Nota prévia
Um companheiro destas lides
reflexivas, mas com maior audácia do que eu na utilização dos recursos
informáticos, nomeadamente na denominada autoestrada da informação, manifestou
a sua estranheza pela verificação de “quase nenhum padre e bispo” se atrever a
pregar sobre o tema referenciado em epígrafe, um dos pontos constituintes do
artigo 5.º do Credo, conhecido como Símbolo dos Apóstolos, a anteceder o
“Ressuscitou ao terceiro dia”. Na versão oficial portuguesa, a expressão da
epígrafe deste arrazoado reflexivo vem traduzida pelo segmento “… desceu à mansão dos mortos”.
O evocado amigo, João Tavares (vd Associação Rumos, 19 de
abril), interroga-se se acaso esta verdade do Símbolo terá passado de
moda ou se é demasiado misteriosa, dado que “mesmo nos cursos de Teologia lhe é
dada pouca importância”.
Em minha opinião, a pouca importância, pelo menos aparente, atribuída
ao tema dever-se-á a uma reação compreensível à continuada insistência até ao
Vaticano II na doutrina referente ao diabo, ao Inferno, ao Purgatório e ao
Limbo. Os pregadores e catequistas pós-conciliares terão optado pela perspetiva
mais positiva e cativante da economia salvífica – o vulto misericordioso de
Deus, a Fé / compromisso pessoal e a Igreja /comunidade – e relegado para
segundo plano a perspetiva mais atemorizante e relacionada com a hierarquia do
poder. Paulo VI – que, em 1973, quando falou explicitamente sobre o diabo e a
sua intervenção junto das almas (o bafo de Satanás terá entrado na Igreja), foi
duramente criticado por alegadamente estar a retomar uma doutrina eivada da
obscuridade medieval – no seu extenso Credo do Povo de Deus, de 30 de
junho de 1968 (encerramento do Ano da Fé), tem uma dupla posição. Afirma que
aqueles que tiverem recusado o Amor e a Misericórdia de Deus até à morte “serão
destinados ao fogo que nunca cessará”. Mas omite a descida aos infernos entre a
sepultura e a ressurreição do Senhor.
É óbvio que é necessário distinguir, como adiante se verá, entre o
inferno atribuído aos proscritos, ou para onde migravam todos os defuntos do
paganismo, e o sentido a dar ao “descendit ad ínferos”, do cristianismo.
A contaminação intercultural
A mitologia antiga, veiculada
sobretudo pelas literaturas grega e latina, é uma presença continuada na
cultura europeia, que nem a época medieval interrompeu. Exemplos de situações
humanas extremas, matéria de alegoria, motivo de embelezamento literário, artístico
ou musical, para tudo têm servido. O homem que perpassou os milénios idos, e
sobretudo o do nosso tempo, encontra naqueles exemplos campo de reflexão
interminável, quer se situe no domínio da psicanálise, quer no da antropologia,
quer no da sociologia ou no da história religiosa. Poetas portugueses, como
Duarte de Brito, Gomes Ferreira, Torga, Carlos Oliveira e Sophia, como os
italianos Dante e Jole Ruggieri e o castelhano Marquês de Santillana, abordam a
temática numa ótica negativista da anulação ou diminuição da personagem e não
como ato de redenção e elevação.
Por outro lado, as crenças do mundo
antigo influenciaram a formulação bíblica, já que o hagiógrafo teria de
basear-se na linguagem humana corrente nos tempos em que as peças
escriturísticas foram redigidas, incluindo as que foram inseridas a partir das
tradições orais. Porém, à luz da economia da salvação e sua teoantropologia, as palavras ganham,
muitas vezes, sentido bem diferente daquele de cuja realidade provieram, vindo
a identificar uma realidade nova (de que é exemplo a serpente, adorada pelos
povos circundantes e, na Bíblia, diabolizada como causa do mal).
A catábase,
como descida aos infernos ou ao submundo, é tema recorrente em muitas tradições
religiosas antigas. Do xamanismo milenar aos mistérios greco-romanos, como nas
iniciações das escolas mistéricas da Europa e no cristianismo, essa imagem da
ida ao mundo dos mortos é uma presença constante.
O segmento linguístico grego do
Símbolo Apostólico é κατελθόντα εἰς τὰ κατώτατα (ou: εἰς τὰ κατώτατα κατελθόντα,
no símbolo atanasiano: só mudou a ordem das palavras) – “katelthonta eis ta
katôtata” – e o correspondente
latino "descendit (ou discendit) ad ínferos" (no Símbolo “Quicumque”
ou pseudo-atanasiano). “Ta katôtata” (os lugares mais profundos) e “ínferos” ou “infera” e “inferna”
(os que estão lá em baixo, pessoas ou lugares) podem também ser traduzidos como
“profundezas”, “morada dos mortos” ou “limbo”.
Advirta-se
que a expressão latina tem variantes nos símbolos da fé nas Igrejas do
Ocidente: descendit ad inferna (Tirânio Rufino, a 1.ª versão do símbolo
a conter esta expressão; Bieco de Liébana, Bobio, Ordo Romanus Baptismalis e
símbolos de Aquileia, Espanha/séc.VI, de Arles…); discendit ad inferos (Antiphonale
Benchorense). – Cf DS, Enchiridion Symbolorum, ps 23-42; e J Kelly, Primitivos
Credos Cristianos).
As Escrituras
A falta de referências explícitas nas
Escrituras a respeito desta “descida” originou controvérsias e muitas
interpretações diferentes. Como imagem da arte cristã, a catábase ao submundo é também conhecida como anástasis (grego, para “ressurreição”), considerada uma criação
da cultura bizantina só aparecida no ocidente nos alvores do século VIII.
Os “infernos” a que a doutrina se
refere não configuram o estado a que se remetem os proscritos por não terem
seguido em vida a rota do Senhor, não integrando a especulação sobre os
novíssimos ou, como se diz atualmente, a teologia da escatologia, com a
realização da parusia perfeita. Muito menos os “lugares inferiores” e as
pessoas que, na linguagem bíblico-patrística, os habitavam, têm qualquer
relação de semelhança com o Hades
grego, o Sheol hebraico (e sua geena) ou os equivalentes egípcios,
sumérios ou romanos. Se excetuarmos a proeza de Hércules (que terá conseguido
as asas da elevação, embora sem a eivação aos outros mortais), quem desce ao
reino dos mortos, ou nada consegue e de lá regressa com saudade de quem lá
deixou, ou lá fica castigado e penando na companhia dos que já lá estavam.
Apesar da aludida falta de
explicitação, foram aduzidas passagens do Novo Testamento, articuladas com
algumas do Antigo Testamento, para ensinar que o Cristo morto teria descido aos
infernos ou à mansão dos mortos antes da sua ascensão (e porque não entre a
teofania da Cruz e a Aparição às mulheres e aos discípulos?). Assim:
“Foi [Jesus] pregar aos espíritos em
prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes, quando a longanimidade de
Deus esperava nos dias de Noé...” (1 Pe 3,19-20); “Pois por isto foi o Evangelho
pregado até aos mortos...” (1 Pe 4,6).
Mateus traça um comparativo entre o
profeta Jonas, que foi engolido por um enorme peixe, e Cristo, que ficou três
dias morto (cf Mt 12,40. Ora, se Cristo é comparado a Jonas, é pertinente advertir
o seguinte: só depois de perfazer a sua volta instintiva, é que o peixe
depositou Jonas na praia e o devolveu à terra. Assim também, Cristo só podia
ter sido restituído à luz do dia após o cumprimento da sua tarefa “instintiva”
(a do seu desígnio de total discrição com vista à eficácia redentora): trazer
ao “hoje” da salvação aqueles e aquelas que em linguagem humana aguardavam
ansiosamente a hora da redenção. A catábase de Cristo ao reino dos mortos é a excelente
metáfora da garantia de que Ele foi constituído Senhor e Juiz dos Vivos e dos
Mortos. E, tal como a Mãe do Vero Incarnado fora imune de qualquer modalidade
de pecado e João Batista saltou de alegria no ventre materno graças à aos
méritos do Redentor, num caso, e à Sua presença, no outro, também os justos o
aguardavam no “céu” (os hebreus conheciam os céus inferiores, inferi, e os céus superiores, superi ou excelsi), graças à sua ação redentora. Pelo que a omissão do “descendit ad inferna” ou segmento
similar não é facto de relevância. Relevante será: ter padecido, ter sido
crucificado e ter morrido, ter sido sepultado, ressuscitar e subir aos céus. A
descida à mansão dos mortos enriquece o símbolo,
ao reconhecer o Cristo como Senhor e Redentor de todo o tempo (passado,
presente e futuro) e de todo o lugar (lugares inferiores, terra à vista e
alturas). Mas Ele não precisava de ir nem o Seu espírito aparecer realmente a
outros espíritos. Como nada impede que o Corpo Glorioso se multiplique em deslocações,
mercê da sua subtilidade.
Por seu turno, o livro dos Atos
declara explicitamente que Cristo não poderia ser abandonado ao Hades e que a sua carne não veria a
corrupção (cf Act 2,27.31). E Paulo, na carta aos Efésios, também sugere a
catábase: “Por isso diz: quando ele subiu ao alto, levou cativo o cativeiro,
deu dons aos homens. (Ora que quer dizer isto: Ele subiu, senão que também
desceu aos lugares mais baixos da terra? Aquele que desceu é também o que subiu
muito acima de todos os céus, para encher todas as coisas.)”. – Cf Ef 1, 8-10.
Constituindo o segmento citado uma
paráfrase truncada do Salmo 68 (18), com alteração do seu ponto de vista
– “Subiste ao alto, levaste cativos os prisioneiros; recebeste dons dos
homens, mesmo dos rebeldes, para Deus Javé habitar entre eles”, Frang Stagg identifica
nele, em articulação como o texto da carta paulina, uma tríplice perspetiva a
desembocar num mistério uno: o enterro de Jesus, a Sua descida às profundezas
(ou aos infernos) e a Sua encarnação constroem um ato de profunda
humildade (vd Fl 2, 5-11).
A referência de Zacarias a
prisioneiros numa “cova que não há água” (cf Zc 9,11 ) tem
sido apontada como um reflexo dos prisioneiros de YHWH (Javé) frente a
seus inimigos, no Salmo 68 (17-18).
Já Isaías alude a espíritos
prisioneiros num relato que lembra o de Pedro quando espíritos o visitaram na
prisão: “Naquele dia, Javé castigará o exército dos altos nas alturas,
e os reis da terra sobre a terra. Serão ajuntados como presos na cova, serão
encarcerados na prisão e, depois de muitos dias, serão visitados” (Is 24,21-22).
A doutrina
A descida de Jesus aos infernos,
ensinada por teólogos na igreja antiga, aparece em diversos Padres da Igreja,
como Melito de Sardes, Tertuliano, Hipólito, Orígenes e Ambrósio de Milão.
Uma antiga homilia sobre a descida
aos infernos, de autor desconhecido, é assumida como 2.ª leitura do “ofício de
leitura” no Sábado Santo, na Igreja Católica.
O CIC – Catecismo da Igreja Católica (§636) afirma que, na expressão “Jesus desceu à mansão dos mortos”, o Símbolo confessa que Jesus morreu
realmente, e que, por ter morrido por nós, venceu a morte e o Diabo “que tem o
poder da morte” (Hbr 2,14).
Portanto, a palavra “infernos” é
utilizada nas escrituras e no Credo
para fazer significar a “mansão dos mortos”, sejam justos ou maus, até que
possam ser admitidos no céu (vd CIC §633). Tal “mansão dos mortos” é o lugar
inferior” aonde Jesus desceu. A Sua morte libertou da exclusão do céu os justos
que morreram antes da sua vinda:
Foram precisamente essas
almas santas, que esperavam o seu libertador no seio de Abraão, que Jesus
Cristo libertou quando desceu à mansão dos mortos. Jesus não desceu à mansão
dos mortos para de lá libertar os condenados, nem para abolir o inferno da
condenação, mas para libertar os justos que O tinham precedido.
Embora seja possível a
conceptualização da “mansão dos mortos” como um lugar, tal não se nos afigura
como necessário (os próprios documentos da Igreja, como os catecismos, falam de
um “estado ou lugar”). É, pois, defensável que Cristo não esteve na morada dos
condenados, que é geralmente compreendido atualmente como sendo o “inferno” dos
novíssimos. Por exemplo, Tomás de Aquino ensinava que Cristo não foi ao
“inferno dos perdidos”, mas “os envergonhou por sua falta de fé e
maldade”; fora, sim, aos que estavam presos no purgatório, aos
quais deu esperança de obterem a glória; e sobre os santos padres detidos no
“inferno”, ou seja, sem a visão beatífica de Deus, apenas por conta do pecado
original, ele lançou a luz da glória eterna”.
Alguns sugerem que Cristo se limitou
a descer ao “limbo dos profetas”, ao passo que outros, como Hans Urs von Balthasar
(inspirado pelas visões de Adrienne von Speyr), defendem que foi mais do que
isso e que a descida envolveu sofrimento da parte de Jesus.
Apesar de tanto João Paulo II como
Bento XVI (este arredou do corpus da
doutrina a teoria do limbo) elogiarem a teologia de Balthasar, alguns
teólogos não vislumbram uma posição doutrinária precisa do Magistério da Igreja
sobre este ponto. Pelo que este é um tema no qual as diferenças e a especulação
teológica são permissíveis sem ultrapassar os limites da ortodoxia.
Também Lutero, num sermão realizado
em Torgau, em 1533, afirmou que Cristo desceu aos infernos: “Acreditamos
simplesmente que a pessoa inteira, Deus e ser humano, desceu ao inferno após
seu sepultamento, conquistou o diabo, destruiu o poder do inferno e tomou do
diabo todo o seu poder” (vd Fórmula da Concórdia, art. XI). Para Lutero, a humilhação de Cristo não pode ser
jamais completamente separada de sua glorificação vitoriosa.
E Calvino expressou a sua preocupação
de que muitos cristãos “jamais consideraram seriamente
o que é ou significa ter sido redimido do julgamento de Deus. Ainda assim, esta
é nossa crença: obedientemente sentir o quanto a nossa salvação custou ao Filho
de Deus”. A conclusão de Calvino foi que “a descida de Cristo ao inferno foi
necessária para a redenção dos cristãos, pois Cristo de facto sofreu as
consequências dos pecados que ele redimiu” (vd Center for Reformed Theology and
Apologetics).
Concluindo
Sendo, pois, difícil dar uma resposta
simplista à questão se “Jesus desceu ao inferno entre Sua morte e
ressurreição”, há que ficar com o essencial da doutrina.
Foi a sua paixão e morte na Cruz por
causa de nós e em nosso lugar que, de forma suficiente, promoveram a nossa
redenção. Foi o seu sangue que, derramado por nós, validou o perdão dos pecados
(I Jo 1,7-9). Suspenso na Cruz, Ele levou sobre Si o fardo do pecado de toda a
raça humana. Ele fez-Se pecado por nós. Paulo o afirma categoricamente: “Àquele
que não conheceu pecado, O fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos
justiça de Deus” (2 Cor 5,21). O peso do pecado ajuda-nos a compreender o que
passou Cristo no Jardim do Getsémani, a sua luta com o cálice de pecado que fez
com que sobre Ele impendesse o ónus de derramar na cruz o seu sangue até à
última gota para remissão dos pecados: “Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
Quando do alto da Cruz exclamou com
grande voz: “Meu Deus, meus Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,36), é que se
sentiu momentaneamente separado do Pai por causa do pecado sobre Si derramado.
E verificando que “Tudo está consumado” (Jo 19,30), entregou o Seu espírito,
bradando: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
Sua alma/ seu espírito foi à zona do Hades correspondente ao Paraíso: não ao inferno dos proscritos.
Foi lá, ao menos metaforicamente, com o mesmo à vontade com que ascendit in caelos (subiu aos céus). Não
em sofrimento porque o sofrimento de Jesus terminou no momento em que morreu. O
pagamento pelo pecado estava feito. Ele então aguardou a ressurreição de Seu
corpo e Seu retorno a sua glória, em Sua ascensão.
Atente-se nas preposições latinas: ad e in.
Descendit ad inferna – Desceu aos
(até junto dos) lugares lá de baixo. Mas ascendit
in caelos – Subiu aos lugares superiores (subiu para dentro dos), o fim
para o qual, por suas mãos, todos tendemos e nos encaminhamos. Em Português
Europeu só não dizemos que “foi para os Céus”, porque Ele prometeu que há de
voltar no fim dos tempos.
Finalmente, não resisto à recordação
do segmento da homilia de Sábado Santo, acima referenciada, que transcrevi no
passado dia 19 de abril:
Entrou o Senhor onde eles
estavam, empunhando a arma gloriosa da cruz. Adão e Cristo trocaram a saudação
da presença. E o senhor clamou: Desperta, tu que dormes, por que Eu não
te criei para o cativeiro do reino dos mortos. Levanta-te, minha obra, minha
imagem e semelhança. Por ti, teu Deus, me fiz teu filho (filho do homem). Adormeci
na cruz e a lança penetrou no meu lado, que sarou a dor do teu lado.
Levanta-te, vamos
daqui. O inimigo expulsou-te do paraíso terreal. Eu, porém, já não te coloco no
paraíso terreal, mas no trono celeste. Foste afastado da árvore da vida, mas
Eu, que sou a Vida, e que ordenei aos querubins que te vigiassem como servo,
ordeno-lhes agora que te adorem como Deus, embora não sejas Deus.
Sim, por vontade divina, o
homem é criatura sagrada, revestida da dignidade da pessoa humana, guardado
ciosamente por Deus e seus anjos para o banquete do Reino que está preparado
para nós desde o princípio do mundo, mas que tem de ser preparado e já vivido
no hoje do século.
E essa preparação do banquete do
Reino processa-se na constante descida aos infernos do arrependimento e
permanente ânsia de ascensão à glória, por parte do homem, partícipe da vida
divina.
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