A “ignoratio elenchi” e a corrutela dos aforismos
Já sabíamos que a tradição popular,
mesmo que mascarada de erudita, desgasta e até desfigura as ideias, as
sentenças, os factos, os aforismos.
Por exemplo, é fácil dizer
“frederico” por “frigorífico”, “bejeca” por “cervejeca”, “dentrífico” por
“dentífrico”; confundir “cumprimento” e “comprimento”, “percursor” e
“precursor”, “perfeito” e “prefeito”. É compreensível que gente do povo
confunda “vinde sem demora” com “vinde a cem à hora” e “alma ardente de fé e
amor” com “água ardente de pé e andor”.
Temos o imaginário popular a
construir falsas etimologias como “Britiande”, de “brite e ande”, da lenda do
caminhante que viu um ouriço no chão e o companheiro lhe terá pedido “brite e
ande” para não chegarem atrasados ao destino – facto de que terá derivado o
topónimo; ou como aquelas em “Odivelas”, de “ide vê-las”, “Lumiar”, de “a alumiar”
e “Queluz”, de “que luz”.
Quanto a estas, a lenda
refere que Isabel de Aragão se apercebera de que o marido, Dom Dinis, saía à
noite para encontro amoroso com alguma das freiras de uma dada localidade.
Então, com as suas damas de honor, saíra uma vez ao seu encontro com luminárias
e terá exclamado “ide vê-las”, que nós ficamos “a alumiar”. E os que viram de
longe o clarão das luminárias terão bradado “que luz!”.
A história das línguas testemunha
muitos fenómenos de alteração fonética (adição, supressão e permuta), como
alterações semânticas e transferências lexicais, bem como inúmeros casos de
adaptação de palavras e expressões ao linguajar do povo, dono da língua, mas
não especial guardião da sua formatação em termos lógicos.
É useiro e vezeiro o alerta para a
corrutela de provérbios havidos como dotados de marcas de vetustade. Seguem
alguns com a dupla versão: a usual (corrutela); e a originária (genuína).
Atira-se ao ar: “Quem
não tem cão caça com gato”. Ninguém vai à caça com um gato. Porém sendo necessário
caçar, mesmo sem cão, se enunciara “quem não tem cão caça como um gato”,
ou seja, sozinho, quando se está de boa maré, mas sobretudo em lugar
estratégico com muita atenção à presa que eventualmente surja, para que se possa
apanhá-la surpreendentemente.
Exclama-se com
impaciência: “O garoto não para quieto, parece que tem bicho(s) carpinteiro(s)”. Ora, bicho da madeira não é, certamente, que
o miúdo não é de pau; caruncho também não, que o “puto” ainda não é senil; nem
os carpinteiros têm bicho especial. Por isso, diga-se “o garoto não
para quieto, parece que tem bichos no corpo inteiro”, já que está
irrequieto, a mexer com todo o corpo e por tudo quanto é sítio (hoje fala-se de
hiperatividade, em vez de irrequietude ou mesmo má educação).
Com ares de
filosofia estribada na experiência agrícola lá sai o ditado: “Batatinha quando
nasce, esparrama pelo chão”. Esparrama o quê?! Diga-se, antes, porque fará
sentido “batatinha quando nasce, espalha a rama pelo chão”, pois, se a
batata é um tubérculo
subterrâneo, quando surge à face da terra, tende a espalhar a rama pelo chão,
como a aboboreira ou a cabaceira, e não a empiná-la, como acontece com arbustos
e árvores ou com a cebola e a cenoura.
Quando se tem dúvida
sobre a designação da coloração de um objeto, de acordo com a rosa das cores,
costuma dizer-se que é da “cor de burro a fugir” ou “cor de burro quando foge”.
Como será essa cor? Mudará de cor o burro ao fugir? Diga-se então, em jeito de
conselho, “corre de burro a fugir” ou “corre de burro quando foge”,
porque, ao contrário do habitual, quando foge, o burro é bravo e perigoso.
Se querem afirmar
que o filhote é mesmo parecido, por exemplo, com o progenitor, atiram com a
expressão: “Cuspido e escarrado”. Que asco, cuspido e escarrado! Não podiam ter
arranjado expressão mais feia. E referem-se ao pai ou ao filhote? Que indigno!
Digam, antes, “esculpido em Carrara”, esbelto, bem talhado e formoso como o
pai, porque foi formado como se tivesse sido utilizado o mármore daquela região
italiana, o melhor. Se a expressão tivesse sido formulada com base em materiais
portugueses, poderíamos falar da pedra de Ançã, do mármore e do granito de Vila
Viçosa, do granito de Alpendurada ou de Fonte Arcada (Sernancelhe).
Ao querer persuadir
alguém de que é desenrascada, a personalidade acha que tudo pode conseguir com
o uso da loquela e profere: “Quem tem boca vai a Roma”. Não, a Roma não se vai
com a boca nem mesmo só a perguntar, até porque podem não nos fornecer
informação correta se adivinharem que somos presunçosos. Os habitantes das
províncias, com a boca e sem medo, vaiavam a autoridade romana, vaiavam, por
metonímia, a própria Roma. Diga-se “quem tem boca vaia Roma”, ou seja, como
agora se vaiam Passos Coelho, Portas, Aníbal ou Assunção Esteves; FMI, Barroso,
Draghi, Merkel, Putin, Obama, Rajoy, Dilma, Maduro, Hollande, etc.
E, por último na
ronda aforística, os cristãos devem achar estúpido o seguinte: “Hoje é domingo,
pé de cachimbo”. Como será o pé de cachimbo? E referimo-nos ao lóculo onde se
deposita o tabaco (o rapé) a consumir ou à boquilha a segurar com os lábios
para aspirar o tabaco (o rapé)? Será por o domingo ser um dia de gozo, de
prazer ou do fumo do espírito? Se dissermos “hoje é domingo: pede cachimbo”,
percebe-se que é um dia especial de gozo, de prazer espiritual, de convivência
e de paz/reconciliação (sobretudo se antes houve desavença). Fuma-se, em vez do
tradicional e vulgar cigarro, o cachimbo da paz, do convívio, da festa.
***
Porém, o aforismo
que está presentemente na berra e consensualmente aceite como genuíno é o
invocado recentemente pelo Secretário de Estado da Administração Pública sobre
a concertada indexação com a troika das pensões de aposentação e reforma ao
crescimento económico e à esperança média de vida dos portugueses: “Roma
locuta, causa finita”. Alguém veio à liça tentar corrigir para ““Roma locuta
est, causa finita est”. Tal emenda seria de somenos, dada a facilidade com que
em latim se faz a omissão da forma finita do verbo, sobretudo se se tratar de
forma verbal de flexão conjugacional do verbo “esse”, que, no aforismo em causa,
está a formar, com a forma participial passiva, a forma deponencial de “loqui”
(verbo depoente, dado que perdeu a forma ativa, ficando a forma passiva com o
sentido da ativa) e a voz passiva de “finire”.
Porém, o mencionado
governante foi mais impante de prosápia quando enquadrou o pretenso aforismo na
enunciação: “Eu sigo os romanos…”. Parece ter querido dizer que “Roma” – Passos
Coelho e Portas – se tinham já pronunciado e, portanto, arrumado a questão. No
seu entender, a palavra de Roma, no caso do catolicismo, é uma palavra
definitiva porque dogmática e encerrante das questões, após o que não será legítima
a discussão ou então se tornará inútil. Linda lição de catolicismo, se
estivesse correta ou se a matéria de pensões, impostos e salários estivesse na
alçada da ordem dogmática. Porém, teria seguido os cartagineses, que não os
romanos, como se verá.
Ma seu tenho a
impressão de que o hierarca político português, em vésperas de Semana Santa,
terá, antes, pretendido “apilatar” a questão, pois, tendo cumprido a sua missão
de estudar e comunicar em primeira mão aos jornalistas para criar o ambiente de
indignação e, a seguir, uma certa bonança, quererá ter alijado para outrem a
responsabilidade das medidas em causa. Lavou assim as mãos como Pilatos no
Evangelho (esse era governador romano). Porém, não se livra de ficar na memória
coletiva como Pilatos no “credo” cristão, sem muitos atinarem na razão por que
lá está (por falta de coragem em se assumir na ética da convicção e na da
responsabilidade, que deveriam coincidir!).
E o hierarca
político não seguiu nada os romanos; seguiu mal e sem querer os concílios
cartagineses, em que uns duzentos bispos decidiram consensualmente, contra o
pelagianismo e o donatismo, significativas teses doutrinais, sobretudo as
referidas aos requisitos para a salvação do homem e a validade dos sacramentos
na economia da Igreja Católica.
Pelágio e
seus sequazes entendiam que se podia chegar ao conhecimento de Deus pela razão,
sendo a Revelação divina uma fonte complementar de conhecimento e o homem
salvar-se-ia graças aos seus próprios méritos; por seu lado, Agostinho e seus
irmãos no episcopado ensinavam que o conhecimento de Deus só pela razão seria
demasiado imperfeito, e mesmo essa necessitava do concurso de uma iluminação
interior provinda do próprio Criador. E a salvação do homem, embora não
prescinda da obra humana, realiza-se fundamentalmente pela graça de Cristo.
Em
relação ao donatismo, os donatistas acentuavam o aspeto interior e espiritual
da Igreja, pouco ligando à sua realidade comunitária; por outro lado, achavam
que a graça sacramental dependia da santidade do ministro dos sacramentos.
Agostinho, por seu turno, articulava as duas dimensões da Igreja – externa e
interior – acentuando nela a imagem de corpo e de povo, com a animação do
Espírito Santo, tal como a alma faz ao corpo humano. E a graça do sacramento
produz-se independentemente da santidade do ministro, porque o sacramento é,
antes de tudo, ação de Cristo e da Igreja (embora seja desejável a santidade do
ministro do sacramento) – pelo que não era aceitável a rebatização dos provenientes
da heresia e da apostasia ou aqueles cujo ministro do Batismo houvesse sido
tido por indigno, como pretendiam os donatistas e outros.
***
Quanto ao aforismo,
há que referir que em nenhum nos escritos de Agostinho ou na sua prática se
encontra a crença no bispo de Roma como critério último da ortodoxia,
ou que o juízo de
Roma seria a autoridade final em qualquer controvérsia. A controvérsia com o
papa Zósimo e Pelágio não deixa margem de
dúvida quanto à matéria.
Abbe Guettee, assegurando que, na controvérsia pelagiana, a sentença do bispo de Roma não era a autoridade final, argumenta:
Prova de que mesmo em Roma, bem como noutras Igrejas, a sentença
de Inocêncio I não foi considerada como encerrando o caso, encontra-se no facto de, após a sua sentença, o caso ter sido
reexaminado em Roma pelo seu sucessor Zósimo, por várias Igrejas num grande número de sínodos, e pelo
Concílio Ecuménico de Éfeso, que julgou o caso
e confirmou a sentença dada em todos as instâncias
em que tinha sido examinado.
Os bispos africanos condenaram os erros de Pelágio em dois concílios, sem pensarem na doutrina de Roma. Os Pelagianos, por sua vez, expuseram a alegada fé de Roma, que diziam
harmonizar-se com a sua. Então, os bispos Africanos,
porque os opositores eram influentes em
Roma, perguntaram a Inocêncio se a afirmação pelagiana era verdadeira, para que,
não o sendo, fosse silenciada. Inocêncio rejeitou-a, pelo
que Agostinho diz: “Fingiste que Roma estava contigo; Roma te condena, tu
também foste condenado por todas as outras Igrejas, por isso o caso está
terminado”. Em vez de pedirem a decisão de Roma, os bispos africanos apontaram
ao Papa o percurso que ele devia seguir nesta questão. Se os bispos norte-africanos tivessem subscrito o uso popular das palavras do aforismo, teriam concordado com a condenação
de Inocêncio, a seguir com a revogação de Zósimo; e, se por qualquer motivo Zósimo revogasse
isto sem o desprezo norte-africano, concordariam com esta revogação. Ora tal não aconteceu.
O que aconteceu então?
Dizem que o
aforismo “Roma locuta est, causa finita est” consta
do Sermão 131 de Agostinho, proferido em 23 de setembro de 417. Porém,
tais palavras não aparecem em nenhuma obra de Agostinho. Ele não
as disse. Efetivamente, ele tem o segundo membro da frase no Sermo131:10 –
“causa finita est”. Mas estas palavras não têm nada
a ver com a interpretação da Bíblia pela sede Romana. Agostinho
e os bispos de Cartago excomungaram, num sínodo, Pelágio e
Celéstio, seu principal sequaz. O papa Inocêncio
I concordou com esta decisão e apoiou-a oficialmente. Zósimo,
seu sucessor, enganado por confissões de
fé ambíguas, revogou as decisões do predecessor e exigiu a
Agostinho e aos bispos Cartagineses a aprovação desta posição. Os bispos em
causa responderam com outro Sínodo de cerca de 200 bispos, que
ignorou tal revogação, e recondenaram Pelágio. Após subsequentes
indagações, Zósimo revogou a sua revogação e acabou por apoiar a decisão
cartaginense. Antes de todos estes avanços e recuos, Agostinho tinha
dito o seguinte:
“Iam enim de hac causa duo concilia missa sunt ad sedem apostolicam; inde
etiam rescripta venerunt; causa finita est: Utinam aliquando finiatur error.” – Sermão 131 de Migne, PL 38:734: “Já
sobre este assunto dois concílios (duas
atas de concílios) foram enviados à Sé Apostólica (Roma), donde
também chegaram rescritos. A causa está encerrada. Que o erro possa igualmente cessar.”
Cf http://aberturamundojuridico.blogspot.pt/2012/07/roma-locuta-est-causa-finita-est.html
(ac. 2014.04).
A pari, mas a contrario, veja-se como alegadamente João Paulo II (e Bento XVI o
seguiu) encerrou a matéria de ordenação diaconal e sacerdotal de mulheres, como
se fosse dogma. Dogma é a formulação considerada como a mais acertada e exige
um processo de caminhada consensual. Escrevi algo sobre o tema em 22.03.2014.
Roma pensará que, porque os bispos
não ordenam mulheres sacerdotes (houve exceções!) e porque guardam silêncio
sobre esta questão ou a remetem para o papado, isso significa que exprimiram um
consentimento unânime. Ora em matéria tão momentosa não se pode aplicar o aforismo
“qui tacet videtur consentire”. Os
bispos deveriam ter escutado a Palavra de Deus e o "sensus fidelium"
(o que católicos empenhados sentem ser justo “in corde suo”) e exercido a sua
autoridade como um corpo. Após madura reflexão, deveriam ter-se sentido livres
na expressão de suas opiniões e pedido que a doutrina fosse declarada
definitiva.
A talho de foice, note-se mais um aforismo mal recebido: “qui tacet videtur consentire” – quem cala parece consentir e não aligeiradamente quem cala consente, que tem gerado os
seus equívocos.
Também, ao discorrer sobre a matéria do foro do hierarca
político referenciado, alguns falaram de Pelágio e quiseram derivar desse
eclesiástico, envolvido em polémica com Agostinho, os vocábulos plágio, plagiário e plagiato –
atinentes à apresentação de texto de outrem como se fosse nosso (punida à face
da lei como roubo). Esclareça-se que não. Plágio etimologicamente provém do
grego (através do latim plagium) “plágios”, que significa “trapaça”, “enviesamento”.
Desde a
Antiguidade greco-latina, se conhece a existência de sanção moral aos
plagiadores, que sofriam público repúdio, desonra e desqualificação entre os intelectuais.
“Plagiário” vem do latim “plagiarius” – o que, na Antiga Roma, roubava escravos
ou vendia indivíduos livres como sendo escravos. O termo origina-se da “Lex
Fabia ex plagiariis”. Escravo, em Roma, não era considerado pessoa (“persona”),
mas coisa (“res”), mercadoria. Não era cidadão (“civis”), já que não possuía o “status
libertatis”. A expressão foi trazida metaforicamente para a literatura por
Marcial, poeta do século I, que equiparava o seu poema, de que outro autor se
apropriara, à criança que tivesse caído em mãos de sequestrador. Daí a
explicação do desvio sofrido pelo vocábulo plagium
na sua evolução semântica. A palavra passou a significar, metaforicamente, essa
apropriação fraudulenta de uma criação intelectual.
Oxalá este
arrazoado sirva para moderar o conhecimento desviante e refletir mais sobre a
doutrina católica, bem como para adquirir um tacto maior de povo e consolidar o
sentido da fé.
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