segunda-feira, 28 de abril de 2014

O dia dos quatro papas

O Dia 27 de fevereiro de 2014 – dizem alguns – ficará para a História como o “dia dos quatro papas”. E porque não? Ou porque não o “dia de mais de quatro Papas”?
Os factos ficaram à vista. Efetivamente dois dos sumos pontífices que marcaram historicamente, pela postura e pela doutrina (não sua, porque de Jesus, que dizia que não era dele, mas do Pai), a segunda metade do século XX e um deles, também a entrada da Igreja no terceiro milénio (até com a publicação da carta apostólica Novo Millennio Ineunte) – ingressaram no cânone oficial dos santos. A autoridade apostólica com que tal facto se efetuou reside em Francisco, o papa do presente da Igreja Católica, que recebeu como que em herança o processo de condução daqueles, antes denominados, Beatos João XXIII e João Paulo II das mãos do papa emérito, Bento XVI, que integrou a celebração com a plenitude do poder de ordem, que não deixa de deter relativamente à Eucaristia (e atualmente autodespojado do poder de condução da Igreja, poder odegético). Pode dizer-se que até do ponto de vista humano o centro eclesiástico funcionou bem, dando ao mundo um exemplo de concórdia nas diferenças, que as há. A própria multidão apreciou, com os visíveis aplausos, a chegada do emérito e a saudação que ambas as altas figuras da rocha petrina trocaram entre si.
Teoricamente, em vez de quatro, poderiam ter sido presentificados mais de quatro. Alguns humoristas sérios pensaram a atribuir ao bom papa João, o da docilidade ao Espírito Santo, a autointerrogação “Porque só nós os dois?”. Sim, dirão alguns, porque não também Pio XII, o homem da Igreja-corpo místico de Cristo, a testemunha dramática dos sofrimentos da humanidade, o papa das radiomensagens e da Assunção de Maria? Sim, digo eu, porque não Paulo VI, o homem da paciência na continuidade dos trabalhos conciliares e pós-conciliares, da promulgação dos seus documentos finais, da promulgação dos documentos executivos das opções conciliares (alguns à luz de novas situações), o concretizador da abertura intuída e preconizada por João XXIII. Vêm a talho de foice: a colegialidade, com a instituição do sínodo dos bispos, a transferência de competências para as conferências episcopais e para os bispos diocesanos; a deposição da tiara e da sedes gestatoria; o diálogo, com a encíclica Ecclesiam Suam e gestos subsequentes; o ecumenismo (quem não se lembra do abraço trocado entre ele e o patriarca de Constantinopla?) e o diálogo inter-religioso, com a ida à Terra Santa e à Índia; a questão social, com a Populorum Progressio e a Octagessiama adveniens; o Ano da Fé, com o Credo do Povo de Deus, no centenário do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo; a nova evangelização, com a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi; a política da aceitação da autodeterminação dos povos, com a receção aos líderes dos denominados movimentos de libertação e o discurso na ONU; e as viagens fora de Roma e as visitas pastorais a paróquias da diocese – que pararam por causa da artrose. Não é lícito fixarmo-nos somente nos aspetos de que não gostamos!
E porque não repescar a memória de mais alguns daqueles Servos de Deus, que efetivamente gozam da visão beatífica junto do Pai (ou, como diziam os judeus, no seio de Abraão) e que têm algo que sirva de exemplo a seguir nos tempos que correm, merecendo, por isso, a veneração dos católicos?
Depois, convém que se assuma em escala a memória e a História de toda a Igreja e de todos os seus santos padres (é certo, com luzes bem radiantes e sombras bem escuras; mas qual é o povo que deita fora o seu passado?), tal como fez o Bispo do Porto em relação à sua nova Comunidade, no ato de entrada na diocese. É a herança do Evangelho, com os apóstolos, mártires e confessores da fé que, interpretada à luz do que o Tempo permitiu, faz o “hoje” da Igreja, que é o “hoje” de Deus, feito semente de futuro. E é um futuro não hipotecado, porque é construído na esperança de quem tem os pés assentes na Terra, caminho aberto à frente e olhos no Alto.
Gosto daqueles santos, dos canonizados a 27 de abril. Agora são mais gente como Deus e como nós. Antes, referíamo-nos a eles como “Sua Santidade”, “Santíssimo” ou “Beatíssimo” (e talvez a santidade deles, embora maiusculizada, era tão pobre). Hoje participam em pleno da santidade de Cristo, aquele que aclamamos como “Solus Sanctus”. E, porque mais iguais a nós, a partir de agora, podemos imitá-los e deixar-nos guiar por eles, que foram “guias guiados pelo Espírito” e que sabem das nossas misérias e esforços de virtude, aquilo de que antes talvez ninguém lhes desse verdadeiro conhecimento. É provável que Francisco de Assis tivesse razão quando tratava o Chefe da Igreja Católica por “Senhor Papa” (o “senhor pai” das aldeias tradicionais do Portugal rural).
Alguém levantou a questão da infalibilidade pontifícia da decisão de beatificar e de canonizar. Se pensarmos na definição originária de dogma (decidir o que parece mais certo, na ótica apostólica aliada à do Espírito Santo), é fácil de admitir. Se a nota de infalibilidade resulta de uma decisão decorrente de processo tão rigoroso e acertado, tanto quanto pode a fraqueza humana, pergunto-me pela razão das dispensas de tempo, de milagres, de algumas audições; é óbvio que a dúvida pode não ficar afastada. Pelo menos, as canonizações não decorrem daquele consenso universalmente formado a propósito do odor de santidade, mas local e circunstancial (embora coletivo e/ou de testemunhos humanamente fidedignos), não são sentidas pelos bispos do mundo católico, ouvidas as opiniões das suas comunidades, nem eles, sentindo-se vozes inteiramente livres para se manifestarem, soem pedir expressamente a decisão ao Papa. Por outro lado, se invoca a autoridade apostólico, o Papa não declara expressamente definir matéria infalível de fé e/ou costumes.
Também não parece necessário atrelar a nota de infalibilidade à decisão de beatificação e de canonização. Vejamos: os inscritos no cânone dos santos e os inscritos no catálogo dos beatos são ornados da heroicidade de virtude e nalgum ponto importante podem ser apresentados como modelos de vida cristã.
Resta saber se merecem a veneração (o culto de dulia dos fiéis). Ora, o povo cristão não canta hossanas, independentemente da existência de defeito ou pecado nele, ao Sumo Pontífice vivo, enquanto vigário de Cristo? Tempo houve em que se lhe beijava o pé e se fazia a genuflexão por duas vezes quando se entrava em sua augusta presença (Pio XII acabou com tal gesto por sugestão indignada do Padre Ricardo Lombardi!). Os cristãos não cantam ao bispo e ao sacerdote, mesmo que apareçam sem as insígnias da Ordem, como “aquele que vem em nome do Senhor”, “o eleito de Cristo”? Mais: todos veneramos os nossos catequistas, pedíamos a bênção aos pais e aos padrinhos, etc. É que se vê e/ou via neles a qualidade de representantes de Deus. E, ainda, os cristãos dos primeiros tempos eram chamados “santos”, até ao momento em que a Igreja se estabeleceu em Antioquia.
Já me apoquenta o facto de os processos se tornarem demasiado caros financeiramente e os encargos ficarem a pesar inteiramente nas dioceses, congregações ou associações interessadas. Não é justo que que tantos e tantas eventualmente tenham ficado pelo caminho por falta ou insuficiência de meios. Se é certo que tudo custa dinheiro, creio que, embora as entidades mencionadas devam contribuir segundo as suas posses, o Ministério da Economia e Finanças da Santa Sé (ou com o nome que Francisco lhe atribuiu recentemente) deveria obviar às despesas das causas para as quais não haja fundos locais. Ou se acredita que vale a pena ou não. Mas, se se acredita…
Ora, razão tem Frei Bento Domingues ao escrever em 27 abril, Público, pg 53: “nas questões de ordem teológica, o que me preocupa, em clima cristão, é saber se um determinado acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão imanente e transcendente dos seres humanos como criaturas de relação e de interajuda”.
O que pedimos e/ou agradecemos aos “santos” não é a intercessão em termos de cura, apoio, guia, milagre, graça? Todos sabemos que não é o santo que faz o milagre, mas Deus através dele? Todos sabemos que a fonte da Graça não é o santo, mas Deus que a distribui, com a cura, com a guia e com o apoio/ajuda através do santo.
Quanto à infalibilidade, o referido teólogo entende – e bem – que “os frutos dos incréus, nem sempre são modelos de crítica histórica”. Penso que com os ditos “incréus” se refere aos jurados que, em segmento textual anterior, formam o júri que avalia o “bom currículo” e que “não goza de nenhuma garantia digna de imparcialidade”, embora se pense que “os produtos da hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção, pretendem ser edificantes”.
A finalizar, parece-me que tanto os canonizados a 27 de abril como os artífices da canonização concordam com o frei dominicano cronista, do domingo das canonizações (artigo citado), em que “quanto a modelos (…), no Ocidente ainda não apareceu nenhum mais interessante do que Jesus Cristo e aqueles que seguem os seus passos e recomendações: os que não procuram nem riquezas nem qualquer outro poder de dominação”.
Por isso, tal como rezam os devotos do santuário da Lapa (Sernancelhe) “Nossa Senhora da Lapa, rogai por nós a Jesus!”, digamos também:

 São João XXIII e São João Paulo II, rogai por nós a Jesus Cristo!

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