Estava prevista para
ontem, dia 2 de abril, a assinatura, por parte do Papa Francisco, a assinatura
do decreto de canonização do beato José de Anchieta, nascido nas Canárias a 19 de
março de 1534, conhecido como Padre Anchieta, jesuíta missionário no Brasil,
onde faleceu, em Reritiba, a 9 de junho de 1597 – ato que foi adiado para hoje
dia 3, em audiência concedida ao Prefeito da Congregação das Causas dos Santos,
cardeal Ângelo Amato. Foram igualmente inscritos no catálogo dos santos e estabelecido,
no âmbito da Igreja Universal, o culto litúrgico em sua honra: a beata Maria da
Encarnação (com o nome civil e de batismo de Maria Guyart), fundadora do Mosteiro das Ursulinas na cidade de Quebeque,
no Canadá, onde faleceu a 30 de abril de 1732, tendo nascido em Tours (França),
a 28 de outubro de 1599; e o beato Francisco de Laval, que foi bispo de
Quebeque, no Canadá, onde faleceu a 6 de maio de 1708, tendo nascido em Montigny-sur-Avre (França) a 20 de abril de 1623.
Segundo a agência católica Zenit-o
mundo visto de Roma, o Papa explicou que estes três “novos santos se
apresentavam como modelos de evangelização”.
Ora, este ato canonizatório reveste
um modus faciendi diferente daquele a
que estamos habituados – usualmente na sequência do decreto que reconhece estarem
verificados os requisitos exigidos para a canonização é organizada uma celebração
solene, presidida pelo Bispo de Roma, em que urbi et Orbi ele declara com a sua autoridade apostólica inscrever
no catálogo dos santos e estabelecer o dia da sua memória litúrgica os beatos
que o competente dicastério propôs, após os trâmites processuais determinados
pelo Direito. Não é inédito o facto de o Sumo Pontífice dispensar de prazos e
da exigência de verificação do milagre ou milagres atinente ou atinentes ao
processo respetivo.
No caso vertente, à semelhança do que
o Papa Francisco já fez para com outro beato, o jesuíta Pedro Fabro, a 12 de
dezembro de 2013, o ato é denominado pelos canonistas por “canonização
equipolente”, uma vez que equivale (tem o mesmo valor) ao processo normal para
declarar que determinada pessoa falecida se encontra junto de Deus, no céu,
intercedendo pelos que ainda vivem na terra. Segundo a aludida agência
católica, para a “canonização equipolente” são necessários três requisitos:
prova do culto antigo ao candidato a santo, atestado histórico incontestável da
fé católica e das virtudes eminentes do candidato e a fama ininterrupta de
milagres intermediados pelo candidato.
É um
processo instituído no século XVIII por Bento XIV, através do qual o Papa
“vincula a Igreja como um todo para que observe a veneração de um Servo de Deus
ainda não canonizado pela inserção de sua festividade no calendário litúrgico
da Igreja universal, com Missa e Ofício Divino”.
Como se
pode ler no Osservatore Romano, de 12
de maio de 2012, neste ato pontifício – escreve Fabijan Veraja no seu livro Le cause di canonizzazione dei santi
(Libreria Editrice Vaticana, 1992) – Bento XIV identificou os elementos de uma
canonização verdadeira, isto é de uma sentença definitiva do Papa sobre a
santidade do servo de Deus. Porém, tal sentença não é expressa com a fórmula de
canonização habitual, mas através de um decreto obrigante a Igreja inteira à
veneração daquele servo de Deus com o culto reservado aos santos canonizados.
Muitos exemplos desta
forma de canonização remontam, como foi referido, ao pontificado de Bento XIV,
como os santos: Romualdo (canonizado 439 anos depois da sua morte), Norberto,
Bruno, Pedro Nolasco, Raimundo Nonato, João da Mata, Félix de Valois, a rainha
Margarida da Escócia, o rei Estêvão da Hungria, o duque Venceslau da Boémia e o
Papa Gregório VII.
Sendo óbvio que não me cabe ajuizar da
santidade de ninguém, devo, por princípio fazer fé (o atual papa parece gostar
de dizer “botar fé”, expressão em voga no Brasil, que foi bem do Português
europeu) na seriedade dos processos que levam à declaração do cristão ou da
cristã como possuindo um nível de santidade de vida que sirva, de algum modo,
de exemplo, modelo e desafio aos outros crentes (é disto mesmo que se trata e
não de dizer que os outros não estejam no céu: para todos os outros que
adormeceram em Cristo, temos a solenidade de Todos os Santos a 1 de novembro de
cada ano). Também sei que aqueles que foram designados como apóstolos, em
especial Pedro e Paulo, merecem um relevo especial no culto público, assim como
José, esposo de Maria, João Batista e os demais santos mártires.
Mas há uma coisa que não entendo. Se
há uma igualdade de base na vivência da santidade, ao nível da excelência, e se
a canonização equipolente é uma verdadeira canonização, a que se se chega com o
mesmo grau de cuidado, porque não planear também um ato solene de declaração da
inscrição no catálogo dos santos urbi et
orbi, em virtude da autoridade apostólica do Pontífice e sob presidência
sua ou de alto dignitário em que ele delegue.
Um dicionário de latim (parece que
ainda é a língua oficial da Igreja Latina) é capaz de me ajudar a sustentar
esta perplexidade. O verbo pollere
significa “ser forte”, “ser poderoso”, “ter muito poder”; “ser superior”, “sobressair”;
“estar em voga”, “reinar”, “ter muito valor”; “ter energia”, “ter virtude”, “ser
eficaz”. Os dicionaristas referem o seu caráter arcaico e têm este verbo como
sinónimo do verbo posse (poder). “Polente”
vem do particípio presente pollens,
pollentis, que pode significar “que tem valor”, “que sobressai”, “que é
eficaz” – aceções elegíveis em contextos como este. Temos atrelado a este particípio
presente um adjetivo aequus, aequa,aequum
(igual, justo, equitativo, que tem o mesmo valor, propício, amigo…), que
deu a palavra composta aequipollens,entis,
que significa “de igual valor”, “de igual poder”, “de igual eficácia”, “de igual
relevo”.
Sendo assim, ou é ou não é. Se a
canonização com dispensa de alguns formalismos, mas com a observância de
requisitos equivalentes aos da modalidade usual, tem o mesmo valor que esta, deve
desembocar num texto legislativo semelhante e numa celebração pública
semelhante. Não é despiciendo o carisma e a simpatia de determinadas figuras da
Igreja como João XXIII ou João Paulo II, que plausivelmente mobilizam e arregimentam
milhares e milhares de fiéis, turistas e curiosos para uma megacelebração. No
entanto, o modus faciendi essencial deveria
revestir as mesmas caraterísticas. Não são os teólogos de hoje que afirmam que
todos temos importância similar (da mesma semente, da mesma natureza) em razão
do Batismo, porque incorporados no mesmo corpo de Cristo (embora uns tenham mais
visibilidade que outros, mas igual valor), no mesmo povo de Deus (embora nem
todos ocupem o centro da estrada, já que tem de haver os “guias”, mas todos vão
nela), no rebanho das mesmas ovelhas (embora diferentes em “força”, tamanho e
idade, mas todas são ovelhas ou cordeiros ou carneiros) ou serviçais da mesma
Igreja em saída, do mesmo “hospital de campanha” (como diz Francisco) em
socorro da humanidade ferida?
Não é uma missa de ação de graças a que
o Papa presida a posteriori, ou os
bispos do Canadá ou os do Brasil que estabelece a equidade legislativa e
celebrativa. Ou somos todos iguais na Terra e diferentes no Céu?
Já não basta termos a maior parte dos
santos/santas padres e bispos, frades ou freiras e um ou outro “simples” leigo
ou “simples” leiga como flores raras deste magno jardim do Reino dos Céus. Ou quereremos,
à moda empresarial ou estatal criar uma carreira de santidade com categorias
diferentes (carreiras verticais e/ou horizontais) e em cada categoria diversos
níveis com o correspondente índice remuneratório?
Eu sei que isto não é o essencial;
que o que importa é a santidade e que todos são chamados à santidade – rezava-o
José Maria Escrivá e escreveram-no com todas as letras os padres conciliares.
Mas também todos somos chamados à liberdade (e como tal temos direito à palavra)
e é de atender ao aforismo “lex orandi lex credendi”. E, como “orare” tanto
significa rezar como discursar, estabelecer e decretar eu redijo “lex orandi et
decernendi lex credendi”.
Sem comentários:
Enviar um comentário