O Ministro da
Administração Interna, no seu discurso da tomada de posse do tenente-general
Manuel Mateus Costa da Silva Couto como comandante-geral da Guarda Nacional
Republicana (GNR), a 21 de abril, afirmou que um país seguro é importante para
todos, mas o é sobretudo “para os mais desprotegidos e para os que se encontram
em situação de maior vulnerabilidade”. E, nesta perspetiva, acentua a segurança
como fator e condição de coesão social.
É óbvio que
os discursos políticos de circunstância abordam os conteúdos que mais quadram e
agradam aos titulares dos cargos públicos. No entanto, não deixa de ser curioso
como uma garantia fundamental imposta constitucionalmente ao Estado no quadro
dos princípios de igualdade e universalidade é discursivamente utilizada para
diferenciar os diversos estratos da sociedade, no caso: os mais desprotegidos,
os mais vulneráveis e, quiçá, os outros.
Ora, sem
segurança de pessoas e bens, garantida a todos como preceitua a CRP (art.º
27.º), não é possível o gozo cabal das liberdades.
O discurso
ministerial é proferido num momento peculiar em que se sabe que o país assiste
à insegurança generalizada que assolou o norte do distrito de Viseu e o Alto
Douro. Têm medo de que o homem regresse para voltar a matar. Efetivamente, um
homem que estava detido em casa com pulseira eletrónica, no passado dia 17,
cortou a pulseira, saiu de sua casa, foi a casa da ex-esposa, baleou quatro
pessoas, das quais duas morreram de imediato e outras duas ficaram gravemente
feridas. Depois, fugiu e ainda anda a monte, pelos vistos. A caça ao homem
prossegue. Entretanto, a Comunicação Social noticiou (a meu ver, mal: tal facto
deveria ficar para momento ulterior a eventual captura do foragido) que o
casamento de dois nubentes, celebrado no santuário de Santa Eufémia, em
Penedono, na véspera do Domingo de Páscoa, foi objeto de proteção policial por
parte da GNR e da Polícia Judiciária, porque, tendo os nubentes deposto
judicialmente contra o foragido, no âmbito de situações graves de violência
doméstica, se sentiam ameaçados por eventualmente constarem da lista de uma
dúzia de pessoas a abater por parte do “corajoso” fugitivo.
Numa situação
de medo coletivo, pergunta-se: “Que segurança?”, “Que liberdade?”.
O conceito de
liberdade não é unívoco. Por isso, os documentos constitucionais dos países que
apresentam, como bandeira política, a do Estado de Direito Democrático preferem
a expressão “direitos, liberdades e garantias”. A nossa CRP (Constituição da
República Portuguesa) dedica ao tema o “Título II”, como três capítulos:
direitos, liberdades e garantias pessoais (cap. I); direitos, liberdades e
garantias de participação política (cap. II); e direitos, liberdades e
garantias dos trabalhadores (cap. III). E, num “Título III”, consagra os
“direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, um capítulo para cada um
(económicos, cap. I; sociais, cap. II; e culturais, cap. III).
No atinente
aos direitos pessoais, são expressamente enunciados: o direito à vida; o
direito à integridade pessoal (física e moral); o direito de constituir família
e de contrair casamento; o direito de deslocação e de emigração; o direito de
reunião e de manifestação; e outros, como o direito à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome
e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e
familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. Os
artigos em que se referem estes direitos enunciam as garantias do seu exercício
e tipificam as eventuais exceções atinentes aos direitos incluídos na epígrafe “outros
direitos pessoais” (art.º 26.º).
O mesmo se
diga das liberdades que são enunciadas: liberdade de expressão e informação
(sem qualquer tipo de censura); liberdade de imprensa e de comunicação social
(com garantia de respeito pela sua independência perante os poderes político e
económico), a que estão associados os direitos de antena, de resposta e de
réplica política; liberdade de consciência, de religião e de culto; liberdade
de criação cultural; liberdade de ensinar e de aprender; liberdade de escolha
de profissão e de acesso à função pública (assim enunciada na epígrafe do art.º
47.º, mas definida como direitos no corpo do artigo em dois números).
Esta é a
teoria: estarão aqui os 55 artigos que o Bispo Emérito de Setúbal crê serem “evangelho
puro”? Mas, se dermos uma volta pelo país das práticas quanto não estará por fazer!
O próprio Chefe do Governo teve o dislate de achar que os desempregados possam
questionar o que é que a Constituição fez por eles.
Ora, não
sendo objeto deste arrazoado a análise dos restantes direitos liberdades e
garantias dos capítulos II e III do “Título II” e os do “Título III”, importa
referir que a sua importância advém-lhes da sua índole de concretização do
exercício pleno (ainda que nem sempre consensual) dos direitos fundamentais
como os direito à vida, à integridade, à cidadania e ao desenvolvimento da
personalidade, nos diversos contextos da vida em sociedade.
Passemos então
a uma breve análise do direito à liberdade e à segurança (CRP, art.º27.º).
Trata-se de direitos distintos, mas tão umbilicalmente conexos que as
constituições liberais os formulam em conjunto.
O direito à
liberdade (que não a liberdade definida em geral) configura várias liberdades,
que certas correntes políticas designam como “liberdades democráticas” ou ainda
“as mais amplas liberdades”. As liberdades básicas são a liberdade física e a
liberdade de movimentos, o que implica que ninguém pode ser detido, preso ou
fisicamente circunscrito a um determinado espaço ou, por outras palavras,
impedido de se movimentar. Este direito fundamental inclui os seguintes
direitos satélites: o de não poder ser detido ou preso pelas autoridades
públicas, exceto nos casos expressamente previstos no art.º 27.º; o de não
poder ser aprisionado ou fisicamente impedido de se movimentar ou constrangido
por parte de outrem; o de ser protegido pelo Estado contra os atentados de
outrem à própria liberdade.
Os preceitos
constitucionais preveem meios específicos de garantia do direito à liberdade
face ao poder do Estado, tantas vezes exercido de forma excessiva: o direito à indemnização por detenção ou prisão inconstitucional ou ilegal (art.º 27.º/5.), em nome de
lei mal entendida ou de má avaliação das circunstâncias; e o habeas corpus contra o abuso de poder,
por virtude de prisão ou detenção ilegal (art.º 31.º). No plano externo à
relação cidadão / Estado, a lei ordinária deve tipificar os crimes contra a
liberdade das pessoas e assegurar a punição adequada. Assim, segundo o nosso
Código Penal, a violação do exercício do direito à liberdade pessoal
consubstancia os crimes de ameaça, coação, coação grave, sequestro, escravidão,
rapto e tomada de reféns (vd CP, art.º 153.º ss).
Por seu
turno, o direito à segurança postula como requisito essencial a garantia do
exercício tranquilo dos direitos sem o espectro de ameaças e agressões. Todos
os textos constitucionais produzidos em Portugal desde o advento do Liberalismo
(1822) consagram a segurança pessoal como a proteção que o Estado deve prestar
a todos os cidadãos para poderem exercer livremente e sem peias os seus
direitos pessoais. Neste sentido, a segurança constitui mais a garantia dos
direitos do que um direito autónomo. O articulado do texto constitucional deixa
entrever duas perspetivas desta garantia: a negativa, constituindo um direito
subjetivo à segurança, inerente ao direito à liberdade, que consiste no direito
de defesa perante as agressões dos poderes públicos, qualquer que seja o titular
ou o patamar de poder; e a positiva, que se traduz no direito à proteção dos
poderes públicos contra as agressões ou ameaças de outrem. Quanto à primeira, o
texto constitucional prevê um conjunto de cautelas expressamente estabelecidas,
como as condições excecionais da privação da liberdade (art.º 27.º/3.),
incluindo o direito imediato à informação (art.º 27.º/4.), a existência de
mandato judicial (art.º 27.º/2.), o caráter transitório da privação da
liberdade (art.º 28.º), a indemnização em caso de abuso (art.º 27.º/5.), a
aplicação de lei criminal anterior ao facto punível (art.º 29.º), o habeas corpus (art.º 31.º), os limites
das penas e das medidas de segurança (art.º 30.º), as garantias processuais
(art.º 32.º) e a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (art.º
34.º). No atinente à segunda, o nosso Código Penal, tipifica os crimes, como se
referiu anteriormente, sendo pertinente que se faça justiça, seguramente,
muitas vezes não acontece.
Ora, o caso
concreto acima referido é só mais um no quadro quase caótico das circunstâncias
que rodeiam a administração da justiça: lentidão, excesso de garantismo, a
noção que o cidadão tem de que há uma diferença de justiça para pobres e/ou
desprotegidos e para ricos e/ou poderosos, avaliação incorreta e/ou
insuficiente das condições de saída precária, saída precoce, prisão
domiciliária, recurso à pulseira eletrónica, condições de reincidência no
crime, decisão não acautelada de proibição de contacto com as vítimas… O que
significa que uma justiça não ministrada ou mal administrada – quando estão em
causa crimes que violam a segurança física das pessoas e a sua integridade física
ou moral (praticar bullying, assediar,
pagar para dar tareia, matar…) ou quando estão a em causa crimes contra o
património a que normalmente estão associados crimes contra as pessoas (assalto
à mão armada, catching automóvel…) –
acrescenta novas circunstâncias de insegurança e mesmo de medo, por vezes
coletivo, às circunstâncias normais de obrigação de vigilância pela segurança
de pessoas e bens.
Assim, quando
o Ministro da Administração Interna refere discursivamente uma segurança para
todos, mas sobretudo “para os mais desprotegidos e para os que se encontram em
situação de maior vulnerabilidade”, esquece-se de que a Constituição impõe ao
Estado a proteção da liberdade e da segurança a todos: “Todos têm
direito à liberdade e à segurança” (CRP, art.º 27.º/1.).
Admite-se
que haja proteção especial para cidadãos que dela necessitem em razão dos
cargos que ocupam ou das circunstâncias em que estão colocados. Tal é o caso
das altas figuras do Estado que gozam de proteção especial que se deseja
proporcionada e não mais (não se pode confundir proteção com prestação de
honras, que também têm o seu lugar nas condições definidas no protocolo do
Estado, mas que não devem ser assimiladas a obrigações de proteção), ou o caso
das feiras e romarias, dos jogos de futebol de alta competição e situações
similares.
De resto,
não vale a pena um governante vir a público afirmar que “a segurança é
também, nesta dimensão, fator e condição de coesão social”, já que não é essa a
sua função. Era o que faltava que esta obrigação tutelar do Estado viesse a
configurar uma obra de misericórdia mais do que uma missão de alto
profissionalismo para a qual é necessária a convocação dos meios necessários e
adequados.
Nem tem
interesse lançar afirmações como a de que “apesar da dureza da crise, a
criminalidade foi contida, a ideia de segurança nunca alastrou pela sociedade e
os portugueses respiraram sempre, no essencial, uma atmosfera de tranquilidade
e normalidade”. Não vale a pena tentar tranquilizar a população com a redução
da criminalidade geral ou da criminalidade violenta e grave. Primeiro, porque
todos sabemos qual a diferença existente entre os atos de crime praticados e os
efetivamente apresentados às entidades policiais e judiciais, ou porque as
vítimas e as testemunhas de visu temem
represálias (veja-se a situação dos nubentes de Penedono, referidos) ou porque,
quando no processo de crime, para ele poder avançar, se exige a constituição de
advogado (nem sempre a necessidade de apoio jurídico reconhecida equivale à sua
necessidade real), ou ainda porque determinadas situações objetivas de
criminalidade são encobertas na inimputabilidade por menoridade ou por
desarranjos psíquicos. Aí, descuramos a necessidade de defender a sociedade da
periculosidade dos delinquentes inimputáveis!
Porém, uma
outra razão deveria levar o Senhor Ministro a conter-se: é que a missão de
garantir liberdade e segurança aos cidadãos não se compadece com o “sobe e
desce” ou com o movimento de acordeão do crescendo
ou do diminuendo da crise (meio forte,
forte, muito forte muitíssimo forte) e do aumento e diminuição minimizantes das
diversas dimensões da criminalidade.
No entanto,
devo concordar com o tenente-general Mateus Couto, que assumiu a responsabilidade de
dirigir uma força de mais de 23 mil homens e que é responsável por cerca de 94%
do território nacional, prometendo encarar as limitações e “aproveitar os
recursos existentes, sem beliscar a operacionalidade”. Tais palavras revelam a
prestação de uma declaração de humildade democrática e de atitude determinada,
embora cautelosa, sem o encanto do protagonista que tem a veleidade de tudo
resolver por si.
As missões do Estado não
podem ser medidas pelas estatísticas nem pelos estados de alma dos governantes.
Liberdade e segurança são parte essencial dos direitos, liberdades e garantias
sobre os quais o Estado deve, mais do que entoar aleluias e hossanas, esmerar-se
pelo zelo em prol dos cidadãos.
Mesmo os cidadãos de
maiores recursos não devem ter de pagar a sua segurança e integridade física.
Devem é ser convocados a investir mais noutras valências de interesse social.
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