segunda-feira, 7 de abril de 2014

O pecado do Papa

O Papa cometeu um pecado hoje, hoje mesmo, um pecado grave, consciente e voluntário: chamou ladrões aos cariocas e reforçou a acusação. Acusou-os de um roubo e agradeceu-lho. E parece que os cariocas gostaram.
Na minha terra, ensinavam-me que nem toda a verdade se deveria dizer. Hoje aposta-se no “politicamente correto” e não se diz tudo ou diz-se de forma larvada. Eles não roubam; gerem mal ou aproveitam-se. Eles não mentem; dizem “inverdades” ou têm uma relação difícil com a verdade. Eles não metem cunhas; utilizam o capital de relação de que dispõem. Eles não dão explicações a alunos seus; tiram dificuldades ou gerem centos de estudos. Eles não batem; tocam nas pessoas. Eles não se portam mal; não cumprem regras.
Mas o Papa disse a verdade. Ninguém gosta de ouvir verdade má e eles gostaram. Todos abjuram o roubo e o Papa agradeceu-o. Francisco é assim. E se fosse Bento XVI?
E o Papa é “Santo Padre”, “Santíssimo Padre”, “Beatíssimo Padre”, “Sua Santidade”. Então como é que peca publicamente e se compraz no pecado?
Ora bem, pense-se no provérbio “Muita parra, pouca uva”. E é disso que se trata (claro, em termos de pecado, que não em termos de doutrina). 
Hoje mesmo, 7 de abril, o Papa Francisco, na audiência concedida aos membros do Comité Organizador da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, no Brasil, no ano transato, proferiu um simpático discurso em que diz sentir “uma alegria especial acolhendo hoje este grupo, guiado pelo cardeal Dom Orani Tempesta, que representa todos os que de alguma forma colaboraram na XXVIII Jornada Mundial da Juventude, tornando possível que o amor de Deus tocasse – literalmente – no coração de milhões de pessoas”.
E é em jeito de confidência que o Papa chama “ladrões” aos brasileiros, aos “cariocas”, marcando a sua atitude papal contrastante entre a inicial de humildade e de cautela prudente no início da jornada e a eufórica, no términus. Quem não se lembra do gigantesco flash Mob com que terminou a celebração final com o Papa? São estas, sem tirar nem pôr, as suas palavras de hoje:
Falando de coração, tenho uma confidência a fazer-lhes: Quando cheguei ao Brasil, no meu primeiro discurso oficial, disse que queria ingressar pelo portal do imenso coração dos brasileiros pedindo licença para bater delicadamente à sua porta e passar a semana com o povo brasileiro. Porém, ao término daquela semana, voltando para Roma, cheio de saudades, dei-me conta de que os cariocas são uns ‘ladrões’! Sim, ‘ladrões’, pois roubaram o meu coração! Aproveito a presença de vocês aqui hoje para agradecer-lhes por este "roubo": Muito obrigado por terem me contagiado com o entusiasmo de vocês lá no Rio de Janeiro, e por hoje me ajudarem ‘matar’ as saudades do Brasil.

Afinal, belo insulto, belo roubo e belo agradecimento! Santo Agostinho, esse, sim, um pecador confesso e, pelos vistos, com fortes motivos para isso, perante este discurso papal exclamaria: O felix culpa (ob furtum), quae talem ac tantam meruit habere iniuriam et optimam gratiarum actionem!” (Ó feliz culpa de furto que mereceu ter tal e tão grande insulto e o mais lídimo agradecimento).
E o Catequista dos catequistas sente-se contagiado pela catequese entusiástica do povo brasileiro, dos jovens do mundo e daqueles que lançaram, acompanharam e avaliaram a iniciativa. Porém, não perde a oportunidade de advertir que “as horas de trabalho, os sacrifícios, até mesmo os desentendimentos passageiros são pouca coisa quando comparada com a grandiosidade da ação de Deus sobre os nossos pobres recursos humanos”.
E a confissão da pobreza dos recursos humanos não nos dispensa de disponibilizar ao serviço de todos o pouco que temos, pois, poderemos com maior legitimidade esperar que Deus multiplique sempre os nossos esforços, o que Ele fará. Ensina Francisco que:
É a dinâmica da multiplicação dos pães. Quando Jesus pediu aos apóstolos que dessem de comer à multidão, estes sabiam que isso era impossível. Porém, foram generosos. Deram ao Senhor tudo aquilo que tinham. E Jesus multiplicou os seus esforços. Não foi assim que aconteceu com a Jornada Mundial da Juventude?
E quer o Papa que “este milagre vivido na Jornada da Juventude” se repita “todos os dias, em cada paróquia, em cada comunidade, no apostolado pessoal de cada um!”. Assegura, mesmo, citando a sua primeira exortação apostólica, por assim dizer, programática do seu pontificado, que “não podemos ficar tranquilos sabendo que há ainda ‘tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida’ (Evangelii Gaudium,45).
Por isso, Francisco recorda a trilogia apostólica que tanto querida lhe é e que, em seu entender, constitui, em certo sentido, o âmago de toda a mensagem da Jornada Mundial da Juventude: ide, sem medo, para servir. Isto, porque “devemos ser uma ‘Igreja em saída’ (cf. ibid., 20), como discípulos missionários que não têm medo das dificuldades, pois já vimos que o Senhor multiplica os nossos esforços e, por isso, estamos sempre mais motivados em servir, doando-nos sem reservas, cheios da alegria do Evangelho”.
E termina apontando o exemplo e as palavras do recém-canonizado São José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil, que, numa de suas cartas bem jesuíticas, escreveu: «Nada é difícil para aqueles que acalentam no coração e têm como fim único a glória de Deus e a salvação das almas, pelas quais não hesitam em dar a sua vida» (Carta ao Padre Tiago Laynez).
Cá está: um papa com uma liberdade de linguagem que lhe sai do coração, do coração que aprende o entusiasmo, a vida; e ensina a disponibilidade, a misericórdia, o exemplo e a doutrina – dos fortes em Deus.

Mas cautela, não vá o diabo tecê-las: se chamarmos “ladrões” a indivíduos nossos semelhantes e os acusarmos de roubo, que seja nas condições e no contexto do Papa e, se necessário e possível, com o revestimento da sotaina branca com as dimensões das de Francisco.

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