quinta-feira, 20 de agosto de 2020

“Privados de maravilha, permanecemos surdos ao sublime”

É o tema do 41.º “Encontro para a amizade entre os povos”, que decorre de 18 a 23 de agosto, em Rimini, na Itália, desta feita virtualmente. Porém, a vastidão temática é incrível, como segue.

A sessão inaugural, no dia 18, teve intervenções de Mario Draghi, que foi presidente do Banco Central Europeu de novembro de 2011 a novembro de 2019, e de Scholz Bernard, presidente da Fundação “Encontro para a Amizade entre os Povos” desde março de 2020. Seguiu-se um debate sobre o mundo das séries de TV e o seu sucesso mundial; uma conferência sob o título “Onde o olhar oscila”, em torno da questão “Por quais caminhos e formas a arte do nosso tempo penetra nos territórios do sublime?”; uma conferência sob o título “Ser feito como um prodígio: a maravilha da interdependência, para que, reconhecendo “um papel fundamental para as interações cooperativas, sejamos ajudados a compreender a natureza profundamente relacional e dinâmica do viver e como a sua realização mútua é uma fonte de novidade inesgotável”; e uma conferência sob o título “O abraço. Rumo a uma cultura do encontro”, “superando o método restrito imposto pela sociologia académica e entrando pessoalmente na vida de um grupo de pessoas.

O dia 19 foi preenchido por um painel em torno do tema “Um mundo novo do trabalho, novas formas de trabalhar”, sobre a generalização do trabalho inteligente; um painel em torno do tema “Democracia e confiança: um elo a ser redescoberto”, sob a verificação de que “os sistemas democráticos são confrontados com uma série de desafios que vão além das questões de método, mas dizem respeito ao conteúdo”; um painel em torno do tema “A vida: um mistério”, sobre a questão “O que é o homem de quem você se importa?”; uma entrevista (gravada) ao escritor José Ángel González Sainz em torno do tema “Pedir demasiado não é pedir muito”; uma conferência em torno do tema “Privados de maravilha, permanecemos surdos ao sublime”, o tema geral do Encontro; e um painel em torno do tema “É onlife, beauty. Sociedade e criatividade na era digital”, dado que o confinamento nos forçou a mover as nossas vidas em direção à dimensão digital durante meses.  

No dia 20, decorrem 5 painéis e uma conferência: um painel, sob o título “Novos espaços de educação e formação. Liberte as iniciativas da empresa”, em virtude de o Intergrupo do Parlamento italiano para a Subsidiariedade se ter comprometido sempre com os campos da educação e do treinamento; outro, sob o título “#Inostrigoal. Futebol e cooperação jogam no mesmo time, a mostrar que a Cooperação Italiana e a AIC, com o parceiro técnico da AVSI, estão juntas para difundir os princípios e valores do desporto através da combinação do futebol e da cooperação; outro em torno do título “Uma nova economia para a União Europeia”, para responder à questão “se a crise pode dar origem a uma nova economia mais sustentável, mais solidária e menos obstruída pela burocracia”; outro, em torno do tema “Os desafios de viver na era do niilismo”, numa “discussão sem precedentes sobre os desafios da vida hoje”; outro, sob o título “Uma nova visão da Europa”, agora que a UE elevou o olhar para as futuras gerações do continente, trilhando o caminho da solidariedade. A conferência tem o título “De onde vem a esperança?” e reflete a asserção: “Quando as circunstâncias são adversas, começamos a ter esperanças de um futuro melhor, projetando a nossas expectativas numa mudança desejada”.   

O dia 21 será preenchido por 5 painéis e uma entrevista. Os painéis gravitam em torno dos temas: “Alta especialização, presença territorial, inclusão: os desafios da saúde para todos”, considerando que o problema da gestão do sistema de saúde explodiu com a pandemia; “Rumo a uma economia sustentável. O desafio de reiniciar”, tendo em conta que a retoma da economia é tarefa árdua; “Saúde pública: uma possível integração entre o setor público e o privado”, discutindo em que condições o sistema misto pode servir o bem comum; “O Parlamento ainda é necessário?”, a questionar se o debate democrático ainda encontra a sua forma mais elevada e significativa no Parlamento ou se é cada vez mais substituído nesta função pelos media, redes sociais e plataformas web; “Entre o possível e o impossível: o fascínio da ficção científica”, pois o avanço da ciência transformou em realidade muitas ideias que antes eram consideradas inatingíveis, enquanto outras mostraram a sua flagrante falta de fundamento. E a entrevista (gravada) é ao escritor Maurizio Maggiani, no âmbito do “Pedir demasiado não é pedir muito”.

Os trabalhos do dia 22 iniciar-se-ão com um debate em torno do tema “50 anos de regiões: a arquitetura de Itália à prova”, pois, nos últimos meses – também na sequência da emergência sanitária – ressurgiram de forma macroscópica tensões na relação Estado-Região. Seguir-se-á o Videosseminário sob o título “a mudança na gestão pública na época do coronavírus: iniciando processos ao invés de ocupar espaços”. Depois, virão os debates: Desenvolvimento, sustentabilidade e subsidiariedade: tornando possível um futuro diferente”, a partir do reconhecimento dos limites do modelo de desenvolvimento neoliberal; “As escolas reiniciam. Experiências educacionais e autonomia”, tendo em consideração que a pandemia obrigou à reinterpretação da relação educativa; e Um novo dia para o mundo”, já que milhões de pessoas começaram a olhar para as suas vidas e relacionamentos de uma nova maneira.

O dia 23 começará com uma conferência do Cardeal Gualtiero Bassetti, Presidente da CEI (Conferência Episcopal Italiana), sobre o tema “A dinâmica do presente. Uma nova temporada para a Igreja”. Seguem-se os painéis: “Não vamos voltar para o  mundo que costumávamos. Vamos reconstruir juntos”, pois a questão pertinente é se trazemos o mundo de volta à situação em que se encontrava antes do coronavírus ou se o redesenhamos”; “Viver, morar, trabalhar nas cidades: o que vai mudar nas nossas metrópoles, tomando em linha de conta o facto de as imagens das cidades semidesertas no tempo do confinamento terem deixaram uma marca e terem levantado novas questões sobre o tipo de desenvolvimento urbano a almejar para responder ao desejo das pessoas de viver melhor e enfrentar os desafios do nosso tempo. Será passada mais uma entrevista gravada no âmbito do “Pedir demasiado não é pedir muito”, desta vez feita a Cornel West, Professor de Prática de Filosofia Pública na Universidade de Harvard e Professor Emérito da Universidade de Princeton e Robert George, Professor de Jurisprudência McCormick, Fundador e Diretor do Programa James Madison em Ideais e Instituições Americanas da Universidade de Princeton.

Esta  série de entrevistas em vídeo foram gravadas nos locais onde os entrevistados vivem e trabalham, procurando descobrir a sua relação com a realidade e interceptar as questões que emergem de tal relação, sobretudo neste momento vertiginoso para toda a humanidade.

e o encontro finalizará com o painel sob o título “Esperança quando tudo parece impossível. Testemunhos do mundo”, num mundo devastado pela pandemia, dor, morte, doença, fome não são a última palavra.

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A propósito deste Encontro, o Papa enviou a Dom Francesco Lambiasi, Bispo de Rimini, uma mensagem assinada pelo Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado da Santa Sé, em que se destaca a asserção “os cristãos são chamados a testemunhar a experiência da beleza de Deus”, como se pode ler mais em pormenor no boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, do dia 17. E, perguntando se não seria essa surpreendente descoberta a maior contribuição que os cristãos poderiam dar para sustentar a esperança dos homens, o texto assegura:

É uma tarefa da qual não podemos esquivar-nos, especialmente nesta estreita curva da história. É o chamamento a sermos transparências da beleza que mudou as nossas vidas, testemunhas concretas do amor que salva, sobretudo em relação àqueles que agora mais sofrem.”.

Entretanto, é de relevar que a mensagem vai ao encontro da preocupação que serve de pano de fundo a todo o 41.º “Encontro para a amizade entre os povos”, reiterando, logo no início, algumas das palavras pronunciadas por Francisco em 27 de março, na deserta Praça São Pedro:

Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados. A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade.”.

Na verdade, diz o texto, face às questões levantadas pela pandemia, os cristãos têm a missão de sustentar a esperança dos homens, por meio do testemunho da experiência da beleza de Deus.

Referindo-se ao tema geral do Encontro, “Privados de maravilha, permanecemos surdos ao sublime”, o Secretário de Estado diz que esse oferece uma contribuição preciosa e original num momento vertiginoso da história, pois, “na busca dos bens, mais que do bem, muitos apostaram exclusivamente na própria força, na capacidade de produzir e ganhar, renunciando àquela atitude que na criança constitui o tecido do olhar sobre a realidade: o maravilhar-se”.

Já a 1 de janeiro de 2019, o Papa dizia que, sendo esta capacidade de maravilhar-se que põe a vida em movimento, “permitindo-lhe recomeçar em qualquer circunstância”, é esta “a atitude que devemos ter no começo do ano, porque a vida é um dom que nos possibilita começar sempre de novo”. E insistia na necessidade de readquirir a capacidade de se maravilhar para viver, pois “a vida, sem nos maravilharmos, torna-se cinzenta, rotineira; e de igual modo a fé”, pelo que “também a Igreja precisa de renovar a sua maravilha por ser casa do Deus vivo, Esposa do Senhor, Mãe que gera filhos”.

Evoca a mensagem a experiência dos últimos meses em que experimentamos a dimensão do deslumbramento, “que assume a forma da compaixão diante do sofrimento, da fragilidade, da precariedade da existência”, um nobre sentimento humano que “levou médicos e enfermeiros a enfrentar o grave desafio do novo coronavírus com dedicação extenuante e admirável compromisso”. E também o mesmo sentimento pleno de carinho pelos estudantes “permitiu a muitos professores acolher o cansaço do ensino à distância, garantindo o fim do ano letivo” e levou a que muitos “encontrassem nos rostos e na presença de familiares a força para enfrentar as adversidades e sofrimentos”. Neste sentido, o Encontro constitui “uma poderosa chamada a descer às profundezas do coração humano por meio da corda do deslumbramento”.

E a propósito do significado da vida, da dor, da morte – interrogação emergente no deserto da pandemia – questiona e responde a mensagem:

Como não experimentar uma original sensação de deslumbramento diante do espetáculo duma paisagem de montanha, ou de ouvir uma música que faz vibrar a alma, ou simplesmente diante da existência de quem nos ama e do dom da criação? O deslumbramento é verdadeiramente a forma de apreender os sinais do sublime, isto é, daquele Mistério que constitui a raiz e o fundamento de todas as coisas.”.

Ora, diz o texto, se tal meta não for cultivada, tornamo-nos cegos diante da existência, fechados em nós mesmos, ficamos atraídos pelo efémero e deixamos de questionar a realidade.

O homem – escreveu Jorge Mario Bergoglio na ‘Vida de padre Giusani’ – “não pode se contentar com respostas reduzidas ou parciais, obrigando-se a censurar ou esquecer algum aspeto da realidade”, pois, dentro de si “possui um anseio pelo infinito, uma tristeza infinita, uma nostalgia que só se satisfaz com uma resposta igualmente infinita”, de modo que “a vida seria um desejo absurdo se esta resposta não existisse”.

Referindo que o confinamento devolveu a forma mais genuína de apreciar a existência, o Cardeal aponta que, mesmo sem terem consciência disso, não poucas pessoas foram “em busca de respostas ou mesmo apenas se questionaram sobre o sentido da vida, a que todos aspiram”. Assim, ao invés de matar a sede mais profunda a este respeito, o confinamento despertou em alguns a capacidade de se maravilharem diante de pessoas e factos antes tidos por óbvios. Tal circunstância trouxe, pelo menos por um tempo, “uma forma mais genuína de apreciar a vida, sem aquele complexo de distrações e preconceitos que poluem os olhos, sufocam as coisas, esvaziam o deslumbramento e nos distraem de perguntar quem somos”.

Por outro lado, a experiência da beleza, que muitas vezes compreendemos por meio dos artistas, é decisiva para a existência. “Um mundo sem beleza – dizia Hans Urs von Balthasar – perdeu sua força de sua atração”, levando o homem a perguntar-se “porque não deveria preferir o mal”.

Neste contexto, o tema do Encontro lança “um desafio decisivo aos cristãos, chamados a testemunhar a atração profunda que a fé exerce em virtude da sua beleza: a atração de Jesus”.

Neste sentido – escreve Parolin – o Santo Padre “convida-vos a continuar a colaborar com ele no testemunhar a experiência da beleza de Deus, que Se fez carne para que os nossos olhos se maravilhem de ver o seu rosto e os nossos olhares encontrem nele a maravilha de viver”. E, com a experiência da beleza de Deus, sustentaremos a esperança dos homens.

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É um encontro de temática muito vasta, com temas muito oportunos e com um pano de fundo a apontar para a profundidade da vida e a concitar séria reflexão. Seria bom que estas temáticas fossem debatidas nos diversos países europeus, não se pensando que serão exclusivas da Itália. Talvez ficássemos com a política e as Igrejas mais próximas dos cidadãos e as instituições mais escrutináveis.

2020.08.20 – Louro de Carvalho

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