“Rosto
de Cristo, Rosto do Homem” é o tema da Via Sacra de 2014, a que Francisco preside
no Coliseu de Roma, em Sexta-feira Santa. Rica é esta expressão que sintetiza,
em poucas palavras, o mistério da Incarnação do Verbo de Deus, que em Cristo
assume as fraquezas do homem para que, redimido por Cristo, o homem nunca deixe
de ser homem e seja cada vez mais homem.
Somente no mistério
do Verbo incarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem (GS 22).
A Via
Dolorosa do Redentor de há dois mil anos, na sua dimensão cronológica, passou à
História. Já em si mesma seria um testemunho eloquente da condenação do Inocente,
só porque, ao passar pelo mundo fazendo o bem, se afirmou Filho de Deus,
perdoou pecados e fez curas ao sábado. Fez sombra ao poder religioso, porque
colocava em causa as exterioridades vazias e a hipocrisia opressora minudente,
não tenho percebido os fariseus e sacerdotes que Ele vinha, com nova
autoridade, dar pleno e libertador cumprimento à Lei e aos Profetas.
Apresentaram-no como ameaça ao poder político porque pregava um reino, não
tendo dado conta os seus detratores de que esse reino não era deste mundo e o
seu poder era de serviço à vida e à vida em abundância. Aclamado pelas
multidões, pelos pobres, pelos doentes, pelas crianças (de quem será o Reino dos Céus); reconhecido pelos estrangeiros;
acolhedor de pecadores e solícito pelas ovelhas tresmalhadas; integrador de
mulheres no grupo dos discípulos, com espanto de tantos; escolhendo para
apóstolos pecadores, pescadores, perseguidores, indiferenciados, zelotes – foi
condenado como malfeitor, preterido em lugar de outro, esse, sim, salteador e
assassino (Barrabás), e crucificado (suplício oferecido pelos romanos a escravos,
gente não cidadã), na companhia de dois ladrões, um blasfemo, outro por Ele
integrado no Reino à última da hora.
A
multidão que O aclamara, exigiu a sua crucifixão. E Pôncio Pilatos, que detinha
o poder de decidir, julgou-o inocente, mas, sem tentar perceber o que é a
verdade para cujo testemunho Jesus viera ao mundo, com medo da multidão e dos
rumores que pudessem chegar a César, entregou-o para a crucifixão, não sem
antes ter lavado as mãos em sinal de alijamento de responsabilidades.
No caminho
do Calvário, quem o seguiu não foram os apóstolos. Esses fugiram (um deles
traíra-o e entrou em desespero; outro negara-o e, embora tenha chorado
amargamente a traição, não teve a ousadia de comparecer). Só um o seguiu,
aquele que Jesus amava. Mas a mãe de Jesus e as mulheres do grupo aguentaram
todo o peso da dor e da solidariedade para com Ele e sua mãe. O centurião
romano também esteve por dever de ofício. E a morte de Cristo e as
circunstâncias que a rodearam, levaram-no a confessar que Este era justo, o
Filho de Deus.
Este
rosto, sofrente dos tormentos, da chacota, da blasfémia e do abandono, este
rosto reconhecido da ajuda de Simão de Cirene, da persistência de um dos
discípulos (João Evangelista), do amor de mãe, da solidariedade feminina
(espelhada no gesto da Verónica, atestado pela tradição, e na persistência das
companheiras da mãe e também discípulas) e da admiração de fé do estrangeiro –
este rosto persiste nos nossos dias não somente como histórico, mas como
lancinantemente existencial e interpelante.
Dirão
que ninguém se atreve hoje a condenar Jesus, muito menos a crucificá-lo. Pois
bem. Mas ridicularizam-no ou apropriam-se dele, insultam-no e recusam a sua
pessoa e a sua mensagem, aceitam de cabeça o seu legado, mas não de coração,
desistindo ou abjurando ao primeiro embate. Mas a palavra de Cristo em Mateus (25,31-46)
mantém-se atual e Cristo está sofrendo e esperando nos novos famintos,
sedentos, peregrinos, nus, doentes e presos. A posição de indecisão, injustiça,
abandono, negação, traição e violência continuam a marcar o século, assim como
o amor, a solidariedade, a ternura, a justiça, a determinação, a coragem e a
fidelidade.
Bem
avisado esteve o Papa Francisco quando, em Domingo de Ramos, nos levou a
interrogarmo-nos com que personagem da Paixão cada um de nós se identifica.
Porém, o inquérito
orante e a proposta de solidariedade na linha dos novos explorados estão
vertidos nos textos da Via Sacra do próximo dia 18, Sexta-feira da Paixão do
Senhor, que temos de seguir com profundo respeito e ardente devoção; e não com
o barulho indecoroso da de há 2000 anos. Os textos foram preparados por D. Giancarlo Maria Bregantini, arcebispo
de Campobasso-Boiano.
Vem, a seguir, uma síntese
e ordenamento, segundo o meu ângulo de visão.
Jesus condenado à morte – o dedo em riste que acusa
“Pilatos amedrontado,
não atento à verdade, o dedo em riste que acusa e o clamor crescente da
multidão furiosa são os primeiros passos do morrer de Jesus”, inocente.
Pilatos, com este caso embaraçoso, abandona-O à multidão, lavando as mãos,
apegado ao poder: entrega-O à crucifixão. Não querendo mais saber d’Ele, dá o
caso por encerrado: Roma locuta,
causa finita.
Esta
condenação apressada condensa as acusações fáceis, os juízos superficiais
entre o povo, as insinuações e os preconceitos que, fechando o coração, criam
a cultura racista, excludente e de descarte, juntamente com as cobardes cartas
anónimas e calúnias horríveis. Acusados, são
logo atirados para a primeira página; declarados inocentes, acabam na última!
Saberão hoje
os cristãos ter a consciência reta, responsável e transparente, que não volte costas
ao inocente, mas se empenhe corajosamente na defesa dos fracos, resistindo à
injustiça e defendendo a verdade?
Jesus carregado com a
Cruz – o
madeiro pesado da crise
O madeiro de
Cristo pesa-lhe, porque carrega os pecados de todos nós. Cambaleia sob aquele
peso, grande demais para um homem. Carrega outrossim o peso de todas as
injustiças que originaram a crise económica, de “graves consequências sociais:
precariedade, desemprego, demissões, dinheiro que governa em vez de servir,
especulação financeira, suicídios de empresários, corrupção e usura, juntamente
com empresas que deixam os países”. É a pesada cruz do mundo do trabalho, da
injustiça colocada sobre os trabalhadores – que Jesus toma nos ombros, ensinando-nos
a viver, não mais na injustiça, mas capazes de criar pontes de solidariedade e
esperança.
Voltando-nos o Pastor e Guarda
das nossas almas, lutaremos “juntos pelo trabalho na reciprocidade, vencendo o
medo e o isolamento, recuperando a estima pela política e procurando juntos a
saída para os problemas”.
Jesus cai por três vezes
– A
fragilidade que abre ao acolhimento; a
angústia da prisão e da tortura; vencer a má nostalgia
Na queda,
cedendo ao peso e à fadiga, Jesus faz-Se Mestre de vida, ensinando a
aceitação das fragilidades, a não desanimar com os fracassos, a reconhecer
lealmente as nossas limitações e potencialidades. E com a força interior,
que Lhe vem do Pai, ajuda-nos a acolher as fragilidades dos outros; a não investir
contra quem está caído; a não ficar indiferente ante os que caem; a não fechar a
porta a quem nos bate à porta, pedindo asilo, dignidade e pátria. “Cientes
da nossa fragilidade, acolheremos no nosso meio a fragilidade dos imigrantes,
para que encontrem apoio e esperança”.
Na queda de
Jesus, reconhecemos a
amarga experiência dos encarcerados das prisões, com todas as desumanas
contradições. A prisão é demasiado distante, esquecida, repudiada pela sociedade.
Existem as absurdidades da burocracia, a lentidão da justiça e da superlotação:
é o sofrimento agravado, a opressão injusta, que consome carne e ossos. E,
quando um irmão nosso sai, ainda o consideramos o ‘ex-preso’, fechando-lhe a
porta do resgate social e laboral.
Mais grave, porém, é a prática da
tortura, ainda espalhada em várias partes da terra e sob variadas formas – tal
como sucedeu com Jesus: açoitado, chacoteado pela soldadesca, flagelado
cruelmente, torturado com a coroa de espinhos.
A contemplação de Jesus,
caído mas capaz de levantar-Se, ajudará a saber vencer os isolamentos que o
medo do amanhã imprime nos corações, sobretudo em tempo de crise; a superar a
má nostalgia do passado, a comodidade do imobilismo. O Jesus que cambaleia e
cai, mas depois Se levanta, é a certeza da esperança, que, nutrida pela oração,
nasce da provação e não após a provação nem sem ela.
As mulheres na via doloris de Jesus – a Mãe, a
Verónica, as mulheres de Jerusalém
- As lágrimas solidárias; a
ternura feminina; a partilha e não comiseração
Maria, de olhar
solidário, exprime a força invencível do amor materno, que supera todo o
obstáculo e sabe abrir qualquer estrada.
Em suas
lágrimas, reúnem-se as lágrimas de cada mãe pelos filhos distantes,
pelos jovens condenados à morte, trucidados, enviados para a guerra,
especialmente as crianças-soldado, ou que morrem por causa dos tumores
produzidos pela incineração dos resíduos tóxicos; e sentem-se as lágrimas
amaríssimas das “mães de vigia na noite, com as lâmpadas acesas, temendo pelos
jovens vítimas da precariedade ou engolidos pela droga e pelo álcool,
especialmente nas noites de sábado”.
Perante a Verónica,
Cristo encarna “nossa necessidade de amorosa gratuitidade, de nos sentirmos
amados e protegidos por gestos de carinho e cuidado”. As carícias desta
criatura, banhadas pelo sangue precioso de Jesus, parecem cancelar os atos
de profanação que Ele recebeu naquelas horas de tortura; conseguem tocar Jesus,
roçar sua candura, não só para aliviar, mas também para participar no seu
sofrimento.
Em Jesus, reconheceremos
todo o próximo que temos de consolar com um toque de ternura, devendo chegar
aos gemidos de dor de quantos, não recebendo assistência nem calor de compaixão,
morrem de solidão.
As mulheres
Jerusalém, exemplo de fidelidade e coragem, não se deixam intimidar
pelos guardas nem escandalizar pelas chagas do Mestre. Tendo-o olhado de longe,
aproximam-se d’Ele como faz todo o amigo, irmão ou irmã, quando se apercebe da
dificuldade que vive a pessoa amada. Jesus, sensível às lágrimas, exorta-as a
não consumirem o coração, a não serem mulheres lacrimantes, mas crentes e
penitentes por si e seus filhos! Pede a dor compartilhada e não a comiseração
estéril e lacrimosa. “Não mais lamentações, mas vontade de renascer, olhar em
frente, avançar com fé e esperança para aquela aurora de luz que surgirá
ainda mais deslumbrante sobre a cabeça de quantos caminham rumo a Deus”.
E o senhor
visitará o seu choro quando se sentirem sozinhas e abrir-lhes-á o coração à partilha
de cada dor, com sinceridade e fidelidade, tornando-as instrumento e
testemunhas de libertação.
Chorando sobre
nós, choremos pelos homens que descarregam sobre as mulheres a violência que
têm dentro; pelas mulheres escravizadas pelo medo e exploração, que devem,
antes, ser tranquilizadas como Cristo fez e devem ser amadas como um dom
inviolável para toda a humanidade, para o crescimento dos filhos,
em dignidade e esperança.
O cireneu ajuda Jesus a
levar a Cruz – a mão amiga que levanta
Voltava do
campo este “homem de fadiga e de vigor”, o pai de dois cristãos mais tarde conhecidos
na comunidade romana: Alexandre e Rufo. Embora forçado a levar a cruz de
Jesus, aquele encontro casual transformar-se-á num decisivo e vital seguimento
de Jesus, carregando diariamente a sua cruz, renegando-se a si mesmo. Além
disso, mostra-nos que a vida, se a guardamos demasiado para nós, se torna
bafienta e árida; mas, oferecida, floresce e frutifica em espiga de trigo para nós
e para toda a comunidade.
Gestos como o
do cireneu constituem a verdadeira cura do egoísmo, sempre à espreita. A
relação com os outros gera a fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver
a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que
sabe suportar as moléstias da vida, agarrando-se ao amor de Deus. Abrindo
o coração a este amor, somos impelidos à procura da felicidade dos outros
nas variadas formas de voluntariado: uma noite no hospital, um empréstimo sem
juro, uma lágrima enxugada em família, a gratuitidade sincera, o compromisso
clarividente do bem comum, a partilha do pão e do trabalho, vencendo toda e
qualquer forma de ciúme e de inveja.
Jesus pregado na Cruz – no leito dos doentes
Jesus não abandona a cruz. Permanece obedecendo à
vontade do Pai, amando e perdoando. Como Ele, muitos irmãos e irmãs estão cravados
no leito de sofrimento, no hospital, no lar de terceira idade, na família – em
tempo de provação, de dias amargos de solidão e até desespero.
Nunca se levante a nossa mão para trespassar,
mas para aproximar, consolar e acompanhar o doente, levantando-o do leito de
dor, pois, a doença, que chega sempre inesperada, às vezes transtorna, limita
horizontes, põe em dura prova a esperança. Porém, se encontrarmos junto a nós
alguém que nos ouça, esteja ao nosso lado, se sente no nosso leito..., a doença
pode tornar-se grande escola de sabedoria, encontro com o Deus Paciente, à luz
pascal de Cristo crucificado e ressuscitado.
Jesus despojado das
vestes – a
unidade e a dignidade
Desnudaram-no
em ato de extrema humilhação, só o cobrindo o sangue, que borbotava das
inúmeras feridas. Porém, fica intacta a túnica, símbolo da unidade da Igreja, unidade
que se reencontrará em caminho paciente, em paz artesanal, construída
diariamente, num tecido composto com os fios de ouro da fraternidade, na
reconciliação e no perdão.
Em Jesus
inocente, desnudado e torturado, reconhecemos a dignidade violada de todos os inocentes,
sobretudo dos humildes. Deus não impediu que o seu corpo nu fosse exposto na
cruz. Fê-lo para resgatar todo o abuso, injustamente coberto, e mostrar que
Deus está do lado das vítimas irrevogavelmente e sem meios termos.
***
Fixemo-nos em duas linhas essenciais:
que, efetivamente, Jesus “devia morrer para congregar os filhos de Deus que estavam
dispersos” (Jo 11,52); e sempre que fizermos isto a um dos irmãos mais pequeninos de
Cristo a Ele o faremos (cf
Mt 25,40), ou sempre que
deixarmos de fazer isto a um dos
irmãos mais pequeninos de Cristo a Ele o deixaremos de fazer (cf Mt 25,45).
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