Quando Pedro
pede a Jesus que o salve, o Mestre censura-lhe a pouca fé e a dúvida (cf
Mt 14,30-31). Porém,
ante a fé insistente e firme da cananeia a que se reporta o Evangelho proclamado
e meditado neste XX domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt
15,21-28), Jesus enaltece
a fé desta estrangeira, fé tão grande que nunca tal viu em Israel, como acontecerá
com outros pagãos.
Regra geral, a comunidade judaica responde negativamente ao
desafio de Jesus. Os nazarenos, junto de quem o Mestre inicia a pregação e junto
de quem insiste oportuna e importunamente (cf Mt
13,53-58), desprezaram-no e hostilizam-no, pois “um profeta só é desprezado na sua terra e em sua casa”; Herodes (cf Mt 14,1-12) mostrou a sua sanha contra o reino messiânico matando o
precursor; os escribas, fariseus e saduceus (cf Mt
15,1-9; 16,1-4.5-12) escandalizavam-se com os discípulos por não respeitarem as
tradições dos antigos, pediam sinais e estavam eivados dum fermento maligno. Enfim,
a comunidade organizada recusava enveredar pela aventura do Reino.
A perícopa evangélica desta dominga surge antecedida por um
confronto entre Jesus e os fariseus e doutores da Lei em torno das tradições
judaicas (cf Mt 15,1-9). Em rutura com eles, Jesus “retirou-Se dali e foi para os lados de Tiro e de Sídon”. Ou seja, a
recusa de Israel leva a que a pregação messiânica se dirija para fora das suas
fronteiras. E a comunidade dos discípulos – o grupo que escutou e acolheu a
proposta do Reino – acompanha Jesus, mas nem sempre de ânimo purificado, tendo
subjacente a sensação do privilégio e superioridade sobre os demais.
Ora, na “região de Tiro e Sídon”, apresenta-se a Jesus uma
mulher “cananeia” (a siro-fenícia de
Marcos de origem grega: Mc 7,26), apelativo que designa, no Antigo Testamento, uma mulher
pagã, no caso, uma siro-fenícia, provavelmente residente naquela região não “recomendável”,
segundo os israelitas, pois de lá tinham vindo, frequentemente, exércitos
inimigos e influências religiosas nefastas para a fé dos israelitas da fé no seu
Deus, que os levavam a acorrer aos deuses cananeus. Jezabel, mulher do rei
Acab, que potenciou o culto a Baal e Asserá, no tempo do profeta Elias, era
filha de um rei de Sídon. Por isso, os fariseus e os doutores da Lei, intransigentes
defensores da Lei e da pureza da fé, consideravam os habitantes dessa zona como
“cães”, designação entendida em sentido fortemente pejorativo.
O pedido
da cananeia significa que ela possa ter acesso aos
benefícios da salvação de que Jesus é portador, o que implica que Ele
ultrapasse os preconceitos religiosos dos judeus e ofereça a salvação também
aos pagãos, incluindo uma mulher estrangeira, inimiga, oriunda duma região com
má fama e, para mais, uma “mulher”. É esta a primeira vez que, no Evangelho de
Mateus, uma mulher ousa dirigir-se diretamente a Jesus, o que só ocorrerá mais
uma vez por parte da mãe dos filhos de Zebedeu (cf Mt 20,20-21).
A mulher começa por gritar: “Senhor, Filho de David, tem misericórdia de mim” (eléêsòn me, Kýrie, uiòs David), porque minha filha está
cruelmente atormentada por um demónio”. A designação de “filho de David”,
equivalente a Messias (Khristós), e de Senhor (Kýrios), atributo de Deus, com que ela se Lhe dirige é uma
verdadeira confissão de fé.
Os discípulos, fartos de a ouvirem e pensando que ela não era
digna do favor divino, pediram ao Mestre que a atendesse. E Jesus, parecendo
contrariar os discípulos na pretensão aparentemente filantrópica afirmou que o
seu envio foi à Casa de Israel. Porém, a mulher, veio prostrar-se diante d’Ele (elthoûsa prosekúnei autôi), dizendo: “Socorre-me,
Senhor” (Kýrie, boêthei moi). Belo ato
de confiança e de adoração, ditado pela fé e pelo sofrimento.
Jesus, num arroubo de aparente dureza, retorquiu:
“Não é justo que se tome o pão dos filhos
para o lançar aos cachorrinhos”.
Não obstante,
a mulher não se inibiu de responder à letra, redobrando a confiança:
“É verdade, Senhor; mas também os
cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos”.
Ao que
Jesus sentenciou: “Mulher, e grande a tua fé. Faça-se como desejas.”
São três as intervenções da mulher a mostrar, por um lado, a
sua ânsia de salvação e, por outro, a fé firme e convicta que a anima.
É uma personagem que impressiona pela fé, pela humildade e pelo sofrimento que
transparece no seu apelo, que a leva a dar a volta a Jesus. Desarmou-O.
Surpreende a forma dura como Jesus trata esta mulher que pede
ajuda, Ele que Se mostra sempre preocupado em traduzir em gestos concretos o
amor e a misericórdia de Deus pelos homens. Começa pelo silêncio face aos seus apelos.
Depois, ante a insistência dos discípulos, responde com uma evasiva. Por fim, ao
dramático último apelo da mulher responde que não é justo desperdiçar por quem
não merece a graça, lançar aos cachorros o pão dos filhos. Mas, apesar se surpreendente, como diz Frederico
Lourenço, Oscar Wilde, enquanto lia o NT grego na prisão de Reading, encantou-se
especialmente com o termo “kunária” (cachorros), aqui usado.
A atitude de Jesus faz sentido, se a encararmos como uma estratégia
pedagógica para mostrar o sem sentido dos preconceitos judaicos contra os
pagãos. Jesus quis vincar como eram ridículas as atitudes de discriminação dos
pagãos da catequese oficial judaica. Ao endurecer de forma progressiva a sua
atitude face ao apelo da “cananeia”, Jesus dá-lhe a possibilidade de mostrar a
firmeza e a convicção da sua fé e confiança provando aos judeus que os pagãos
são dignos – quiçá mais dignos do que esses “santos” membros do Povo de Deus –
de se sentarem à mesa do Reino. A mulher, na sua humildade, nem reivindica a
equiparação a esse Povo eleito. Dispõe-se a ficar apenas com “as migalhas” que
caem da mesa – migalhas também são pão –, mas quer ter acesso a essa salvação
que Jesus traz, ao invés dos fariseus e doutores da Lei, que permanecem fechados
na sua autossuficiência e nos seus preconceitos. O suposto privilégio judaico,
não aceite por Cristo, cai mal na pós-modernidade.
No final da caminhada de afirmação da “bondade” e do
“merecimento” dos pagãos que a teologia oficial desprezava, Jesus conclui: “Mulher, grande é a tua fé. Faça-se como
desejas”. E a filha ficou sã (liberta
do demónio) a partir daquela hora. Isto quer dizer que a mulher estava
disposta a acolhê-Lo como o enviado do Pai e a aceitar o pão do Reino, o pão
com que Deus mata a fome de vida de todos os seus filhos.
Mateus, com esta catequese, estará a responder a uma situação
concreta da sua comunidade. Com efeito, nos finais do século I, alguns
judeo-cristãos ainda tinham dificuldade em aceitar a entrada dos pagãos na
Igreja. E Mateus recorda-lhes que, para Jesus, o decisivo não é a raça, a
história, a eleição, mas a adesão firme e convicta à proposta de salvação que,
em Jesus, Deus faz aos homens. O texto mostra que a proposta de Jesus é
para todos. A comunidade de Jesus é, verdadeiramente, uma comunidade universal.
Vai-se cumprindo o vaticínio de Isaías (Is 56,1.6-7), segundo o qual “os estrangeiros que desejam unir-se ao
Senhor para O servirem, amarem o seu nome e serem seus servos”, se
cumprirem a aliança com Deus, os seus holocaustos serão aceites e eles
serão conduzidos ao nome do Senhor e hão de ficar cheios da alegria de Deus na
sua casa de oração, que o será para todos os povos. Pedro há de entender tudo
isto, Paulo dar-lhe-á a máxima expressão e a Igreja é universal.
2020.08.16
– Louro de Carvalho
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