O Dia
27 de fevereiro de 2014 – dizem alguns – ficará para a História como o “dia dos
quatro papas”. E porque não? Ou porque não o “dia de mais de quatro Papas”?
Os factos
ficaram à vista. Efetivamente dois dos sumos pontífices que marcaram historicamente,
pela postura e pela doutrina (não
sua, porque de Jesus, que dizia que não era dele, mas do Pai), a
segunda metade do século XX e um deles, também a entrada da Igreja no terceiro
milénio (até com a publicação da carta apostólica Novo Millennio Ineunte) – ingressaram no cânone oficial dos santos. A autoridade
apostólica com que tal facto se efetuou reside em Francisco, o papa do presente
da Igreja Católica, que recebeu como que em herança o processo de condução daqueles,
antes denominados, Beatos João XXIII e João Paulo II das mãos do papa emérito, Bento
XVI, que integrou a celebração com a plenitude do poder de ordem, que não deixa
de deter relativamente à Eucaristia (e atualmente autodespojado do poder
de condução da Igreja, poder odegético). Pode dizer-se que até do ponto de vista humano o centro
eclesiástico funcionou bem, dando ao mundo um exemplo de concórdia nas diferenças,
que as há. A própria multidão apreciou, com os visíveis aplausos, a chegada do
emérito e a saudação que ambas as altas figuras da rocha petrina trocaram entre
si.
Teoricamente, em vez de quatro, poderiam
ter sido presentificados mais de quatro. Alguns humoristas sérios pensaram a atribuir
ao bom papa João, o da docilidade ao Espírito Santo, a autointerrogação “Porque só nós os dois?”. Sim, dirão alguns,
porque não também Pio XII, o homem da Igreja-corpo místico de Cristo, a
testemunha dramática dos sofrimentos da humanidade, o papa das radiomensagens e
da Assunção de Maria? Sim, digo eu, porque não Paulo VI, o homem da paciência na
continuidade dos trabalhos conciliares e pós-conciliares, da promulgação dos seus
documentos finais, da promulgação dos documentos executivos das opções
conciliares (alguns à luz de novas situações), o concretizador da abertura intuída
e preconizada por João XXIII. Vêm a talho de foice: a colegialidade, com a
instituição do sínodo dos bispos, a transferência de competências para as
conferências episcopais e para os bispos diocesanos; a deposição da tiara e da sedes gestatoria; o diálogo, com a encíclica
Ecclesiam Suam e gestos subsequentes;
o ecumenismo (quem não se lembra do abraço trocado entre ele e o patriarca de Constantinopla?)
e o diálogo inter-religioso, com a ida à Terra Santa e à Índia; a questão
social, com a Populorum Progressio e
a Octagessiama adveniens; o Ano da Fé, com o Credo do Povo de Deus, no centenário do martírio dos apóstolos
Pedro e Paulo; a nova evangelização, com a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi; a política da
aceitação da autodeterminação dos povos, com a receção aos líderes dos denominados
movimentos de libertação e o discurso na ONU; e as viagens fora de Roma e as
visitas pastorais a paróquias da diocese – que pararam por causa da artrose.
Não é lícito fixarmo-nos somente nos aspetos de que não gostamos!
E porque não repescar a memória de
mais alguns daqueles Servos de Deus, que efetivamente gozam da visão beatífica
junto do Pai (ou, como diziam os judeus, no seio de
Abraão) e que têm
algo que sirva de exemplo a seguir nos tempos que correm, merecendo, por isso,
a veneração dos católicos?
Depois, convém que se assuma em
escala a memória e a História de toda a Igreja e de todos os seus santos padres
(é certo, com luzes bem radiantes e sombras bem escuras; mas
qual é o povo que deita fora o seu passado?), tal como fez o Bispo do Porto em relação à sua nova
Comunidade, no ato de entrada na diocese. É a herança do Evangelho, com os
apóstolos, mártires e confessores da fé que, interpretada à luz do que o Tempo
permitiu, faz o “hoje” da Igreja, que é o “hoje” de Deus, feito semente de futuro.
E é um futuro não hipotecado, porque é construído na esperança de quem tem os
pés assentes na Terra, caminho aberto à frente e olhos no Alto.
Gosto daqueles santos, dos canonizados
a 27 de abril. Agora são mais gente como Deus e como nós. Antes, referíamo-nos
a eles como “Sua Santidade”, “Santíssimo” ou “Beatíssimo” (e talvez a santidade
deles, embora maiusculizada, era tão pobre). Hoje participam em pleno da
santidade de Cristo, aquele que aclamamos como “Solus Sanctus”. E, porque mais
iguais a nós, a partir de agora, podemos imitá-los e deixar-nos guiar por eles,
que foram “guias guiados pelo Espírito” e que sabem das nossas misérias e
esforços de virtude, aquilo de que antes talvez ninguém lhes desse verdadeiro
conhecimento. É provável que Francisco de Assis tivesse razão quando tratava o
Chefe da Igreja Católica por “Senhor Papa” (o “senhor pai” das
aldeias tradicionais do Portugal rural).
Alguém levantou a questão da
infalibilidade pontifícia da decisão de beatificar e de canonizar. Se pensarmos
na definição originária de dogma (decidir o que parece mais certo, na
ótica apostólica aliada à do Espírito Santo), é fácil de admitir. Se a nota de infalibilidade
resulta de uma decisão decorrente de processo tão rigoroso e acertado, tanto quanto
pode a fraqueza humana, pergunto-me pela razão das dispensas de tempo, de milagres,
de algumas audições; é óbvio que a dúvida pode não ficar afastada. Pelo menos,
as canonizações não decorrem daquele consenso universalmente formado a
propósito do odor de santidade, mas local e circunstancial (embora coletivo e/ou de testemunhos humanamente fidedignos), não são sentidas pelos bispos do
mundo católico, ouvidas as opiniões das suas comunidades, nem eles, sentindo-se
vozes inteiramente livres para se manifestarem, soem pedir expressamente a decisão
ao Papa. Por outro lado, se invoca a autoridade apostólico, o Papa não declara expressamente
definir matéria infalível de fé e/ou costumes.
Também não parece necessário atrelar
a nota de infalibilidade à decisão de beatificação e de canonização. Vejamos:
os inscritos no cânone dos santos e os inscritos no catálogo dos beatos são ornados
da heroicidade de virtude e nalgum ponto importante podem ser apresentados como
modelos de vida cristã.
Resta saber se merecem a veneração (o
culto de dulia dos fiéis). Ora, o povo cristão não canta hossanas,
independentemente da existência de defeito ou pecado nele, ao Sumo Pontífice
vivo, enquanto vigário de Cristo? Tempo houve em que se lhe beijava o pé e se
fazia a genuflexão por duas vezes quando se entrava em sua augusta presença (Pio XII acabou com tal gesto por sugestão indignada do Padre Ricardo
Lombardi!). Os
cristãos não cantam ao bispo e ao sacerdote, mesmo que apareçam sem as insígnias
da Ordem, como “aquele que vem em nome do Senhor”, “o eleito de Cristo”? Mais:
todos veneramos os nossos catequistas, pedíamos a bênção aos pais e aos padrinhos,
etc. É que se vê e/ou via neles a qualidade de representantes de Deus. E,
ainda, os cristãos dos primeiros tempos eram chamados “santos”, até ao momento
em que a Igreja se estabeleceu em Antioquia.
Já me apoquenta o facto de os processos
se tornarem demasiado caros financeiramente e os encargos ficarem a pesar
inteiramente nas dioceses, congregações ou associações interessadas. Não é
justo que que tantos e tantas eventualmente tenham ficado pelo caminho por
falta ou insuficiência de meios. Se é certo que tudo custa dinheiro, creio que,
embora as entidades mencionadas devam contribuir segundo as suas posses, o Ministério
da Economia e Finanças da Santa Sé (ou com o nome que Francisco lhe atribuiu
recentemente) deveria obviar às despesas das causas para as quais não haja fundos
locais. Ou se acredita que vale a pena ou não. Mas, se se acredita…
Ora, razão tem Frei Bento Domingues
ao escrever em 27 abril, Público, pg
53: “nas questões de ordem teológica, o que me preocupa, em clima cristão, é
saber se um determinado acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão
imanente e transcendente dos seres humanos como criaturas de relação e de interajuda”.
O que pedimos e/ou agradecemos aos “santos”
não é a intercessão em termos de cura, apoio, guia, milagre, graça? Todos
sabemos que não é o santo que faz o milagre, mas Deus através dele? Todos
sabemos que a fonte da Graça não é o santo, mas Deus que a distribui, com a
cura, com a guia e com o apoio/ajuda através do santo.
Quanto à infalibilidade, o referido teólogo
entende – e bem – que “os frutos dos incréus, nem sempre são modelos de crítica
histórica”. Penso que com os ditos “incréus” se refere aos jurados que, em segmento
textual anterior, formam o júri que avalia o “bom currículo” e que “não goza de
nenhuma garantia digna de imparcialidade”, embora se pense que “os produtos da
hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção, pretendem ser edificantes”.
A finalizar, parece-me que tanto os
canonizados a 27 de abril como os artífices da canonização concordam com o frei
dominicano cronista, do domingo das canonizações (artigo citado), em que “quanto
a modelos (…), no Ocidente ainda não apareceu nenhum mais interessante do que
Jesus Cristo e aqueles que seguem os seus passos e recomendações: os que não procuram nem riquezas nem
qualquer outro poder de dominação”.
Por isso, tal como rezam os devotos
do santuário da Lapa (Sernancelhe) “Nossa Senhora da Lapa, rogai por nós a
Jesus!”, digamos também:
São João XXIII e São João Paulo II, rogai por
nós a Jesus Cristo!
Sem comentários:
Enviar um comentário