domingo, 16 de agosto de 2020

Acima da pouca fé de Pedro, a grande fé da cananeia

 

Quando Pedro pede a Jesus que o salve, o Mestre censura-lhe a pouca fé e a dúvida (cf Mt 14,30-31). Porém, ante a fé insistente e firme da cananeia a que se reporta o Evangelho proclamado e meditado neste XX domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 15,21-28), Jesus enaltece a fé desta estrangeira, fé tão grande que nunca tal viu em Israel, como acontecerá com outros pagãos.    

Regra geral, a comunidade judaica responde negativamente ao desafio de Jesus. Os nazarenos, junto de quem o Mestre inicia a pregação e junto de quem insiste oportuna e importunamente (cf Mt 13,53-58), desprezaram-no e hostilizam-no, pois “um profeta só é desprezado na sua terra e em sua casa”; Herodes (cf Mt 14,1-12) mostrou a sua sanha contra o reino messiânico matando o precursor; os escribas, fariseus e saduceus (cf Mt 15,1-9; 16,1-4.5-12) escandalizavam-se com os discípulos por não respeitarem as tradições dos antigos, pediam sinais e estavam eivados dum fermento maligno. Enfim, a comunidade organizada recusava enveredar pela aventura do Reino.

A perícopa evangélica desta dominga surge antecedida por um confronto entre Jesus e os fariseus e doutores da Lei em torno das tradições judaicas (cf Mt 15,1-9). Em rutura com eles, Jesus “retirou-Se dali e foi para os lados de Tiro e de Sídon”. Ou seja, a recusa de Israel leva a que a pregação messiânica se dirija para fora das suas fronteiras. E a comunidade dos discípulos – o grupo que escutou e acolheu a proposta do Reino – acompanha Jesus, mas nem sempre de ânimo purificado, tendo subjacente a sensação do privilégio e superioridade sobre os demais.

Ora, na “região de Tiro e Sídon”, apresenta-se a Jesus uma mulher “cananeia” (a siro-fenícia de Marcos de origem grega: Mc 7,26), apelativo que designa, no Antigo Testamento, uma mulher pagã, no caso, uma siro-fenícia, provavelmente residente naquela região não “recomendável”, segundo os israelitas, pois de lá tinham vindo, frequentemente, exércitos inimigos e influências religiosas nefastas para a fé dos israelitas da fé no seu Deus, que os levavam a acorrer aos deuses cananeus. Jezabel, mulher do rei Acab, que potenciou o culto a Baal e Asserá, no tempo do profeta Elias, era filha de um rei de Sídon. Por isso, os fariseus e os doutores da Lei, intransigentes defensores da Lei e da pureza da fé, consideravam os habitantes dessa zona como “cães”, designação entendida em sentido fortemente pejorativo.

O pedido da cananeia significa que ela possa ter acesso aos benefícios da salvação de que Jesus é portador, o que implica que Ele ultrapasse os preconceitos religiosos dos judeus e ofereça a salvação também aos pagãos, incluindo uma mulher estrangeira, inimiga, oriunda duma região com má fama e, para mais, uma “mulher”. É esta a primeira vez que, no Evangelho de Mateus, uma mulher ousa dirigir-se diretamente a Jesus, o que só ocorrerá mais uma vez por parte da mãe dos filhos de Zebedeu (cf Mt 20,20-21).

A mulher começa por gritar: “Senhor, Filho de David, tem misericórdia de mim(eléêsòn me, Kýrie, uiòs David), porque minha filha está cruelmente atormentada por um demónio”. A designação de “filho de David”, equivalente a Messias (Khristós), e de Senhor (Kýrios), atributo de Deus, com que ela se Lhe dirige é uma verdadeira confissão de fé.

Os discípulos, fartos de a ouvirem e pensando que ela não era digna do favor divino, pediram ao Mestre que a atendesse. E Jesus, parecendo contrariar os discípulos na pretensão aparentemente filantrópica afirmou que o seu envio foi à Casa de Israel. Porém, a mulher, veio prostrar-se diante d’Ele (elthoûsa prosekúnei autôi), dizendo:Socorre-me, Senhor(Kýrie, boêthei moi). Belo ato de confiança e de adoração, ditado pela fé e pelo sofrimento.

Jesus, num arroubo de aparente dureza, retorquiu:

Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos”.

Não obstante, a mulher não se inibiu de responder à letra, redobrando a confiança:

É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos.

Ao que Jesus sentenciou: Mulher, e grande a tua fé. Faça-se como desejas.

São três as intervenções da mulher a mostrar, por um lado, a sua ânsia de salvação  e, por outro, a fé firme e convicta que a anima. É uma personagem que impressiona pela fé, pela humildade e pelo sofrimento que transparece no seu apelo, que a leva a dar a volta a Jesus. Desarmou-O.

Surpreende a forma dura como Jesus trata esta mulher que pede ajuda, Ele que Se mostra sempre preocupado em traduzir em gestos concretos o amor e a misericórdia de Deus pelos homens. Começa pelo silêncio face aos seus apelos. Depois, ante a insistência dos discípulos, responde com uma evasiva. Por fim, ao dramático último apelo da mulher responde que não é justo desperdiçar por quem não merece a graça, lançar aos cachorros o pão dos filhos.  Mas, apesar se surpreendente, como diz Frederico Lourenço, Oscar Wilde, enquanto lia o NT grego na prisão de Reading, encantou-se especialmente com o termo “kunária(cachorros), aqui usado.

A atitude de Jesus faz sentido, se a encararmos como uma estratégia pedagógica para mostrar o sem sentido dos preconceitos judaicos contra os pagãos. Jesus quis vincar como eram ridículas as atitudes de discriminação dos pagãos da catequese oficial judaica. Ao endurecer de forma progressiva a sua atitude face ao apelo da “cananeia”, Jesus dá-lhe a possibilidade de mostrar a firmeza e a convicção da sua fé e confiança provando aos judeus que os pagãos são dignos – quiçá mais dignos do que esses “santos” membros do Povo de Deus – de se sentarem à mesa do Reino. A mulher, na sua humildade, nem reivindica a equiparação a esse Povo eleito. Dispõe-se a ficar apenas com “as migalhas” que caem da mesa – migalhas também são pão –, mas quer ter acesso a essa salvação que Jesus traz, ao invés dos fariseus e doutores da Lei, que permanecem fechados na sua autossuficiência e nos seus preconceitos. O suposto privilégio judaico, não aceite por Cristo, cai mal na pós-modernidade.

No final da caminhada de afirmação da “bondade” e do “merecimento” dos pagãos que a teologia oficial desprezava, Jesus conclui: “Mulher, grande é a tua fé. Faça-se como desejas”. E a filha ficou sã (liberta do demónio) a partir daquela hora. Isto quer dizer que a mulher estava disposta a acolhê-Lo como o enviado do Pai e a aceitar o pão do Reino, o pão com que Deus mata a fome de vida de todos os seus filhos.

Mateus, com esta catequese, estará a responder a uma situação concreta da sua comunidade. Com efeito, nos finais do século I, alguns judeo-cristãos ainda tinham dificuldade em aceitar a entrada dos pagãos na Igreja. E Mateus recorda-lhes que, para Jesus, o decisivo não é a raça, a história, a eleição, mas a adesão firme e convicta à proposta de salvação que, em Jesus, Deus faz aos homens. O texto mostra que a proposta de Jesus é para todos. A comunidade de Jesus é, verdadeiramente, uma comunidade universal.

Vai-se cumprindo o vaticínio de Isaías (Is 56,1.6-7), segundo o qual “os estrangeiros que desejam unir-se ao Senhor para O servirem, amarem o seu nome e serem seus servos”, se cumprirem a aliança com Deus, os seus holocaustos serão aceites e eles serão conduzidos ao nome do Senhor e hão de ficar cheios da alegria de Deus na sua casa de oração, que o será para todos os povos. Pedro há de entender tudo isto, Paulo dar-lhe-á a máxima expressão e a Igreja é universal.

2020.08.16 – Louro de Carvalho

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