quarta-feira, 23 de abril de 2014

A descida aos infernos

Nota prévia
Um companheiro destas lides reflexivas, mas com maior audácia do que eu na utilização dos recursos informáticos, nomeadamente na denominada autoestrada da informação, manifestou a sua estranheza pela verificação de “quase nenhum padre e bispo” se atrever a pregar sobre o tema referenciado em epígrafe, um dos pontos constituintes do artigo 5.º do Credo, conhecido como Símbolo dos Apóstolos, a anteceder o “Ressuscitou ao terceiro dia”. Na versão oficial portuguesa, a expressão da epígrafe deste arrazoado reflexivo vem traduzida pelo segmento “… desceu à mansão dos mortos”. 
O evocado amigo, João Tavares (vd Associação Rumos, 19 de abril), interroga-se se acaso esta verdade do Símbolo terá passado de moda ou se é demasiado misteriosa, dado que “mesmo nos cursos de Teologia lhe é dada pouca importância”.
Em minha opinião, a pouca importância, pelo menos aparente, atribuída ao tema dever-se-á a uma reação compreensível à continuada insistência até ao Vaticano II na doutrina referente ao diabo, ao Inferno, ao Purgatório e ao Limbo. Os pregadores e catequistas pós-conciliares terão optado pela perspetiva mais positiva e cativante da economia salvífica – o vulto misericordioso de Deus, a Fé / compromisso pessoal e a Igreja /comunidade – e relegado para segundo plano a perspetiva mais atemorizante e relacionada com a hierarquia do poder. Paulo VI – que, em 1973, quando falou explicitamente sobre o diabo e a sua intervenção junto das almas (o bafo de Satanás terá entrado na Igreja), foi duramente criticado por alegadamente estar a retomar uma doutrina eivada da obscuridade medieval – no seu extenso Credo do Povo de Deus, de 30 de junho de 1968 (encerramento do Ano da Fé), tem uma dupla posição. Afirma que aqueles que tiverem recusado o Amor e a Misericórdia de Deus até à morte “serão destinados ao fogo que nunca cessará”. Mas omite a descida aos infernos entre a sepultura e a ressurreição do Senhor.
É óbvio que é necessário distinguir, como adiante se verá, entre o inferno atribuído aos proscritos, ou para onde migravam todos os defuntos do paganismo, e o sentido a dar ao “descendit ad ínferos”, do cristianismo.

A contaminação intercultural
A mitologia antiga, veiculada sobretudo pelas literaturas grega e latina, é uma presença continuada na cultura europeia, que nem a época medieval interrompeu. Exemplos de situações humanas extremas, matéria de alegoria, motivo de embelezamento literário, artístico ou musical, para tudo têm servido. O homem que perpassou os milénios idos, e sobretudo o do nosso tempo, encontra naqueles exemplos campo de reflexão interminável, quer se situe no domínio da psicanálise, quer no da antropologia, quer no da sociologia ou no da história religiosa. Poetas portugueses, como Duarte de Brito, Gomes Ferreira, Torga, Carlos Oliveira e Sophia, como os italianos Dante e Jole Ruggieri e o castelhano Marquês de Santillana, abordam a temática numa ótica negativista da anulação ou diminuição da personagem e não como ato de redenção e elevação.
Por outro lado, as crenças do mundo antigo influenciaram a formulação bíblica, já que o hagiógrafo teria de basear-se na linguagem humana corrente nos tempos em que as peças escriturísticas foram redigidas, incluindo as que foram inseridas a partir das tradições orais. Porém, à luz da economia da salvação e sua teoantropologia, as palavras ganham, muitas vezes, sentido bem diferente daquele de cuja realidade provieram, vindo a identificar uma realidade nova (de que é exemplo a serpente, adorada pelos povos circundantes e, na Bíblia, diabolizada como causa do mal).
A catábase, como descida aos infernos ou ao submundo, é tema recorrente em muitas tradições religiosas antigas. Do xamanismo milenar aos mistérios greco-romanos, como nas iniciações das escolas mistéricas da Europa e no cristianismo, essa imagem da ida ao mundo dos mortos é uma presença constante.
O segmento linguístico grego do Símbolo Apostólico é κατελθόντα εἰς τὰ κατώτατα  (ou: εἰς τὰ κατώτατα κατελθόντα, no símbolo atanasiano: só mudou a ordem das palavras) – “katelthonta eis ta katôtata” – e o correspondente latino "descendit (ou discendit) ad ínferos" (no Símbolo “Quicumque” ou pseudo-atanasiano). “Ta katôtata” (os lugares mais profundos) e “ínferos” ou “infera” e “inferna” (os que estão lá em baixo, pessoas ou lugares) podem também ser traduzidos como “profundezas”, “morada dos mortos” ou “limbo”.
Advirta-se que a expressão latina tem variantes nos símbolos da fé nas Igrejas do Ocidente: descendit ad inferna (Tirânio Rufino, a 1.ª versão do símbolo a conter esta expressão; Bieco de Liébana, Bobio, Ordo Romanus Baptismalis e símbolos de Aquileia, Espanha/séc.VI, de Arles…); discendit ad inferos (Antiphonale Benchorense). – Cf DS, Enchiridion Symbolorum, ps 23-42; e J Kelly, Primitivos Credos Cristianos).

As Escrituras
A falta de referências explícitas nas Escrituras a respeito desta “descida” originou controvérsias e muitas interpretações diferentes. Como imagem da arte cristã, a catábase ao submundo é também conhecida como anástasis  (grego, para “ressurreição”), considerada uma criação da cultura bizantina só aparecida no ocidente nos alvores do século VIII.
Os “infernos” a que a doutrina se refere não configuram o estado a que se remetem os proscritos por não terem seguido em vida a rota do Senhor, não integrando a especulação sobre os novíssimos ou, como se diz atualmente, a teologia da escatologia, com a realização da parusia perfeita. Muito menos os “lugares inferiores” e as pessoas que, na linguagem bíblico-patrística, os habitavam, têm qualquer relação de semelhança com o Hades grego, o Sheol hebraico (e sua geena) ou os equivalentes egípcios, sumérios ou romanos. Se excetuarmos a proeza de Hércules (que terá conseguido as asas da elevação, embora sem a eivação aos outros mortais), quem desce ao reino dos mortos, ou nada consegue e de lá regressa com saudade de quem lá deixou, ou lá fica castigado e penando na companhia dos que já lá estavam.
Apesar da aludida falta de explicitação, foram aduzidas passagens do Novo Testamento, articuladas com algumas do Antigo Testamento, para ensinar que o Cristo morto teria descido aos infernos ou à mansão dos mortos antes da sua ascensão (e porque não entre a teofania da Cruz e a Aparição às mulheres e aos discípulos?). Assim:
“Foi [Jesus] pregar aos espíritos em prisão, os quais noutro tempo foram desobedientes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé...” (1 Pe 3,19-20); “Pois por isto foi o Evangelho pregado até aos mortos...” (1 Pe 4,6).
Mateus traça um comparativo entre o profeta Jonas, que foi engolido por um enorme peixe, e Cristo, que ficou três dias morto (cf Mt 12,40. Ora, se Cristo é comparado a Jonas, é pertinente advertir o seguinte: só depois de perfazer a sua volta instintiva, é que o peixe depositou Jonas na praia e o devolveu à terra. Assim também, Cristo só podia ter sido restituído à luz do dia após o cumprimento da sua tarefa “instintiva” (a do seu desígnio de total discrição com vista à eficácia redentora): trazer ao “hoje” da salvação aqueles e aquelas que em linguagem humana aguardavam ansiosamente a hora da redenção. A catábase de Cristo ao reino dos mortos é a excelente metáfora da garantia de que Ele foi constituído Senhor e Juiz dos Vivos e dos Mortos. E, tal como a Mãe do Vero Incarnado fora imune de qualquer modalidade de pecado e João Batista saltou de alegria no ventre materno graças à aos méritos do Redentor, num caso, e à Sua presença, no outro, também os justos o aguardavam no “céu” (os hebreus conheciam os céus inferiores, inferi, e os céus superiores, superi ou excelsi), graças à sua ação redentora. Pelo que a omissão do “descendit ad inferna” ou segmento similar não é facto de relevância. Relevante será: ter padecido, ter sido crucificado e ter morrido, ter sido sepultado, ressuscitar e subir aos céus. A descida à mansão dos mortos enriquece o símbolo, ao reconhecer o Cristo como Senhor e Redentor de todo o tempo (passado, presente e futuro) e de todo o lugar (lugares inferiores, terra à vista e alturas). Mas Ele não precisava de ir nem o Seu espírito aparecer realmente a outros espíritos. Como nada impede que o Corpo Glorioso se multiplique em deslocações, mercê da sua subtilidade.
Por seu turno, o livro dos Atos declara explicitamente que Cristo não poderia ser abandonado ao Hades e que a sua carne não veria a corrupção (cf Act 2,27.31). E Paulo, na carta aos Efésios, também sugere a catábase: “Por isso diz: quando ele subiu ao alto, levou cativo o cativeiro, deu dons aos homens. (Ora que quer dizer isto: Ele subiu, senão que também desceu aos lugares mais baixos da terra? Aquele que desceu é também o que subiu muito acima de todos os céus, para encher todas as coisas.)”. – Cf Ef 1, 8-10. 
Constituindo o segmento citado uma paráfrase truncada do Salmo 68 (18), com alteração do seu ponto de vista – “Subiste ao alto, levaste cativos os prisioneiros; recebeste dons dos homens, mesmo dos rebeldes, para Deus Javé habitar entre eles”, Frang Stagg identifica nele, em articulação como o texto da carta paulina, uma tríplice perspetiva a desembocar num mistério uno: o enterro de Jesus, a Sua descida às profundezas (ou aos infernos) e a Sua encarnação constroem um ato de profunda humildade (vd Fl 2, 5-11).
A referência de Zacarias a prisioneiros numa “cova que não há água” (cf Zc 9,11 ) tem sido apontada como um reflexo dos prisioneiros de YHWH  (Javé) frente a seus inimigos, no Salmo 68 (17-18).
Já Isaías alude a espíritos prisioneiros num relato que lembra o de Pedro quando espíritos o visitaram na prisão: “Naquele dia, Javé castigará o exército dos altos nas alturas, e os reis da terra sobre a terra. Serão ajuntados como presos na cova, serão encarcerados na prisão e, depois de muitos dias, serão visitados” (Is 24,21-22).

A doutrina
A descida de Jesus aos infernos, ensinada por teólogos na igreja antiga, aparece em diversos Padres da Igreja, como Melito de Sardes, Tertuliano, Hipólito, Orígenes e Ambrósio de Milão.
Uma antiga homilia sobre a descida aos infernos, de autor desconhecido, é assumida como 2.ª leitura do “ofício de leitura” no Sábado Santo, na Igreja Católica. 
O CIC – Catecismo da Igreja Católica (§636) afirma que, na expressão “Jesus desceu à mansão dos mortos”, o Símbolo confessa que Jesus morreu realmente, e que, por ter morrido por nós, venceu a morte e o Diabo “que tem o poder da morte” (Hbr 2,14).
Portanto, a palavra “infernos” é utilizada nas escrituras e no Credo para fazer significar a “mansão dos mortos”, sejam justos ou maus, até que possam ser admitidos no céu (vd CIC §633). Tal “mansão dos mortos” é o lugar inferior” aonde Jesus desceu. A Sua morte libertou da exclusão do céu os justos que morreram antes da sua vinda:
Foram precisamente essas almas santas, que esperavam o seu libertador no seio de Abraão, que Jesus Cristo libertou quando desceu à mansão dos mortos. Jesus não desceu à mansão dos mortos para de lá libertar os condenados, nem para abolir o inferno da condenação, mas para libertar os justos que O tinham precedido.
Embora seja possível a conceptualização da “mansão dos mortos” como um lugar, tal não se nos afigura como necessário (os próprios documentos da Igreja, como os catecismos, falam de um “estado ou lugar”). É, pois, defensável que Cristo não esteve na morada dos condenados, que é geralmente compreendido atualmente como sendo o “inferno” dos novíssimos. Por exemplo, Tomás de Aquino ensinava que Cristo não foi ao “inferno dos perdidos”, mas “os envergonhou por sua falta de fé e maldade”; fora, sim, aos que estavam presos no purgatório, aos quais deu esperança de obterem a glória; e sobre os santos padres detidos no “inferno”, ou seja, sem a visão beatífica de Deus, apenas por conta do pecado original, ele lançou a luz da glória eterna”.
Alguns sugerem que Cristo se limitou a descer ao “limbo dos profetas”, ao passo que outros, como Hans Urs von Balthasar (inspirado pelas visões de Adrienne von Speyr), defendem que foi mais do que isso e que a descida envolveu sofrimento da parte de Jesus.
Apesar de tanto João Paulo II como Bento XVI (este arredou do corpus da doutrina a teoria do limbo)  elogiarem a teologia de Balthasar, alguns teólogos não vislumbram uma posição doutrinária precisa do Magistério da Igreja sobre este ponto. Pelo que este é um tema no qual as diferenças e a especulação teológica são permissíveis sem ultrapassar os limites da ortodoxia.
Também Lutero, num sermão realizado em Torgau, em 1533, afirmou que Cristo desceu aos infernos: “Acreditamos simplesmente que a pessoa inteira, Deus e ser humano, desceu ao inferno após seu sepultamento, conquistou o diabo, destruiu o poder do inferno e tomou do diabo todo o seu poder” (vd Fórmula da Concórdia, art. XI). Para Lutero, a humilhação de Cristo não pode ser jamais completamente separada de sua glorificação vitoriosa.
E Calvino expressou a sua preocupação de que muitos cristãos “jamais consideraram seriamente o que é ou significa ter sido redimido do julgamento de Deus. Ainda assim, esta é nossa crença: obedientemente sentir o quanto a nossa salvação custou ao Filho de Deus”. A conclusão de Calvino foi que “a descida de Cristo ao inferno foi necessária para a redenção dos cristãos, pois Cristo de facto sofreu as consequências dos pecados que ele redimiu” (vd Center for Reformed Theology and Apologetics).

Concluindo
Sendo, pois, difícil dar uma resposta simplista à questão se “Jesus desceu ao inferno entre Sua morte e ressurreição”, há que ficar com o essencial da doutrina.
Foi a sua paixão e morte na Cruz por causa de nós e em nosso lugar que, de forma suficiente, promoveram a nossa redenção. Foi o seu sangue que, derramado por nós, validou o perdão dos pecados (I Jo 1,7-9). Suspenso na Cruz, Ele levou sobre Si o fardo do pecado de toda a raça humana. Ele fez-Se pecado por nós. Paulo o afirma categoricamente: “Àquele que não conheceu pecado, O fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Cor 5,21). O peso do pecado ajuda-nos a compreender o que passou Cristo no Jardim do Getsémani, a sua luta com o cálice de pecado que fez com que sobre Ele impendesse o ónus de derramar na cruz o seu sangue até à última gota para remissão dos pecados: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
Quando do alto da Cruz exclamou com grande voz: “Meu Deus, meus Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,36), é que se sentiu momentaneamente separado do Pai por causa do pecado sobre Si derramado. E verificando que “Tudo está consumado” (Jo 19,30), entregou o Seu espírito, bradando: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
Sua alma/ seu espírito foi à zona do Hades correspondente ao Paraíso: não ao inferno dos proscritos. Foi lá, ao menos metaforicamente, com o mesmo à vontade com que ascendit in caelos (subiu aos céus). Não em sofrimento porque o sofrimento de Jesus terminou no momento em que morreu. O pagamento pelo pecado estava feito. Ele então aguardou a ressurreição de Seu corpo e Seu retorno a sua glória, em Sua ascensão.
Atente-se nas preposições latinas: ad e in. Descendit ad inferna – Desceu aos (até junto dos) lugares lá de baixo. Mas ascendit in caelos – Subiu aos lugares superiores (subiu para dentro dos), o fim para o qual, por suas mãos, todos tendemos e nos encaminhamos. Em Português Europeu só não dizemos que “foi para os Céus”, porque Ele prometeu que há de voltar no fim dos tempos.
Finalmente, não resisto à recordação do segmento da homilia de Sábado Santo, acima referenciada, que transcrevi no passado dia 19 de abril:
Entrou o Senhor onde eles estavam, empunhando a arma gloriosa da cruz. Adão e Cristo trocaram a saudação da presença. E o senhor clamou: Desperta, tu que dormes, por que Eu não te criei para o cativeiro do reino dos mortos. Levanta-te, minha obra, minha imagem e semelhança. Por ti, teu Deus, me fiz teu filho (filho do homem). Adormeci na cruz e a lança penetrou no meu lado, que sarou a dor do teu lado.
Levanta-te, vamos daqui. O inimigo expulsou-te do paraíso terreal. Eu, porém, já não te coloco no paraíso terreal, mas no trono celeste. Foste afastado da árvore da vida, mas Eu, que sou a Vida, e que ordenei aos querubins que te vigiassem como servo, ordeno-lhes agora que te adorem como Deus, embora não sejas Deus.
Sim, por vontade divina, o homem é criatura sagrada, revestida da dignidade da pessoa humana, guardado ciosamente por Deus e seus anjos para o banquete do Reino que está preparado para nós desde o princípio do mundo, mas que tem de ser preparado e já vivido no hoje do século.


E essa preparação do banquete do Reino processa-se na constante descida aos infernos do arrependimento e permanente ânsia de ascensão à glória, por parte do homem, partícipe da vida divina.

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