Quem diria que o Simão Pedro que, na passagem evangélica lida no XXI domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 16,13-20), confessou resolutamente, em nome de todos, que Jesus “é o Messias, o Filho do Deus vivo” – vindo a receber a aprovação de Jesus e a promessa de que naquela pedra constituiria a Igreja e disporia do poder das chaves –, na perícopa seguinte (Mt 16,21-27), havia de tentar dissuadir o Mestre do núcleo basilar do seu ser e missão messiânicos?
Estas duas
perícopas formam uma preciosa unidade, porquanto a primeira, que representa um
percurso pedagógico a partir do “diz-se” e do “eu digo” para a profissão da fé messiânica
e a génese fundacional da Igreja, termina com o recado de Jesus aos discípulos
de que não dissessem a ninguém que Ele é o Cristo (hína
mêdenì hóti autòs estín ho Khristós). E, na segunda, o Messias, autorrevelado aos discípulos, mas
oculto em relação às multidões, marca a agenda comum da subida a Jerusalém para
ali consumar a missão messiânica: a paixão e ressurreição. Com efeito, a fé em
Cristo tem de nos aproximar do mistério da cruz e ressurreição e fazer-nos participantes
deste mistério, bem como nas consequências que ele traz para a vida do mundo.
Continuamos
nos colóquios de Jesus a sós com os discípulos, longe da vista das multidões e
tendo os líderes judaicos tomado a decisão de eliminar fisicamente Jesus.
Não podemos olvidar que Mateus se dirige a comunidades cristãs do final
do século I (anos 80/90) instaladas, que já esqueceram o fervor inicial e se
acomodaram num cristianismo morno. Ora, com a aproximação de tempos difíceis (estão no horizonte
próximo as grandes perseguições do final do século I), devem os crentes
recordar que o caminho cristão não é fácil, mas percorrido entre êxitos e aplausos,
um caminho difícil que exige diariamente a entrega e o dom da vida.
Na perícopa
evangélica ora em questão, veem-se dois momentos. No
primeiro (vv 21-23), Jesus anuncia aos discípulos a sua paixão; no segundo (vv 24-28), apresenta uma
instrução sobre o significado e as exigências do discipulado.
“Começou
a mostrar aos seus discípulos que é
necessário (deî) que Ele vá para
Jerusalém, sofra muito da parte dos anciãos e dos sumo-sacerdotes e dos
escribas, seja morto, e ressuscite ao terceiro dia”. Comentando o versículo, Dom
António Couto sublinha que “este ‘deî’ implica necessidade divina ou
teológica”, a que o Messias não pode furtar-se.
Mais uma vez Pedro
sente a obrigação de intervir: agora não a contento de Jesus, mas em oposição. Escutando
estes dizeres impensáveis de Jesus, chamou à parte e começou a recriminá-lo: “Isso não te há de acontecer” (híleôs
soi, Kýrie, ou mê éstai soi toûto – Mt 16,21). Simão, na sua determinação momentânea e inconsistência
habitual, desdiz a confissão de fé que fez em Cesareia de Filipe, ou seja, mostra
não ter assumido as suas palavras de então como provindas, por graça, do Pai, mas
como sua produção própria no quadro da sua cultura e religiosidade radicadas na
corrente da tradição religiosa judaica, que apontava para a espera de um
Messias eminentemente político, com o eclipsamento do servo sofrente descrito
pelo profeta Isaías.
A previsão de que o caminho para a ressurreição passa pelo sofrimento e
pela morte na cruz não é uma previsão arriscada, mas certa: efetivamente, depois
do confronto de Jesus com os líderes judeus e de estes terem rejeitado de forma
absoluta a proposta do Reino que Jesus apresenta, é óbvio que o judaísmo medita
a eliminação física de Jesus, facto de que Jesus tem plena consciência. Não obstante,
não se demite do projeto do Reino e anuncia que vai prosseguir, até ao fim, nos
planos do Pai. Pedro, em desacordo, opõe-se decididamente a que Jesus
caminhe em direção ao seu destino de cruz. A oposição de Pedro e dos discípulos
(Pedro é
o porta-voz do colégio discipular) significa que a sua compreensão do mistério
de Jesus é muito imperfeita. Para ele, a missão do “Messias, Filho de Deus” é
uma missão gloriosa e vencedora; e, na sua lógica – que é a lógica do mundo – a
vitória não pode estar na cruz e na dádiva generosa da vida.
E aqui Jesus responde
a Pedro com este duríssimo corretivo: “Vai para trás de mim (hýpage
opísô mou),
Satanás. És uma pedra de tropeço (skándalon, escândalo) para mim, porque não pensas as
coisas de Deus, mas as coisas dos humanos” (Mt 16,23). Esta frase denota o sentido originário de ‘escândalo’ como empecilho. Por
outro lado, como refere Dom António Couto, “atrás de mim” é o lugar do
discípulo, o lugar para que Pedro foi chamado e que deve ocupar. Em português corrente,
diríamos: “Põe-te no teu lugar”. Ou: “Cresce e aparece”. Na verdade, não cabe
ao remendão apreciar a estátua para cima da chinela. Efetivamente, Jesus chamou
Pedro e André com as seguintes palavras: “Vinde
atrás de mim” (deûte opísô mou – Mt 4,19). Portanto, Pedro deve seguir atrás de Jesus (como o cireneu – Lc 23,26), e não pôr-se à sua frente a barrar-lhe
o caminho. Não convém tentar que Jesus siga as ideias que Pedro colheu sobre o
Cristo na tradição cultural e religiosa. O apelativo “Satanás” tem aqui o significado
hebraico de “separador” e “adversário”.
Num segundo momento, Jesus apresenta uma instrução sobre as atitudes do
discípulo. Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”,
“tomar a cruz” e seguir Jesus no seu caminho de amor, entrega e dom da vida.
Renunciar a si mesmo significa abandonar o seu egoísmo e autossuficiência
para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado
em si, preocupado apenas em concretizar os seus sonhos pessoais e projetos de
riqueza, segurança, bem-estar, domínio, êxito, triunfo. Deve, antes, fazer da
sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos. Só assim poderá ser discípulo de
Jesus e integrar a comunidade do Reino. A cruz, que é a expressão de um
amor total, radical, que se dá até à morte, significa a entrega da própria vida
por amor e, nessa medida, passa de instrumento de suplício a troféu de vitória.
Tomar a cruz é, pois, ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa –
por amor a Deus e para felicidade dos irmãos.
Porém, em
nome dos nossos princípios cómodos adquiridos, ignoramos ou não queremos saber
da graça de Deus que nos indica outros rumos. Por isso, o texto prossegue no
mesmo tom determinado, com Jesus a dizer aos
seus discípulos que, para O seguirem, têm que dizer não a si mesmos (aparnéomai) e carregar a cruz todos os dias,
perder a vida para a ganhar. Dizer não a si mesmos e seguir Jesus implica pôr a
confiança em Jesus, e não nos bens, que nos bradam todos os dias. “Perder a vida por causa de mim” (Mt 16,25): Perder a vida deste modo é
perder-se nos caminhos de Jesus, “imitando-o verdadeiramente, e não segui-Lo só
com os pés” (palavras de
Erasmo de Roterdão – 1469-1536. Apud António Couto, Jornal da Madeira, de 30 de agosto).
No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as
razões por que devem abraçar a “lógica da cruz” (Mt 16, 25-27). Em primeiro
lugar, convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas
ganhá-la, pois quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos não fracassa, mas
ganha a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive consoante as suas
propostas. Em segundo lugar, os discípulos são convidados a perceber que
a vida que gozam neste mundo não é a vida definitiva. Não devem, portanto,
preocupar-se em preservá-la a qualquer custo, mas procurar encontrar, aqui e
agora, essa vida definitiva que passa pelo amor total e pelo dom a Deus e aos
outros. É essa a grande meta que todos devem procurar alcançar. E, em
terceiro lugar, os discípulos devem pensar no seu encontro final com Deus, em
que Deus lhes dará a recompensa: “O Filho
do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus Anjos, e
então dará a cada um segundo as suas obras” (Mt 16,27). Esta alusão ao
momento do juízo não é rara em Mateus, que recorre, com alguma frequência, a
esta motivação para fundamentar as exigências éticas da vida cristã.
Com razão
Jesus ordenou aos discípulos que não dissessem a
ninguém que Ele era o Cristo. Pedro dissera-o. Mas, fosse qual fosse a ideia
que Pedro tivesse de Cristo, nela não cabia o sofrimento, a rejeição, a morte,
a ressurreição, e muito menos a adesão pessoal de Pedro a um Cristo como este. Pedro
pensava que o Messias vinha para triunfar, ter sucesso, estabelecer um mundo de
excelência para os judeus, libertando-os dos seus adversários. Findariam todas
as necessidades, discórdias e disputas, a guerra, a doença e a velhice, tudo o
que perturba e diminui os níveis da nossa vida. Viria a plenitude da vida. Assim,
Pedro e os discípulos seguiam Jesus, mas não por andarem à procura de novas
ideias religiosas ou encontrar novas formas de orar. Portanto, se os discípulos
de Jesus fossem dizer que Ele era o Cristo, o que diriam era
o que pensavam e que os circunstantes perceberiam. Criariam uma falsa onda de
entusiasmo popular.
Ora,
o caminho de Jesus é paradoxal e provocatório. Pedro demorou tempo a percebê-lo
e equivocou-se várias vezes. Não queria que Jesus lhe lavasse os pés. No horto,
alegadamente para defender o Mestre, cortou uma orelha ao criado do Sumo-sacerdote,
negou Cristo, chorou e fugiu. Mas, como diz Dom António Couto, “atingido em
cheio pela graça, seguiu Jesus apaixonadamente até ao sangue, não apenas com os
pés”. Enfim, acabou por se deixar seduzir pelo Senhor como Jeremias e, a instâncias
de Jesus, formulou a tríplice confissão de amor, a partir da qual ganhou a incumbência
do pastoreio e de seguir Jesus até ao fim (cf Jo 21,15-23). Com efeito, Jeremias (vd Jr 20,7-9), olhando para o seu percurso de vida, confessa que foi
irresistivelmente seduzido pelo seu Deus, para o acusar, no limite da
blasfémia, de velhacaria e engano, pois o abandonou à sua sorte, pondo-lhe na
boca palavras violentas e deixando-o à mercê dos opressores, que zombavam dele
e o torturavam sem cessar. Jeremias confessa-se desanimado e tentado a
abandonar a sua missão. Porém, a Palavra de Deus volta a assaltá-lo como fogo,
uma lava ardente a que não se pode fugir, pois arde dentro de nós.
***
O que sucedeu
com Pedro aconteceu ao longo da História da Igreja (e continua a acontecer), onde campeiam, tantas vezes, ideias
pessoais e de grupo, em lugar da nudez evangélica e seus apelos. Daí as
heresias e os cismas; daí o clericalismo e o carreirismo; daí a luta e a
liderança do poder ou a aliança com ele; daí a acumulação das riquezas a
eclipsar a pobreza evangélica; daí os protagonismos queridos, procurados e
impostos; daí o empilhamento de normas jurídicas, ritualismos e imposições morais
sobre os ombros dos crentes, depauperando a ação pastoral e olvidando o essencial
da Boa Nova; daí a colagem nas dioceses e paróquias; daí o relevo à palavra gongórica
do pregador em detrimento da Palavra de Deus; daí a Igreja-Estado a sobrepor-se
à Igreja-serviço-comunidade-comunhão; daí, em termos pessoais, tanto pecado, egoísmo
e participação nas estruturas económicas, sociais e políticas de pecado, com
grave divórcio entre a vida e a fé! Por isso, é pertinente que Jesus pacientemente
diga à Igreja e aos seus membros que se ponham atrás dele e não queiram atravessar-se
à sua frente nem superá-Lo em altura, comprimento, largura e profundidade. Que nos
corrija com a sua grande paciência.
2020.08.30 –
Louro de Carvalho
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