quarta-feira, 16 de abril de 2014

Rosto de Cristo, Rosto do Homem

“Rosto de Cristo, Rosto do Homem” é o tema da Via Sacra de 2014, a que Francisco preside no Coliseu de Roma, em Sexta-feira Santa. Rica é esta expressão que sintetiza, em poucas palavras, o mistério da Incarnação do Verbo de Deus, que em Cristo assume as fraquezas do homem para que, redimido por Cristo, o homem nunca deixe de ser homem e seja cada vez mais homem.
Somente no mistério do Verbo incarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem (GS 22).
A Via Dolorosa do Redentor de há dois mil anos, na sua dimensão cronológica, passou à História. Já em si mesma seria um testemunho eloquente da condenação do Inocente, só porque, ao passar pelo mundo fazendo o bem, se afirmou Filho de Deus, perdoou pecados e fez curas ao sábado. Fez sombra ao poder religioso, porque colocava em causa as exterioridades vazias e a hipocrisia opressora minudente, não tenho percebido os fariseus e sacerdotes que Ele vinha, com nova autoridade, dar pleno e libertador cumprimento à Lei e aos Profetas. Apresentaram-no como ameaça ao poder político porque pregava um reino, não tendo dado conta os seus detratores de que esse reino não era deste mundo e o seu poder era de serviço à vida e à vida em abundância. Aclamado pelas multidões, pelos pobres, pelos doentes, pelas crianças (de quem será o Reino dos Céus); reconhecido pelos estrangeiros; acolhedor de pecadores e solícito pelas ovelhas tresmalhadas; integrador de mulheres no grupo dos discípulos, com espanto de tantos; escolhendo para apóstolos pecadores, pescadores, perseguidores, indiferenciados, zelotes – foi condenado como malfeitor, preterido em lugar de outro, esse, sim, salteador e assassino (Barrabás), e crucificado (suplício oferecido pelos romanos a escravos, gente não cidadã), na companhia de dois ladrões, um blasfemo, outro por Ele integrado no Reino à última da hora.
A multidão que O aclamara, exigiu a sua crucifixão. E Pôncio Pilatos, que detinha o poder de decidir, julgou-o inocente, mas, sem tentar perceber o que é a verdade para cujo testemunho Jesus viera ao mundo, com medo da multidão e dos rumores que pudessem chegar a César, entregou-o para a crucifixão, não sem antes ter lavado as mãos em sinal de alijamento de responsabilidades.
No caminho do Calvário, quem o seguiu não foram os apóstolos. Esses fugiram (um deles traíra-o e entrou em desespero; outro negara-o e, embora tenha chorado amargamente a traição, não teve a ousadia de comparecer). Só um o seguiu, aquele que Jesus amava. Mas a mãe de Jesus e as mulheres do grupo aguentaram todo o peso da dor e da solidariedade para com Ele e sua mãe. O centurião romano também esteve por dever de ofício. E a morte de Cristo e as circunstâncias que a rodearam, levaram-no a confessar que Este era justo, o Filho de Deus.
Este rosto, sofrente dos tormentos, da chacota, da blasfémia e do abandono, este rosto reconhecido da ajuda de Simão de Cirene, da persistência de um dos discípulos (João Evangelista), do amor de mãe, da solidariedade feminina (espelhada no gesto da Verónica, atestado pela tradição, e na persistência das companheiras da mãe e também discípulas) e da admiração de fé do estrangeiro – este rosto persiste nos nossos dias não somente como histórico, mas como lancinantemente existencial e interpelante.
Dirão que ninguém se atreve hoje a condenar Jesus, muito menos a crucificá-lo. Pois bem. Mas ridicularizam-no ou apropriam-se dele, insultam-no e recusam a sua pessoa e a sua mensagem, aceitam de cabeça o seu legado, mas não de coração, desistindo ou abjurando ao primeiro embate. Mas a palavra de Cristo em Mateus (25,31-46) mantém-se atual e Cristo está sofrendo e esperando nos novos famintos, sedentos, peregrinos, nus, doentes e presos. A posição de indecisão, injustiça, abandono, negação, traição e violência continuam a marcar o século, assim como o amor, a solidariedade, a ternura, a justiça, a determinação, a coragem e a fidelidade.
Bem avisado esteve o Papa Francisco quando, em Domingo de Ramos, nos levou a interrogarmo-nos com que personagem da Paixão cada um de nós se identifica.
Porém, o inquérito orante e a proposta de solidariedade na linha dos novos explorados estão vertidos nos textos da Via Sacra do próximo dia 18, Sexta-feira da Paixão do Senhor, que temos de seguir com profundo respeito e ardente devoção; e não com o barulho indecoroso da de há 2000 anos. Os textos foram preparados por D. Giancarlo Maria Bregantini, arcebispo de Campobasso-Boiano.
Vem, a seguir, uma síntese e ordenamento, segundo o meu ângulo de visão.


Jesus condenado à morte – o dedo em riste que acusa

“Pilatos amedrontado, não atento à verdade, o dedo em riste que acusa e o clamor crescente da multidão furiosa são os primeiros passos do morrer de Jesus”, inocente. Pilatos, com este caso embaraçoso, abandona-O à multidão, lavando as mãos, apegado ao poder: entrega-O à crucifixão. Não querendo mais saber d’Ele, dá o caso por encerrado: Roma locuta, causa finita.
Esta condenação apressada condensa as acusações fáceis, os juízos superficiais entre o povo, as insinuações e os preconceitos que, fechando o coração, criam a cultura racista, excludente e de descarte, juntamente com as cobardes cartas anónimas e calúnias horríveis. Acusados, são logo atirados para a primeira página; declarados inocentes, acabam na última!
Saberão hoje os cristãos ter a consciência reta, responsável e transparente, que não volte costas ao inocente, mas se empenhe corajosamente na defesa dos fracos, resistindo à injustiça e defendendo a verdade?

Jesus carregado com a Cruz – o madeiro pesado da crise

O madeiro de Cristo pesa-lhe, porque carrega os pecados de todos nós. Cambaleia sob aquele peso, grande demais para um homem. Carrega outrossim o peso de todas as injustiças que originaram a crise económica, de “graves consequências sociais: precariedade, desemprego, demissões, dinheiro que governa em vez de servir, especulação financeira, suicídios de empresários, corrupção e usura, juntamente com empresas que deixam os países”. É a pesada cruz do mundo do trabalho, da injustiça colocada sobre os trabalhadores – que Jesus toma nos ombros, ensinando-nos a viver, não mais na injustiça, mas capazes de criar pontes de solidariedade e esperança.
Voltando-nos o Pastor e Guarda das nossas almas, lutaremos “juntos pelo trabalho na reciprocidade, vencendo o medo e o isolamento, recuperando a estima pela política e procurando juntos a saída para os problemas”.

Jesus cai por três vezes
– A fragilidade que abre ao acolhimento; a angústia da prisão e da tortura; vencer a má nostalgia

Na queda, cedendo ao peso e à fadiga, Jesus faz-Se Mestre de vida, ensinando a aceitação das fragilidades, a não desanimar com os fracassos, a reconhecer lealmente as nossas limitações e potencialidades. E com a força interior, que Lhe vem do Pai, ajuda-nos a acolher as fragilidades dos outros; a não investir contra quem está caído; a não ficar indiferente ante os que caem; a não fechar a porta a quem nos bate à porta, pedindo asilo, dignidade e pátria. “Cientes da nossa fragilidade, acolheremos no nosso meio a fragilidade dos imigrantes, para que encontrem apoio e esperança”.
Na queda de Jesus, reconhecemos a amarga experiência dos encarcerados das prisões, com todas as desumanas contradições. A prisão é demasiado distante, esquecida, repudiada pela sociedade. Existem as absurdidades da burocracia, a lentidão da justiça e da superlotação: é o sofrimento agravado, a opressão injusta, que consome carne e ossos. E, quando um irmão nosso sai, ainda o consideramos o ‘ex-preso’, fechando-lhe a porta do resgate social e laboral.
Mais grave, porém, é a prática da tortura, ainda espalhada em várias partes da terra e sob variadas formas – tal como sucedeu com Jesus: açoitado, chacoteado pela soldadesca, flagelado cruelmente, torturado com a coroa de espinhos.
A contemplação de Jesus, caído mas capaz de levantar-Se, ajudará a saber vencer os isolamentos que o medo do amanhã imprime nos corações, sobretudo em tempo de crise; a superar a má nostalgia do passado, a comodidade do imobilismo. O Jesus que cambaleia e cai, mas depois Se levanta, é a certeza da esperança, que, nutrida pela oração, nasce da provação e não após a provação nem sem ela.

As mulheres na via doloris de Jesus – a Mãe, a Verónica, as mulheres de Jerusalém
- As lágrimas solidárias; a ternura feminina; a partilha e não comiseração

Maria, de olhar solidário, exprime a força invencível do amor materno, que supera todo o obstáculo e sabe abrir qualquer estrada.
Em suas lágrimas, reúnem-se as lágrimas de cada mãe pelos filhos distantes, pelos jovens condenados à morte, trucidados, enviados para a guerra, especialmente as crianças-soldado, ou que morrem por causa dos tumores produzidos pela incineração dos resíduos tóxicos; e sentem-se as lágrimas amaríssimas das “mães de vigia na noite, com as lâmpadas acesas, temendo pelos jovens vítimas da precariedade ou engolidos pela droga e pelo álcool, especialmente nas noites de sábado”.

Perante a Verónica, Cristo encarna “nossa necessidade de amorosa gratuitidade, de nos sentirmos amados e protegidos por gestos de carinho e cuidado”. As carícias desta criatura, banhadas pelo sangue precioso de Jesus, parecem cancelar os atos de profanação que Ele recebeu naquelas horas de tortura; conseguem tocar Jesus, roçar sua candura, não só para aliviar, mas também para participar no seu sofrimento.
Em Jesus, reconheceremos todo o próximo que temos de consolar com um toque de ternura, devendo chegar aos gemidos de dor de quantos, não recebendo assistência nem calor de compaixão, morrem de solidão.

As mulheres Jerusalém, exemplo de fidelidade e coragem, não se deixam intimidar pelos guardas nem escandalizar pelas chagas do Mestre. Tendo-o olhado de longe, aproximam-se d’Ele como faz todo o amigo, irmão ou irmã, quando se apercebe da dificuldade que vive a pessoa amada. Jesus, sensível às lágrimas, exorta-as a não consumirem o coração, a não serem mulheres lacrimantes, mas crentes e penitentes por si e seus filhos! Pede a dor compartilhada e não a comiseração estéril e lacrimosa. “Não mais lamentações, mas vontade de renascer, olhar em frente, avançar com fé e esperança para aquela aurora de luz que surgirá ainda mais deslumbrante sobre a cabeça de quantos caminham rumo a Deus”.  
E o senhor visitará o seu choro quando se sentirem sozinhas e abrir-lhes-á o coração à partilha de cada dor, com sinceridade e fidelidade, tornando-as instrumento e testemunhas de libertação.
Chorando sobre nós, choremos pelos homens que descarregam sobre as mulheres a violência que têm dentro; pelas mulheres escravizadas pelo medo e exploração, que devem, antes, ser tranquilizadas como Cristo fez e devem ser amadas como um dom inviolável para toda a humanidade, para o crescimento dos filhos, em dignidade e esperança.


O cireneu ajuda Jesus a levar a Cruz – a mão amiga que levanta

Voltava do campo este “homem de fadiga e de vigor”, o pai de dois cristãos mais tarde conhecidos na comunidade romana: Alexandre e Rufo. Embora forçado a levar a cruz de Jesus, aquele encontro casual transformar-se-á num decisivo e vital seguimento de Jesus, carregando diariamente a sua cruz, renegando-se a si mesmo. Além disso, mostra-nos que a vida, se a guardamos demasiado para nós, se torna bafienta e árida; mas, oferecida, floresce e frutifica em espiga de trigo para nós e para toda a comunidade.
Gestos como o do cireneu constituem a verdadeira cura do egoísmo, sempre à espreita. A relação com os outros gera a fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que sabe suportar as moléstias da vida, agarrando-se ao amor de Deus. Abrindo o coração a este amor, somos impelidos à procura da felicidade dos outros nas variadas formas de voluntariado: uma noite no hospital, um empréstimo sem juro, uma lágrima enxugada em família, a gratuitidade sincera, o compromisso clarividente do bem comum, a partilha do pão e do trabalho, vencendo toda e qualquer forma de ciúme e de inveja.


Jesus pregado na Cruz – no leito dos doentes

Jesus não abandona a cruz. Permanece obedecendo à vontade do Pai, amando e perdoando. Como Ele, muitos irmãos e irmãs estão cravados no leito de sofrimento, no hospital, no lar de terceira idade, na família – em tempo de provação, de dias amargos de solidão e até desespero.
Nunca se levante a nossa mão para trespassar, mas para aproximar, consolar e acompanhar o doente, levantando-o do leito de dor, pois, a doença, que chega sempre inesperada, às vezes transtorna, limita horizontes, põe em dura prova a esperança. Porém, se encontrarmos junto a nós alguém que nos ouça, esteja ao nosso lado, se sente no nosso leito..., a doença pode tornar-se grande escola de sabedoria, encontro com o Deus Paciente, à luz pascal de Cristo crucificado e ressuscitado.


Jesus despojado das vestes – a unidade e a dignidade


Desnudaram-no em ato de extrema humilhação, só o cobrindo o sangue, que borbotava das inúmeras feridas. Porém, fica intacta a túnica, símbolo da unidade da Igreja, unidade que se reencontrará em caminho paciente, em paz artesanal, construída diariamente, num tecido composto com os fios de ouro da fraternidade, na reconciliação e no perdão.
Em Jesus inocente, desnudado e torturado, reconhecemos a dignidade violada de todos os inocentes, sobretudo dos humildes. Deus não impediu que o seu corpo nu fosse exposto na cruz. Fê-lo para resgatar todo o abuso, injustamente coberto, e mostrar que Deus está do lado das vítimas irrevogavelmente e sem meios termos.
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Fixemo-nos em duas linhas essenciais: que, efetivamente, Jesus “devia morrer para congregar os filhos de Deus que estavam dispersos” (Jo 11,52); e sempre que fizermos isto a um dos irmãos mais pequeninos de Cristo a Ele o faremos (cf Mt 25,40), ou sempre que deixarmos de fazer isto a um dos irmãos mais pequeninos de Cristo a Ele o deixaremos de fazer (cf Mt 25,45).

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