende o tempo e o espaço,
tem a capacidade de emergir da natureza material, de se elevar acima dela, de
se lhe impor e até de se lhe opor, contrariando ou negando as suas provocações
e os seus determinismos, expressos nas leis físicas, fisiológicas e biológicas.
“Tal é o conhecimento profundo que ele alcança quando reentra no seu interior,
onde Deus, que perscruta os corações, o espera e onde ele, sob o olhar do
Senhor, decide da sua própria sorte” (GS 14).
Conforme se
olhe o homem do lado do corpo ou do lado do espírito, sem jamais se contradizer
a sua unidade essencial, se percebe a distinção que J. Maritain, na esteira da
filosofia escolástica, estabelece entre pessoa
e indivíduo. “Enquanto indivíduo –
escreve o filósofo – cada um de nós é fragmento de uma espécie, uma parte deste
universo, um ponto singular do imenso encadeamento de forças e de influências,
cósmicas, étnicas, históricas, cujas leis impendem sobre si; está submetido ao
determinismo do mundo físico. Mas cada um de nós é também pessoa, e, como
pessoa, não se encontra sob o domínio dos astros, subsiste inteiramente da
própria subsistência da alma espiritual, e esta é nele um princípio de unidade
criadora, de independência e de liberdade» (in Para una Filosofia de La Persona Humana, 1939,
p. 149).
A partir deste
princípio de unidade criadora, de independência e de liberdade – capaz da
relação com o criador e com as demais criaturas, em especial com os seus
semelhantes, ou seja, o ser em relação – o homem é, com a mais singular
peculiaridade, imagem e semelhança de Deus (cf Gn 1,26-27). Mas não é somente
imagem do Deus-Espírito, mas do próprio Filho de Deus. Segundo São Francisco de
Assis, formando o corpo do homem – e o texto não se limita a Adão do Génesis,
mas vale para cada pessoa – Deus tinha diante dos olhos a forma humana de seu
Unigénito. Daqui a incomparável dignidade do corpo, dom de Deus dado a nós (Rnb
23,8). Somos filhos no Filho e pelo Filho (cf Ef 1,5)
As criaturas
não racionais são pegadas ou vestígios de Deus, porque têm n’Ele a sua génese
(cf Gn 1,1-25). Porém, o homem é mais: é sinete de Deus, seu reflexo especular,
pois, sendo espírito, Deus o exornou com uma alma espiritual. Pelo espírito, o
homem apreende-se no seu “eu” e apreende o Universo, que transcende; conhece-se
como centro de atribuição e princípio unificador das suas múltiplas
experiências e, simultaneamente, como identidade que lhe permite afirmar-se como
distinto de um outro e com ele relacionado, mas nunca se reduzindo ao ser de um
outro; determina-se por si e torna-se protagonista dos seus sucessos e dos seus
fracassos; move-se em função, não de meras necessidades instintivas ou pontuais,
mas de valores axiológicos, e, sendo um em
si, quebra as raias da sua solidão para se doar a outrem; enfim, pelo
espírito, consciencializa-se de que não existe por força do acaso, de que
pertence a uma ordem pré-existente e irremovível, de que é dádiva do amor de
Deus e de que, enfim, a vida só ganha sentido no diálogo de comunhão com Deus,
diálogo a que o homem é chamado desde o começo da sua existência. É assim que o
ensina o Concílio Vaticano II:
A razão mais sublime da dignidade
humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus. Desde o começo da sua
existência, o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só
porque, criado por Deus por amor, é por Ele, e por amor, constantemente
conservado: nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer
livremente esse amor e não se entregar ao seu Criador (GS 19).
E a dimensão social e
relacional do homem é acentuada pelo mesmo concílio:
Deus, porém, não criou o homem sozinho:
desde o princípio criou-os ‘varão e mulher’ (Gn 1,27); e a sua união constitui
a primeira forma de comunhão entre pessoas. Pois o homem, por sua própria
natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver as suas
qualidades sem entrar em relação com os outros. (vd GS 12).
Tal dimensão é assumida claramente
por Bento XVI: “nós não vivemos uns ao lado dos
outros por acaso; estamos percorrendo, todos, um mesmo caminho como homens e,
por isso, como irmãos e irmãs” (vd Mensagem para Dia Mundial da Paz de 2008, 6).
Porque se diz “pessoa
humana” e não somente “pessoa”
Estaremos simplesmente
ante um pleonasmo como tantos outros? Alguns puristas da linguagem condenam a
expressão aparentemente pleonástica contrapondo que pessoas são pessoas, não se
dando o caso de haver pessoas asininas caninas ou suínas e assim por diante.
No entanto, atente-se em que o conceito de pessoa que nesta reflexão se
desenvolveu é do âmbito filosófico-teológico. Todavia, há que reconhecer que existem as pessoas jurídicas,
enquanto sujeitos de direitos e deveres, independentemente da sua
índole. Temos as pessoas coletivas territoriais, como o Estado, as regiões
autónomas, as autarquias locais, as áreas metropolitanas, as comunidades
intermunicipais, os institutos públicos ou privados, as fundações, os
estabelecimentos de educação, de saúde e outros (considerados singularmente
quer em agrupamento); os entes morais, como cabidos, fábricas de Igreja
paroquial, as mitras, seminários, conventos; as sociedades comerciais, como
sociedades anónimas, sociedades por quotas, sociedades em comandita, as
sociedades unipessoais; as cooperativas; e as associações.
Por
outro lado, temos as pessoas físicas, quando consideradas na sua “fisicidade”,
como a catedral, a basílica, o homem, etc. E temos as pessoas divinas: o Pai, o
filho e o Espírito Santo, a pessoa de Cristo (Deus e Homem). Tínhamos os deuses
e deusas e os heróis das mitologias.
Na
obra de nossos escritores há dezenas de exemplos em que o adjetivo “humano” contrapõe o simples
homem a outros tipos de pessoas. No século XVI, por exemplo, na obra de Camões,
surgem as pessoas humanas
como pessoas deificadas, enquanto os deuses aparecem humanizados. Camilo
Castelo Branco, em pleno século XIX, respeita a adoração de um jovem enamorado,
para o qual a noiva é uma pessoa
divina, prometendo que não vai pô-la em confronto com os lapsos das pessoas
humanas. No século XX, Saramago, em A
Caverna, afirma “que nem tudo se encontra resolvido na relação entre as pessoas humanas e
as pessoas
caninas”.
Deve
ter sido algum motivo subtil, e não um afrouxamento estilístico, que terá
levado alguns escritores, sobretudo brasileiros, a empregarem também a expressão pessoa humana no sentido genérico. Por exemplo,
Machado de Assis escreve: “os romancistas … se presumem grandes analistas da pessoa humana”; “cheio de mistérios científicos, que ele
não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana”. Em Lima Barreto, lemos: “estávamos diante
da mais terrível associação de males que uma pessoa humana pode reunir”; “há um cristal de pureza
inalterável como núcleo eterno da pessoa humana”. Rui Barbosa
refere: “Aí não há senão a altitude da pessoa humana, do mérito
individual na solitária sublimidade do seu poder”. Drummond de Andrade
esclarece: “na pessoa humana vamos
redescobrir aquele lugar”. Para Nelson Rodrigues “Stalin e Hitler se juntaram
contra a pessoa humana”. É óbvio que
estes dois famigerados líderes não deixaram de ser pessoas, mas havia que os
distinguir daquelas que merecem o designativo de humanas em contraponto à prática
desumana e aviltante de tantos.
Por
isso, para que não restem dúvidas, os documentos orientadores das relações
humanas e estruturantes das boas práticas, porque estribados na sólida doutrina
filosófica, teológica, jurídica e antropológica, adotam o designativo de pessoa humana. Assim, no preâmbulo da Declaração dos Direitos do
Homem, onde se lê, em português, “na dignidade e no valor da pessoa humana“, lê-se human person no Inglês, personne humaine no Francês, persona humana no Espanhol e persona umana no Italiano (que infelizmente
desfigurou sua herança latina ao eliminar o H inicial…). Porque será que ela
aparece também no texto das constituições, no título de milhares de livros
filosóficos, jurídicos ou religiosos, nas mensagens do Vaticano, nos documentos
da UNESCO e da ONU?
O fator
determinante para o acréscimo do adjetivo com valor restritivo é por certo a
elasticidade cada vez maior do conceito de pessoa.
Os estudos sobre a inteligência e a psicologia de alguns animais como os
golfinhos, levaram alguns cientistas e taxinomistas a classificá-los como pessoas não humanas, enquanto grupos coevos de filosofia e
de ética tendem a classificar os recém-nascidos, os doentes mentais e os
anciãos desvalidos de humanos que não pessoas (e como
tais sofrem a eutanásia da negligência ou são corridos dos benefícios da saúde,
se mais caros, ou da proteção social) — o que rejeito em absoluto, mas deixam
a claro que uma coisa não pressupõe necessariamente a outra.
***
Mas
nós falávamos do homem, a pessoa (que também é indivíduo – físico e imaterial).
E este é portador de uma vida a que tem direito sagrado, visto que,
logo a partir da sua génese, manifesta a intervenção da ação criadora de Deus,
exercida, a cada momento em relação a cada nascituro, pela inculcação imediata
da alma, como recorda Jerónimo “quotidie Deus fabricat animas” (Contra Ioan.
Hieros., 22); peregrino na carne que o próprio Verbo feito Carne dignificou;
ontologicamente predestinado à glorificação de Deus; ferido pelo pecado, mas
resgatado pelo sangue de Jesus Cristo, de tal modo que, segundo a prece da
Liturgia Pascal, se reza “que todos os homens elevados pela fé à dignidade de
povo escolhido, se tornem em Cristo nova criação pela graça do vosso Espírito”;
solidário com toda a Criação, da qual é como que um resumo (microcosmos), mas
encarregado de prosseguir nela, transformando-a, a obra do Criador; filho de
Deus e herdeiro com Cristo das riquezas do Pai, de cuja vida se pode e deve
tornar participante – o homem, qualquer homem – é de uma grandeza perfeitamente
sem paralelo. Efetivamente, se Deus o criou em estado admirável, depois do
pecado o recriou em estado ainda mais admirável. (cf Rm 8,18-22; 1Cor 15,45-48;
2Cor 5,17; Tg 1,18; Ap 21,1-5). É o que, segundo o prólogo do 4.º Evangelho, o
Verbo veio fazer, quando veio para o que era seu, o mesmo Verbo por quem tudo
começou a existir (cf Jo 1,1-18)
Daqui, entre
o mais, que os diversos caminhos do mundo, como querem João Paulo II, Bento XVI
e Francisco, sejam os caminhos da Igreja, e hajam sempre de ser os do homem. Ou
que o homem, sobretudo o das periferias existenciais, seja o caminho da Igreja.
E isto é tão
fundamental que todos devemos saudar, com sincero regozijo, o facto de “os
homens de hoje se tornarem cada dia mais conscientes da sua dignidade de pessoa
humana”. E a palavra de Francisco ao fórum de Davos é clara:
O homem, criado à imagem e semelhança
de Deus, deve ser o centro das atenções do mundo político e do mundo económico,
que devem estar a serviço desse homem, trabalhando para a sua promoção e
propiciando o bem comum.
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