A perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 16,13-19), proclamada no XXI domingo do Tempo Comum no Ano A, comporta um
episódio com dois momentos interligados: a confissão de fé de Pedro (vv 13-16), comum em Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21); e a promessa feita a Pedro (vv. 17-19), exclusiva de Mateus, pois em João (cf Jo 21,15,23) o pastoreio estriba-se no amor.
O episódio ocorreu em Cesareia de Filipe, cidade construída por Filipe, filho
de Herodes, o Grande, em honra de César Augusto, nas faldas do Monte Hermon, a
uns 40 quilómetros a Nordeste do Lago de Genesaré.
São duas as perguntas de Jesus: “Quem dizem os homens…? E vós,
quem dizeis que Eu sou?” (Tína légousin hoi ánthropoi…? Hymeîs
dè tína me légete eînai?). As
respostas às perguntas de Jesus, pessoa tão singular, surpreendente e
apaixonante, podem ser variadas e até contraditórias – os homens daquele tempo
consideravam-no um convocado por Deus para uma missão especial como a dos
outros profetas –, mas só uma é a certa, a resposta de Pedro, “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo” (sy eî ho Khristòs, ho uiòs thoû Theoû
thoû zôntos), a resposta esclarecida da fé,
resposta que Jesus aprova: “Feliz de ti, Simão”. Messias é a
forma hebraica do texto original grego, Cristo, que quer
dizer “ungido” (os reis eram ungidos com azeite na
cabeça ao serem investidos; hoje os bispos
também o são). Jesus é o
Rei (ungido) anunciado pelos Profetas e esperado
pelo povo. Por isso, quando se diz Jesus Cristo, confessa-se a mesma fé de Pedro; reconhecer que Jesus é o Cristo tem um
sentido denso e profundo, ou seja, o de Filho de Deus, num sentido que ultrapassa
o corrente e que só o dom da fé faz descobrir, segundo as palavras de Jesus: “Não foram a carne e o sangue que to revelaram”, mas “o meu Pai que está nos céus”
(ho patêr moû ho en toîs
ouranoîs). A fé de Pedro, como a nossa, não procede
do mero raciocínio humano ou sagacidade natural, mas da luz, que procede da
revelação de Deus. Com a expressão semítica “a carne e o sangue” (sàrx kaì haîma), designa-se o homem enquanto ser
débil e exposto ao erro.
Jesus não pretende medir a sua popularidade, mas levar os
discípulos à penetração no mistério messiânico e pô-los da rampa de lançamento
da Igreja. Assim, estas perguntas de Jesus e o que se lhes segue levam a que
este episódio ocupe lugar central no Evangelho
de Mateus, pois surge num momento de viragem, em que se começa a perfilar no
horizonte de Jesus o destino de cruz. Com efeito, após o êxito inicial do seu
ministério, Jesus experimenta a oposição dos líderes e algum desinteresse por
parte do Povo. Por isso, importa aprofundar a posição acolhedora da mensagem no
pequeno grupo – o dos discípulos indefetíveis.
“Tu és Pedro” (sy eî Pétros). O texto grego não conservou o termo aramaico “kêphãs”,
usado noutras passagens do NT (1 Cor 1,12; Gl 2,1-10) sem tradução, como é usual nos patronímicos. O evangelista quis usar o
nome corrente do Apóstolo Simão. É expressivo
o trocadilho: Pedro (Pétros) é a pedra em que
assenta a solidez de toda a Igreja. O apelido de Pedro = Pedra não existia na
época, nem em aramaico (Kêphãs), nem em grego (Pétros), nem em latim (Petrus), o que lhe reforça o significado
e originalidade. Ademais, o apelido também não era adequado para caraterizar o
temperamento do Apóstolo, pois o que distingue a sua personalidade não é a
dureza ou firmeza da pedra, mas a debilidade, mobilidade e até inconstância (cf Mt 14,28-31;
26,33-35.69-75; Gl 2,11-14). Se Jesus assim o denomina, é em razão
do cargo em que há de investi-lo.
“Edificarei a minha Igreja” (oikodomêsô
mou tèn ekklêsían). Jesus, ao dizer “a minha”, significa
que tem intenção de fundar uma nova comunidade de Yahwéh. “Ekklêsía” é
a tradução grega dos LXX para a designação hebraica da Comunidade de (qehal) Yahwéh, isto
é, “o povo escolhido de Deus reunido para o culto de Yahwéh” (cf Dt 23,2-4.9). Não se trata, pois, dum ramo do
judaísmo, mas duma realidade nova e independente. Jesus diz “minha”, porque
Ele a salva, a adquire, a convoca e nela realiza a presença divina, a aliança,
o sacrifício. “As portas do inferno não prevalecerão”. Esta linguagem
bíblica (Is 38,10; Sb16,13; cf Jb 38, 17; Sl 9,14) é sinédoque com que se designa a
parte pelo todo. Inferno tanto designa a
destruição e morte (xeol=inferi=os infernos), como Satanás e os poderes hostis a
Deus. Aquando da eleição de Bento XVI viu-se como estes poderes hostis à Igreja
de Cristo se assanharam.
“Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus”. O poder conferido a Pedro não é para
exercer no Céu (segundo a
crença popular), mas aqui,
onde a Igreja, Reino de Deus em começo e em construção, tem de ser edificada.
No judaísmo e no AT (cf
Is 22,22), lidar com as
chaves é prerrogativa de quem representa o dono para lhe administrar a
casa. Ligar-desligar significa tomar decisões com tal
autoridade e poder que
elas serão consideradas válidas por Deus nos Céus. Porém, o que Jesus diz a Pedro
nesta perícopa no atinente ao poder das chaves é o que diz a todos os Apóstolos
noutro passo (Mt 18,18), o que nada tira à autoridade suprema
de Pedro, a quem é dado um poder peculiar de “ligar e desligar” na Igreja, enquanto pedra fundamental ou rocha de
abrigo e pastor supremo a ser investido após a Ressurreição (Jo 21,15-17). Este primado de Pedro sobre toda a
Igreja não é conferido apenas a ele, mas a todos os seus sucessores, pois Jesus
fala a Pedro na qualidade de chefe duma edificação estável e perene. Ora, se o
edifício é perene, também o é a a pedra em que assenta. Por isso, o n.º 882 do Catecismo
da Igreja Católica (CIC), assegura que o Papa, Bispo de Roma
e sucessor de Pedro, “é princípio perpétuo e visível, e fundamento da unidade
que liga, entre si, todos os bispos com a multidão dos fiéis” (LG 23). E, em virtude do cargo de vigário de Cristo e pastor
de toda a Igreja, o romano pontífice tem sobre a Igreja um poder pleno, supremo
e universal, que pode sempre livremente exercer” (LG 22). Este é um dos pontos cruciais para que deve tender o diálogo ecuménico,
que terá saída feliz quando todos os cristãos compreenderem que o carisma
petrino, por vontade de Cristo, é o indispensável instrumento de união e
unidade na legítima diversidade. Mas é preciso fazer consistir a unidade
apenas no essencial, promovendo ao máximo a riqueza da diversidade a emergir
localmente.
Não pode, assim, deixar de se ver em Pedro o protótipo do discípulo, pois, ele representa e lidera a
comunidade que se reúne à volta de Jesus e que proclama a fé em Jesus como o Messias
e o Filho de Deus. É à comunidade, liderada e representada por Pedro, que Jesus
confia as chaves do Reino e o poder de acolher ou excluir, o que não invalida
que Pedro fosse a figura de referência para os primeiros cristãos desempenhando
papel de primeiro plano na animação da Igreja nascente, sobretudo nas
comunidades da Síria, a que se destina o Evangelho de Mateus.
***
Posto isto, há que esclarecer que a pedra sobre a qual Jesus
vai edificar a sua Igreja não é um bloco que faz tropeçar ou que possa
constituir um muro contra o qual se possa bater. Antes, na linha da tradição
bíblica, trata-se duma rocha que se constitui em sinal visível de firmeza, mas
também como gruta de acolhimento e abrigo e estrutura replicável (mesmo que em habitações, tendas ou
descampado) para tratar
quem se sinta ferido e precise de ajuda. Mais: nesta gruta acolhedora e exposta
à visibilidade universal, celebra-se a comunitariamente a vida humana que deriva
da vida divina criadora, que postula o retorno a si por parte dos homens
bafejados pelo dom da fé e constituídos em comunidade santificada e
santificante, evangelizada e evangelizadora, aberta a Deus e aos homens na
linha da caridade afetuosa e operante, na promoção da igualdade e da justiça e
no testemunho da misericórdia divina e portadora da esperança escatológica.
Exemplo imagético da Igreja fundada sobre a rocha será o
Santuário do Senhor Santo Cristo em Ferreira de Aves, do concelho de Sátão; e
da rocha como abrigo será o Santuário da Senhora da Lapa em Quintela, do concelho
de Sernancelhe. Neste, a imagem da Senhora está recolhida na gruta ou lapa e o
menino, o Filho está exposto à vista de todos no altar-mor sob a fraga. O gradeamento
que aprisiona o altar é que estraga a simbologia. Questões de segurança!
Por outro lado, a autoridade discipular vem de Deus, não para
se impor despoticamente ou espetacularmente ou dela nos servirmos, mas para com
ela servirmos os irmãos, devendo os líderes ser dedicados e afáveis, peritos em
comunicação e prontos à prestação de contas sobre o trabalho realizado,
promover a correção fraterna e sujeitar-se a ela.
Depois, é preciso que nos consciencializemos de que todos
somos Igreja por força do Batismo que nos foi ministrado na fé da Igreja de
Cristo – Igreja que é servida pelas pessoas humanas, mas que não é delas, mas
de Jesus Cristo, a verdadeira pedra angular do edifício espiritual ou cabeça (kephalê) do Corpo Místico. Todos poderíamos
ter ouvido o discurso do Mestre e aplicá-lo a cada um segundo a sua condição de
vida, pois todos temos o caráter (o Batismo imprime caráter ou o sinal indelével da pertença
ao Corpo de Cristo) discipular
e a vocação ao apostolado.
E cada um deve aceitar o serviço da autoridade que lhe foi
confiado. Assim, devem prestar o serviço de autoridade os pais, não abdicando
nunca da sua autoridade, pois, Se fecharem os olhos e encolherem os ombros à
procura duma simpatia barata, prestam um mau serviço aos filhos. Devem, antes, desenvolver
neles as virtudes humanas. O mesmo se diga dos professores na escola, dos
governantes, dos polícias, dos magistrados, de todos nós quando somos chamados
a escolher quem nos há de governar. E esta mesma exigência é para os que são
chamados a servir os outros, na Igreja, ajudando-os a entrar em comunhão com o
Pai, por Cristo, no Espírito Santo, nela crescer e nela permanecer.
Por fim, é de anotar que prestaremos contas da administração
que fizermos: se com a nossa autoridade fechamos sistematicamente as portas aos
outros ou se lhas abrimos de par em par sempre precisam, se os mandamos pela
porta fora ou se os acolhemos e os mandamos embora só quando lhes respondemos com
respostas de Deus e lhes garantimos normal autonomia.
Em todas as pessoas há a tentação de comprar a simpatia com
favores, com encolher de ombros, com fechar os olhos, com adquirir ou pagar
favores usando o cargo que desempenham ou a autoridade em que são investidas. Disso
prestaremos contas, pois a autoridade não pode ser associada à corrupção,
venalidade, aproveitamento do serviço da autoridade para a concretização de
finalidades egoístas, interesseiras, pessoais, mas para servir, de forma não
interesseira e imparcial, as pessoas e comunidades sempre com vista ao bem
comum e ao lídimo bem-estar de cada um.
Enfim, o
que João Batista fez como precursor do Messias têm de o fazer os cristãos como
seguidores de Jesus e participantes da sua missão messiânica, iluminados pela
doutrina de Jesus, fortalecidos pelo testemunho da ressurreição e portadores da
esperança escatológica que nos anima como peregrinos neste mundo a caminho do
Céu, nossa pátria definitiva.
Por Cristo, com Cristo e em Cristo…
2020.08.23 – Louro de Carvalho
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