segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Divisão na hierarquia católica no Brasil vem à tona com Bolsonaro

Há uns tempos a esta parte, dois bispos apontavam a existência duma articulação entre os integrantes da ala progressista da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) para uma frente de modo a influir no debate com o Governo de Jair Bolsonaro. E recentemente, 152 bispos, arcebispos e bispos eméritos divulgaram a Carta ao Povo de Deus, com duras críticas ao Presidente, sobretudo face à pandemia de covid-19, e ao bolsonarismo, referindo:  

Assistimos sistematicamente a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela covid-19 (...) e os conchavos políticos que visam a manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja.”. 

Segundo os bispos, tal movimentação não está restrita à CNBB, mas tem encontrado eco em paróquias e igrejas do país, onde padres se reclamam objeto de perseguição política, devido às críticas ao Governo em missas ou em conversas com fiéis.

O texto é assinado por hierarcas de peso, entre outros, Dom Claudio Hummes, Arcebispo emérito de São Paulo, Dom Angélico Sandalo Bernardino, Bispo emérito de Blumenau, Dom Edson Taschetto Damian, Bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), Dom Alberto Taveira Corrêa, Arcebispo de Belém (PA), Dom Erwin Krautler, Bispo emérito do Xingu (PA), Dom Joaquim Giovani Mol, Bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG), e Dom Leonardi Ulrich, Arcebispo de Manaus (AM) e ex-secretário-geral da CNBB.

Escreveram a Carta, “interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo” e convictos de que “a proposta do Evangelho não consiste apenas numa relação pessoal com Deus” e de que a reposta de amor não pode ser entendida “como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados” ou “uma série de ações destinadas apenas para tranquilizar a própria consciência, mas de que “a proposta é o Reino de Deus”, que “é dom, compromisso e meta”.

Sem “interesses político-partidários, económicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza”, o único interesse destes bispos “é o Reino de Deus, presente na nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor”, aqui e agora num dos períodos mais difíceis da história, “comparado a uma ‘tempestade perfeita’, que dolorosamente, precisa de ser atravessada” e que é causada pela “combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República”, “resultando numa profunda crise política e de governança”.

Este cenário, segundo os bispos, “exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados” e a apresentação de “propostas e pactos objetivos” para superar os “grandes desafios, em favor da vida”, sobretudo dos “segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta”.

Não comportando indiferença esta realidade, quem se coloca na defesa da vida tem de posicionar-se claramente em relação a este cenário. As recentes escolhas políticas e “a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo”. São “mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum”, ameaçada pela ação “inescrupulosa” de “madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores dum desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra”, sendo que todos “seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador”.

E os bispos denunciam o absurdo e a inutilidade dos “discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela covid-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconómico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam a manutenção do poder a qualquer preço”. São discursos não baseados nos princípios éticos e morais e não suportam o confronto com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento d’ Aquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Percebem claramente os bispos a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar estas crises e sustentam que a reforma trabalhista e a previdenciária se mostraram “como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo”. Com efeito, quando o Brasil precisa de “medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberalizaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controlo de desmatamentos”, o atual sistema governativonão coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos”, mas a defesa intransigente dos interesses duma “economia que mata”, centrada “no mercado e no lucro a qualquer preço”. Antes, colocando-se contra a ciência, os estados, os municípios e os poderes da República, aproxima-se do totalitarismo e utiliza “expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação”.

Ficam os bispos signatários da carta estarrecidos pelo desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia” – desprezo visível na demonstração de raiva pela educação pública e no apelo a ideias obscurantistas; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo facto de o Brasil ocupar um dos lugares cimeiros em número de infetados e mortos pela pandemia; na tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; e na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e profissionais da saúde que adoecem nos esforços para salvar vidas.

Na economia, o Ministro desdenha dos pequenos empresários e privilegia os grandes grupos económicos, quando a recessão iminente poderá fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Descurando os apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo demonstra omissão, apatia e repulsa pelos mais pobres e vulneráveis, os mais atingidos pela pandemia, a ponto de o Presidente, no Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19, aprovado no legislativo federal, ter vetado o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea aos territórios indígenas. Até a religião serve para manipulação de sentimentos e crenças, provocação de divisões, difusão de ódio, criação de tensões entre igrejas e seus líderes.

Neste tempo da pandemia que obriga ao distanciamento social e ensina um “novo normal”, os bispos sentem que o povo está a redescobrir a casa e a família como Igreja doméstica e espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. Por isso, apelam ao despertar do sono que imobiliza e faz das pessoas “meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam”. E, com o apóstolo Paulo, alertam que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz(Rm 13,12).

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A Carta não foi publicada de imediato, mas aguardou o parecer do Conselho Permanente da CNBB, que remeteu do teor da mesma para a responsabilidade dos signatários.  

A seguir, o panorama eclesial divide-se: bispos da ala progressista dizem que o Presidente “incita o ódio” e um padre chama-o de “bandido”; os donos de emissoras católicas oferecem “notícias positivas” ao Governo em troca de subsídios; e a cúpula da hierarquia demarca-se.

Entretanto, 1058 padres do país assinaram um manifesto a favor da carta dos 152 arcebispos e bispos sublinhando “a omissão, apatia e ‘rechaço’ pelos mais pobres”, além da “incapacidade para enfrentar crises” e o “desprezo pela educação, cultura, saúde e diplomacia”, gerando uma “crise sem precedentes na saúde” e “um avassalador colapso na economia” graças “à tensão provocada em grande medida pelo Presidente da República”.

O professor Flávio Sofiati, especialista em sociologia da religião da Universidade Federal de Goiás, disse ao DN que “não é novidade a divisão política da igreja católica” mas que agora, por o Governo ter caraterísticas fascistas, ela está a intensificar-se, tornando-se “mais mediática”.

E não é só a Carta que está a mostrar a divisão. Na missa de 2 de julho na cidade de Artur Nogueira, a 150 km de São Paulo, o Padre Edson Tagliaferro disse que “este Governo não presta” e que quem votou em Bolsonaro deveria confessar-se e “pedir perdão pelo pecado que cometeu, elegendo um bandido” – mensagem que chegou à internet. E, entre os ataques e as perseguições, Tagliaferro foi criticado por Dom José Palau, o Bispo da região, que pediu desculpa aos atingidos “até porque as opiniões não representam a diocese”. Porém, o padre recebeu apoio de 300 párocos.

A 21 de maio, Bolsonaro fizera uma videoconferência com proprietários de emissoras de televisão católicas, que pediram mais investimentos do Governo em troca de “media positiva” nos seus noticiários, “levando ao conhecimento da população católica, ampla maioria desse país, aquilo de bom que o governo pode estar a realizar e fazendo pelo nosso povo”, como disse o Padre Welinton Silva, da TV Pai Eterno, secundado pelo Padre Reginaldo Manzotti, da TV Evangelizar. Tudo isto deixou Bolsonaro “fortalecido” e a prometer ajuda. Todavia, a CNBB disse desconhecer a realização da reunião.

Diana Maia, da Articulação das Pastorais Sociais de Fortaleza, reagiu negativamente:

Para nós é trair o próprio evangelho, uma vez que o atual Presidente demonstra ser insensível com a dor de milhares de famílias que estão a perder os seus entes por conta da pandemia da covid-19, desempregados, indígenas que são assassinados, pessoas em situação de rua (...). Não podíamos ficar calados diante dum ato que atenta contra a própria fé católica, por isso, decidimos de início expressar nossa indignação e posicionamento nessa carta.”.

Flávio Sofiati sustenta que a CBNN está muito dividida: o presidente, Dom Walmor de Azevedo, é de esquerda; o secretário-geral, Dom Joel Amado é de direita. E, adianta que, em sua opinião, um terço da CNBB é de esquerda, outro de direita e um terceiro é moderado. E adverte que “é importante notar que temos, não um, mas alguns catolicismos, tendências, faces, modelos, cenários”. E distingue 4 correntes: a tradicionalista, conservadora no método e no conteúdo; a carismática, conservadora no conteúdo, mas moderna no método, que integra padres cantores e faz ações simpáticas; a reformista, com padres ligados a setores da educação ou dos direitos humanos; e a radical, da teologia da libertação (corrente sul-americana ligada à esquerda). Mais refere que esta última “foi muito próxima de Lula”, ao passo que a ala da renovação carismática se aproximou de Fernando Henrique Cardoso – embora se trate de “uma questão política”, pois, “na prática, na vida real, na missa comum, estas fronteiras transbordam”.

Outro divisor claro é o Papa Francisco. Lula, em recente entrevista aos correspondentes estrangeiros em são Paulo, disse que “ele sabe do que fala, ele tem lado, o lado dos pobres e desprotegidos”, enquanto Bolsonaro acentua que “o Papa é argentino, mas Deus é brasileiro”.

A título de curiosidade, mas com significado político, anote-se que Bolsonaro se aproximou do protestantismo aquando das últimas eleições que acabaria por vencer, por ter sentido pontos de contacto entre o seu programa e as pregações da maioria dos pastores e reverendos.

No início de 2018, em pré-campanha eleitoral, católico de formação, foi batizado pela segunda vez, agora pelo Pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão, nas águas do rio Jordão, em Israel. E, em setembro de 2019, teve um terceiro batismo, com Edir Macedo, Bispo da IURD, que o chamou ao altar num culto e, pondo-lhe as duas mãos na cabeça, disse “fazer uso de toda a autoridade concedida por Deus para abençoar este homem, para lhe dar sabedoria, para que este país seja transformado, para que faça um novo Brasil”.

Sofiati alerta para o facto de “o mundo, sobretudo o Sul Global, estar em processo de pentecostalismo, estimando-se que dos 2,2 mil milhões de cristãos, 600 milhões (uns 25%) sejam pentecostais. E, no Brasil, segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no próximo ano, fiéis do Papa podem somar menos de metade da população do ainda “maior país católico do mundo”, sendo que, em 2032, o estudo aponta para uma ultrapassagem dos católicos pelos pentecostais.

E Sofiati recorda que “as lideranças evangélicas estão com ​​​​​​Bolsonaro mas, ao invés das católicas, estão sempre com o poder”, pois estiveram com Fernando Henrique Cardoso e Lula.

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É pena que a hierarquia eclesiástica esteja dividida em momento de crise e que a causa da divisão seja política e mercantilista. Não pode a sujeição ao poder ou ao dinheiro, para sobrevivência de instituições, fazer o jeito informativo ao Governo manipulando as pessoas mais fragilizadas. Onde está a força do Reino de Deus, quando a mesquinhez do comodismo e do servilismo faz abandonar as ovelhas às garras do lobo? Em vez da divisão, precisava-se de união e, pelo fulgor do Reino, precisa-se de audácia, da audácia dos mártires se necessário for.   

2020.07. 03 – Louro de Carvalho


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