Segundo a AFP, em carta ao
Padre Stefano Cecchin, presidente da Pontifícia Academia Mariana Internacional,
divulgada a 20 de agosto, mas enviada a 15, o Papa exprimiu apreço pela criação
dum Departamento de Análise e de Estudo
dos Fenómenos Criminais e Mafiosos, “para libertar a figura de Nossa
Senhora da influência das organizações criminosas”, sublinhando:
“A devoção mariana é um património religioso-cultural
a ser protegido na sua pureza original, liberando-o de superestruturas, poderes
ou condicionamentos que não respondem aos critérios evangélicos de justiça,
liberdade, honestidade e solidariedade”.
A que se
refere o Papa? Ao uso que distintos
clãs mafiosos fazem de procissões e festas aos padroeiros, em que demonstram
todo o seu poder. Assim, não é estranho ver arcos com a imagem de Maria em
frente das casas dos chefes da Mafia e as imagens da Virgem ou dos padroeiros das localidades do sul da
Itália fazer reverência e passagem pela casa do padrinho, em sinal de homenagem
e reconhecimento do seu poder. De facto, para Cecchin, a figura de Maria é
usada por organizações criminosas para “subjugar as pessoas, para as tornar
escravas”.
O fenómeno
da espiritualidade distorcida, muito comum no sul da Itália e na América
Latina, com reverências e homenagens a mafiosos e criminosos, é uma questão que
preocupa a hierarquia da Igreja. Por isso, a Academia, sob a égide de Francisco,
dedicará uma jornada de estudos sobre o tema no dia 18 de setembro, juntamente
com autoridades religiosas e instituições públicas, com o objetivo, de acordo
com os organizadores, de procurar “respostas eficazes” para uma necessária “operação
de conscientização cultural”. Com efeito, como escreve Francisco, “é necessário que o estilo
das manifestações marianas seja
conforme à mensagem do Evangelho e aos ensinamentos da Igreja”, pelo que se
pede a demonstração do “exemplo de vida dos participantes em tais manifestações,
que estão chamados a dar em toda a parte um testemunho cristão válido mediante uma adesão cada vez mais
firme a Cristo e uma generosa doação a seus irmãos e irmãs, especialmente os
mais pobres”.
Na carta, o
Papa saúda os promotores, os palestrantes e os participantes da jornada de
estudo, marcada para 18 de setembro e organizada pela Pontifícia Academia
Mariana Internacional, em colaboração com as autoridades eclesiásticas e
instituições públicas. Diz esperar que os santuários marianos se tornem cada
vez mais “cidades de oração, centros de ação do Evangelho, lugares de conversão
e de referência da piedade mariana”. E quer acabar com a prática de as máfias
aproveitarem as festividades dos padroeiros e as procissões para mostrarem o
seu poder, e pediu aos padres locais que se comprometam a não aceitar atitudes
erradas.
***
Em várias
ocasiões, Francisco condenou duramente os mafiosos e assassinos que cometem
crimes em nome da Virgem Maria. Assim, na homilia da missa celebrada, em
Palermo, em memória do beato Pino Puglisi, padre assassinado pela máfia, na
Sicília, local originário da Cosa Nostra, a máfia siciliana, declarou, a 15 de
setembro de 2018, que não se pode acreditar em Deus e ser mafioso e “quem é
mafioso não vive como cristão, porque blasfema com a sua vida o nome do Deus-amor”,
e, se não mudarem, as suas vidas serão perdidas, sendo essa a pior derrota. Quatro
anos antes, em 2014, perante cerca de 100.000 pessoas, lançou uma dura acusação
contra a máfia calabresa, a Ndrangheta, ao comentar que “os mafiosos não estão
em comunhão com Deus, estão excomungados”. Na católica Nápoles, reduto da
Camorra, outra temida organização criminosa, em 2015, condenou organizações que
“exploram e corrompem os jovens, os pobres e os desfavorecidos”.
Já em 2013, na esplanada de Sibari, foi
meridianamente claro ao dizer:
“Os que seguem o caminho do mal em suas vidas, como os mafiosos, não
estão em comunhão com Deus: estão excomungados”.
***
Na verdade,
em Palermo, no ano de 2018, o Papa dizia:
“Hoje somos chamados a escolher de que lado queremos estar. Não se pode
crer em Deus e ser mafioso.”.
De facto, o Monte Pellegrino, em Palermo, parecia o Sinai. E àquele povo do Êxodo,
enfileirado em versão Mar Vermelho,
parecia que Francisco descia
lá do helicóptero a proferir e a esculpir o seu “ou-ou” diretamente nas
consciências.
Cenário
análogo ao da Calábria, no
relvado de Sibari, quando,
no sopé do maciço de Pollino,
pronunciou a excomunhão dos homens de honra, impondo-lhes a procura de Deus, com
a demanda do bem mais cobiçado, a vida eterna. Conceitos e preceitos pesados
como pedras, mas jogados do púlpito com leveza e serenidade. Acolhido como um libertador,
o Papa chegou à Sicília como
herói dos dois mundos ou qual Garibaldi vestido
de branco a tentar uma missão impossível face a um adversário invisível e
aguerrido. E, ao partir do cais de Punta
Favarolo, em Lampedusa, ao metropolitano, etimológico de Palermo (“panormos” em grego,
que significa “tudo porto”), o herdeiro
do pescador da Galileia lançava
a rede universal muito além das margens do Mare Nostrum.
Mais uma
vez, como em julho de 2013, a Trinacria tornou-se
o pivô dum compasso planetário: na época, servira para inverter o eixo
geopolítico do papado de Norte a Sul, ao longo da rota dos migrantes. E, em
2018, completava o processo de um périplo teológico, que se iniciara no Valle dei Templi, a 8 de maio de 25
anos atrás, com o grito de guerra de São João Paulo II, “Um dia virá o juízo de Deus”, e que continuou trágica e
barbaramente num pátio de Brancaccio,
a 15 de setembro, com a resposta da Cupola e os disparos a Pugilisi.
Se a cultura
da legalidade para o Papa polaco
era um ponto de chegada e consequência da evangelização, para o pontífice
sul-americano, em tempo de globalização – além de urbanização – selvagem, ela
define a premissa imprescindível, invertendo a ótica e tática.
Segundo Andrea
Riccardi, “a máfia e o crime organizado, que muitas vezes dominam os não
lugares da globalização, constituem o principal desafio para a Igreja das
periferias”, sendo “nessas selvas urbanas que vive o povo de Deus, como Bergoglio o concebe”.
Se no
glossário náutico de Ratzinger o
perigo vinha de cima e do vento do relativismo, que sacode a barca de Pedro, na perceção de Francisco, o perigo sobe de baixo, dos
tentáculos do polvo que envolvem o navio e a sua carga de almas, arrastando-o
para o fundo.
“Para ser
construtor do futuro, também se deve dizer não”, recordou ele aos jovens à
tarde, na Praça Politeama:
“Não ao muro da omissão, um ecomonstro
que deve ser demolido para construir um futuro habitável”. E a
transparência das instituições e do laço social torna-se condição preliminar
para que a comunidade dos homens possa ser atravessada pela luz divina e
ascender ao nível superior da comunhão com Deus.
Sessenta
anos após a profecia secular de Leonardo Sciascia, torna-se realidade e
transfere-se do romance para o veredicto dos juízes, que sanciona o caráter mafioso
do mundo do meio: “Mafia capitale”, de nome e de facto, é caso jurisprudencial, não só
manchete de jornal.
E, com a
visita do Pontífice, tal veredicto preparou “o caminho do Senhor”, atualizando
e visualizando a mudança de perspectiva. Como se a revolução cultural, de sensibilidade e de mentalidade em relação
às máfias, avançasse sincronizada e o Tribunal de Apelações tivesse rompido o cerco na Urbe, apoiando
os esforços do Bispo de Roma de
sair dos muros de uma interpretação restritiva e apoiando-o na sua campanha
no Orbe.
Na
gradualidade peculiar e siciliana de santidade terrena, idealizada por Sciascia, Pino Puglisi alistar-se-ia e figuraria entre os
protagonistas, mas perderia o título de padre e de bem-aventurado. Seria um
Homem daqueles raros e celebérrimos, muitas vezes solitários, acima dos homúnculos
– categoria que, a partir do Padre Abbondio, pode aceder à batina e até à púrpura, conquistando fama,
mas vendo-se inexoravelmente impedida a glória dos altares, no imaginário
coletivo dos contemporâneos e no julgamento conclusivo de Deus e do Papa.
***
O Padre
Stefano Cecchin concedeu ao Vatican News
uma entrevista em que recordou as tarefas e a missão da própria academia
pontifícia a que preside e salientou que a figura de Maria está a ser usada por
organizações mafiosas para submeter as pessoas, fazendo-as escravas.
Referiu que a tarefa da Academia
“é dar uma saudável formação
mariológica com vista a uma saudável piedade popular”, devendo “redescobrir o património religioso e
cultural que temos em todo o mundo, mas, especialmente, na Itália”. Com efeito, como diz, há uma
religiosidade frágil e manipulável por quem sabe manipular o coração e os
sentimentos das pessoas no quadro da criminalidade e de outras formas (mágicos,
curandeiros e gurus), utilizando
as dificuldades das pessoas e dando-lhes respostas mágicas só para conseguir um
retorno económico.
Sobre as graves distorções ligadas à figura de Maria, diz que ela é usada para manter as pessoas
escravizadas, enfatizando a figura de ‘Maria como uma mulher submissa a Deus’,
a que se atrela “a religiosidade ligada a superstições, magias e poderes que
depois assustam as pessoas”.
Quanto ao departamento especializado para estudar os fenómenos criminais
e mafiosos e “libertar a figura de Maria da influência das organizações
criminosas”, frisa que o Papa vem felicitar a Academia que segue o caminho iniciado na disciplina ‘Maria, caminho de paz entre as culturas’, envolvendo magistrados,
criminologistas, pessoas do exército, do Estado e da Igreja em trabalho pelo
bem da pessoa humana e da sociedade, da ‘Casa Comum’.
Ao querer erradicar da formação das pessoas e famílias o cancro da
distorção devocional por parte das organizações criminosas, a Academia tem em
conta a formação integral da pessoa humana
como “primeiro princípio para ajudar a
humanidade e a Casa Comum, a sociedade e o homem e a mulher”. E o Padre Stefano assegura que não é religião,
mas superstição, o fenómeno das reverências, de se curvar diante dos chefes mafiosos
durante as procissões, pois “eles quase querem ensinar ao povo que Deus
está com eles”, porém, o que querem é “usar o sentimento religioso das pessoas
para levá-las a não serem livres, mas escravas”.
E, sobre a jornada do próximo dia 18, em Roma, promete que todo o caminho e os projetos serão ali apresentados
para se iniciarem os cursos em outubro. E a ideia é que, a 13 de maio, “seja
realizada uma conferência nacional que divulgue os frutos desse trabalho”. Mais
esclarece que devem “trabalhar juntos, mas cada um com a sua própria
identidade, sem confundir Estado, Igreja, associações”. É a união pelo bem
comum, devendo a Academia ser “um lugar de encontro, um lugar de diálogo”. Assim,
trabalhará com os muçulmanos – para tanto, criou a Comissão Mariana Cristã Muçulmana
– e iniciará cursos com a mesquita de Roma, abordando os aspetos das “más
interpretações da religião” ou de “como a religião está a ser usada para
dividir e criar problemas”, quando “Deus, ao contrário, é amor e não medo ou
punição”.
2020.08.22 –
Louro de Carvalho
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