Ressuscitou como disse, Aleluia!
Se conhecesses o dom de Deus…
Na tarde daquele primeiro dia da
semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam
refugiados com medo dos judeus, Jesus veio colocar-se no meio deles e
disse-lhes: “A paz esteja convosco”
(Jo 20,19).
Com efeito, o grão
introduzido no ventre da terra inerte aquando
da sementeira a que procederam os semeadores desolados e esperançosos – João, o
discípulo amado; Maria, mãe de Jesus; as mulheres, discípulas persistentes em
volta da mãe de Jesus; e José de Arimateia, o discípulo oculto – rebentou a
crosta da mesma terra em frutos típicos da Páscoa. E o primeiro dos frutos é a
“paz”, não a paz podre do mundo, que
periga a cada hora que passa, nem a paz morta do túmulo para onde Pôncio Pilatos
remetera Aquele que se afirmara “Rei”, Filho do Altíssimo e Mártir da Verdade,
mas aquela paz com que Jesus saudou os discípulos, agora seus amigos, porque,
não obstante o medo inicial de quem fica desolado como o sino sem badalo, farão
tudo quanto lhes mandou.
Porém a Páscoa não
acontece para sossego ou preguiça dos conformados com a situação de indignidade
humana. Se, como clama com toda a razão o Bispo do Porto, “o futuro pertence a
quem ama e não a quem apenas pensa em si” (vd homilia da Páscoa 2014, do Bispo do Porto), temos de procurar outro fruto da Páscoa. Ele vem explícito
no Evangelho de João: “Assim como o pai me enviou, também eu vos envio a vós”
(Jo 20,20). Aqui temos exatamente um dos frutos da Páscoa, o dinamismo
apostólico: é preciso ir a todo o lado ensinar o Evangelho, para que o futuro
deixe de ser o da indiferença e do egoísmo e passe a ser o do amor, do amor que
se doa a quem dele mais necessita.
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O apostolado não era possível sem a
inculcação da consciência certa da Ressurreição no coração dos apóstolos. Mas
para isso era necessário erradicar do colégio apostólico o medo e a desolação.
E outro fruto da Páscoa se divisa: “Mostrou-lhes as mãos e o lado, e os
discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor” (Jo 20,20). Já sem a
tristeza, já sem o medo, implantou-se-lhes no ânimo um outro fruto da Páscoa: a
alegria. E esta alegria não é a pincha-no-crivo
do mundo, mas a alegria profética, resultante da Palavra de Deus devidamente
explicada, assumida, vivida e que urge partilhar: “Não ardia cá dentro o nosso
coração quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras? E partiram
de imediato de regresso a Jerusalém e encontraram reunidos os Onze” (Lc
24,32-33, episódio dos discípulos de Emaús).
É essa alegria
sincera e difusiva, qual semente de apostolado que leva a uma celebração pascal
com o ázimo da pureza e da verdade, pondo totalmente no lixo das velharias o fermento
velho e da malícia (cf 1Cor 5,8). Cá estão mais dois frutos pascais: a pureza, à semelhança do Cristo inocente
levado como ovelha ao matadouro, mas cujo balido doravante se ouvirá em todo o
mundo; e a verdade, em testemunho da
qual Cristo veio aos seus e os seus não O quiseram receber, mas os que são da
verdade escutam voz do Mestre (cf Jo 1,11.17;18,37).
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Entretanto, “Jesus
soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o
Espírito Santo” (Jo 20,22). Não haja, pois, dúvidas de que o primeiro dom
da Páscoa é o próprio Espírito Santo,
o Espírito Criador, o mesmo que pairava sobre as águas (cf Gn 1,2), aquele que
o Senhor insuflou nas narinas do boneco de terra (cf Gn 2,7) e de que fizera o
homem, aquele mesmo que o Filho prometera aos discípulos (“O Espírito Santo,
que o Pai vai enviar em meu nome, é que vos ensinará tudo e vos recordará tudo
o que Eu vos disse” – Jo 14,26). Este Espírito Criador que falou pelos profetas
é o Senhor que dá a vida, o que procede do Pai e do Filho, o que é adorado e
glorificado (vd símbolo
niceno-constantinoplitano). Como na anterior Criação estava o Verbo (“por
Ele todas as coisas foram feitas” – id et
ib), nesta Nova Criação tinha de estar o Verbo feito Carne (cf Jo 1,3),
“soprou sobre eles”.
E veja-se como a lex orandi lex credendi condensou numa
pequena formulação a riqueza indizível do Espírito Santo como a fonte e
repositório de todos os dons divinos. A Liturgia do Sacramento da Confirmação
faz com que o ministro do Sacramento diga pessoalmente a cada confirmando “Recebe por este sinal, o
Espírito Santo, o Dom de Deus”. É então o Espírito Santo Deus, o Deus que efetivamente
se doa, o Deus representado no sinal da cruz. Com efeito, “a cruz do Condenado
converte-se em árvore florida da Páscoa” (vd homilia da Páscoa 2014, do Bispo
do Porto). Mas esta árvore não é de mero adorno; revela a sua fecundidade nos
frutos; e pelos seus frutos conheceremos esta árvore (cf Mt 12,33). E o fruto é
pleno. Dizemos que os frutos do Espírito Santo, a quem chamamos o Sagrado
Septenário, são sete, e discriminamos: sabedoria, entendimento, conselho,
ciência, piedade e temor de Deus. Mas não podemos esquecer que “sete” é o
número da plenitude ou da totalidade. Nesses sete dons teremos de ver todos os
dons de Deus (cuja infinitude e misericórdia não podemos reduzir ao palavreado),
ou o próprio Deus que Se nos dá, em forma visível, como Cristo, Verbo
Incarnado; ou em forma invisível (episodicamente em forma de pomba ou em
línguas de fogo), como Espírito Santo; ou ainda como Origem intangível de quem
deriva toda a criatividade e paternidade, como Pai. Tanto assim é que aplicamos
o número sete a outras formas de totalidade para mal ou para bem. De Maria Madalena
tinham sido expulsos sete demónios (todo o espírito do mal – cf. Lc 8,2; Mc
16,9); os pecados capitais (os que dão azo aos outros) são sete – soberba,
avareza, luxúria, ira, gula, inveja, preguiça (ou seja, tudo o que atrai o
homem para o mal). E aos sete pecados capitais também opomos sete virtudes,
respetivamente – humildade, castidade, paciência, temperança, caridade e
diligência (que significam tudo o que pode colocar o homem no caminho do bem).
E enunciamos os sete sacramentos da Igreja: Batismo, Confirmação, Eucaristia,
Reconciliação ou Penitência, Santa Unção, Ordem e Matrimónio (os canais de
comunicação da graça santificante por si mesmos, independentemente da santidade
de quem os ministre, ex opere operato
e não ex opere operantis). Enumeramos sete dons do Espírito Santo, como foi já referido. Dispõe a doutrina católica
de sete obras de misericórdia corporais (dar de comer a quem tem fome, dar de
beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos
enfermos, visitar os presos e sepultar os mortos) e sete obras de misericórdia
espirituais (dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram,
consolar os aflitos, perdoar as injúrias, sofrer com
paciência as fraquezas do nosso próximo e rogar a Deus por vivos e defuntos)
– sintetizando de algum modo tudo o que somos “obrigados” a fazer em prol do
semelhante. E elencamos as virtudes fundamentais em sete: Fé, Esperança e
Caridade (virtudes teologais, porque nos fazem girar em torno de Deus e, por
Ele, em torno do próximo) e Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança
(virtudes cardeais ou humanas, porque as outras boas qualidades humanas giram
em torno destas e estas colocam-nos, pelas boas obras, na rota de Deus).
É conveniente não olvidar que os
mestres de Teologia Sacramental ensinavam que não só cada uma das virtudes
teologais era infundida por Deus no coração (alma) do homem a quando do
Batismo, mas também cada uma das virtudes cardeais. Quer dizer, o dom de Deus
não pode encurralar-se em qualquer catálogo de virtudes, por mais completo que
se ostente. O dom de Deus é dom de Deus e pronto!
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Ora, perante as dimensões de
plenitude do mal, para que Deus nos livre dele, e do bem para que sejamos cada
vez mais Homens a sério, com vida e vida em abundância, vem-me ao espírito a
palavra de Ovídio, poeta latino, que entendia que aquilo que distingue o homem
dos outros animais era a capacidade de andar de pé e de olhar para a frente.
Porém, a Páscoa far-nos-á levantar da prostração da ignorância, do erro e do
pecado (e da morte) para a verticalidade do homem sábio, probo e santo; do
imóvel e enterrado no passado para o que olha para a frente e para o futuro; do
agarrado ao pó da terra para o que olha para o alto, mesmo que tenha de manter
os pés na terra.
Por isso, Paulo recomenda aos
Colossenses:
Se ressuscitastes
com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo se encontra sentado à
direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas que são lá de cima, e não às que são cá
da terra; porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em
Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, Se manifestar, então também vós vos
manifestareis com Ele em glória. (Col 3,1-4).
Que pena haver tanta gente, que se
diz filha da Páscoa e se detém especada a olhar para trás sempre com o sentido
do passado, não do passado que ensina o presente para iluminação do futuro, mas
do passado bafiento e imobilista! Que pena tanta gente que se diz discípula da
Páscoa e se entretém demasiado a olhar para os pés e não se dá ao cuidado de
olhar par o alto e a ele se afeiçoar! Tantos visitantes do túmulo vazio se
comprazem, saudosos das cebolas podres do Egito, a inventar fantasmas de um
Cristo ainda hoje sepultado algures ou de um Cristo eventualmente casado clandestinamente
com Maria Madalena (de quem ela gerara uma filha) ou, ainda, de um Cristo
revolucionário utilizável como bandeira de quem nela queira pegar para fins de
caráter político ou permanente filantrópico!
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Não obstante a importância do que
fica escrito, não posso deixar de mencionar o que se me afigura de interesse central
na frutificação pascal. O evangelista quando refere o sopro de Jesus sobre os
apóstolos e lhes comunica o Espírito Santo, assinala o mandato especial ao
abrigo da força do Espírito: “Àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão
perdoados; e àqueles a quem os retiverdes, eles serão retidos” (Jo 20,23). O perdão dos pecados é o fruto final da
Páscoa. Foi para isto que Ele veio. É que sem perdão dos pecados não é possível
ter vida e vida em abundância (cf Jo 10,10). Era o facto de Ele declaradamente perdoar
os pecados que mais irritava os zeladores da Lei. Mas Ele teimava em perdoar “também
eu não te condeno, vai em paz e não voltes a pecar” (cf Jo 8,11); “a esta muito
se perdoou porque muito amou” (cf Lc 7,47); e “pois, para que saibais que o Filho do Homem tem poder
sobre a terra de perdoar os pecados, disse ele então ao paralítico: levanta-te, toma o teu
leito, e vai para a tua casa” (Mt 9,6).
Ressoa
no dia de Páscoa o pedido lancinante de Cristo na Cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem” (cf Lc 23,34), sem o qual não seria possível a Páscoa Plena, e o qual seria inútil se
não fora o ato da Ressurreição.
Veja-se
qual é o fulcro da resposta de Pedro à multidão que, impressionada pelo
discurso intrépido do apóstolo, já cheio da força do Espírito Santo do Pentecostes,
que irrompeu no Cenáculo: “Arrependei-vos, e batize-se cada um de vós em nome
de Jesus Cristo, em ordem à remissão dos seus pecados; e recebereis o dom do
Espírito Santo” (Act 2,38). E o tema perpassa o discurso do mesmo apóstolo no
discurso em casa de Cornélio, que alarga ao mundo não judeu o desígnio da
salvação: “Ele mandou-nos pregar ao povo e atestar que Ele foi constituído por
Deus juiz dos vivos e dos mortos. É dele que todos os profetas dão este
testemunho: quem quer que nele acredite, recebe pelo Seu nome, a remissão dos pecados
(Act 10,42-43).
Ora todos
aceitam que a Igreja não será Igreja se deixar de ser a comunidade do perdão,
já que o pecado impede a comunhão com Deus e prejudica a “comunhão dos santos”
(vd símbolo dos apóstolos). Mas não
sei ao longo da História se terá entendido bem essa de os pecados “serem
retidos”. Poderá efetivamente o perdão dos pecados ser recusado, como uso de poder
ou como castigo de estilo de vida? Não deverá, antes, o “mediador” humano (porque
o verdadeiro mediador é único, o Cristo) agendar convictamente a não desistência
de recuperar o pecador que se mostre impenitente? Em vez de juiz sobre o pecado,
deverá preferencialmente fazer-se promotor de arrependimento, mesmo que tenha
havido reincidência (“Perdoar não até sete vezes, mas cada um perdoar a cada um
setenta vezes sete”). O próprio Cristo no caminho do Calvário terá caído por
três vezes. É fraqueza humana e a dinâmica do Evangelho do Reino que o postulam:
Se o irmão te ofender, reprende-o a sós; se não te ouvir, repreende-o diante de
testemunhas; se não vos ouvir, comunica-o à Igreja; e se ela também não for
ouvida, considera-o como um pagão ou um publicano (cf Mt 18,15-17). Aqui está o
busílis. Considerar o irmão como publicano
ou estrangeiro não pode significar desprezo ou mandá-lo para o inferno, mas colocá-lo
como tema prioritário na agenda da recuperação. É este o furor dos santos!
É preciso
que os homens e mulheres da Páscoa deixem, de vez, de agitar o lixo dos óbices
à Páscoa e os seres apegados à mundanidade deixem de chafurdar na lama do vício
e de escavar a exploração do homem pelo homem. E talvez a Igreja dos homens tenha
de abandonar o estilo de se entreter com excomunhões, impedimentos e denegação
de perdões e encarrilar pelo desígnio de Deus. É preciso que a Páscoa
se cumpra pela paz, com alegria, pureza e verdade, pela missão
apostólica criadora que, na força do Espírito Santo, consiga o perdão de todos os
pecados de todos.
Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados
do mundo…
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