Morreu, com 92 anos de idade, a 8 de agosto, na Santa
Casa de Batatais, no interior de São Paulo, Dom Pedro Casaldáliga, o bispo das causas
sociais e defensor da Amazónia, um homem que é um pedaço da História do
Brasil – notícia
que foi confirmada pela Prelazia de São Félix do Araguaia, referindo que
o Bispo emérito estava com infeção no pulmão e insuficiência respiratória
agravada pelo Parkinson, doença que o acometia há mais de 10 anos.
Os testes
feitos não acusaram a presença do novo coronavírus, causador da covid-19.
O anúncio da
morte foi feito em comunicado conjunto pela Prelazia de São Félix do Araguaia (MG), a Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado
Coração de Maria (Claretianos) e a Ordem
de Santo Agostinho (Agostinianos).
Em nota, Dom
Walmor Oliveira de Azevedo, Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte e
presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), lamentou a perda, vincando:
“Dom Pedro Casaldáliga pregou o Evangelho em cada atitude. Transmitiu as
lições de Jesus com o seu jeito de ser. A coragem que marcou a sua vida e o fez
sempre estar, incondicionalmente, ao lado dos pobres é própria de quem cultiva
no coração uma fé sólida, inabalável. (…) Dom
Pedro Casaldáliga está junto de Deus, inscrito na história do Brasil e no
coração de quem verdadeiramente professa a fé em Jesus Cristo.”.
E Dom Walmor
pede orações para “que o seu exemplo
possa inspirar cada vez mais atitudes corajosas, sobretudo neste grave momento
da nossa história, quando os povos tradicionais estão especialmente ameaçados –
além dos já conhecidos interesses económicos – e sofrem com a atual pandemia”.
Conforme pesquisa da Província Agostiniana, em Belo Horizonte, Dom Pedro
Casaldáliga, desde a década de 1970, incluindo o período da ditadura militar,
teve o trabalho pastoral ligado a causas como a defesa dos direitos dos povos
indígenas e contra a violência dos conflitos agrários. Os religiosos que
conviveram com ele descrevem-no “como radicalmente livre e homem de fé,
que só aceitou ter geladeira em casa depois que os pobres da região a puderam
ter”. A sua casa de piso de terra batida só teve melhorias depois que os mais
simples com quem convivia puderam também melhorar as suas casas. Era pedra no
sapato do autoritarismo.
Os freis
agostinianos, que cuidaram de Dom Pedro até aos últimos dias, lamentam a morte dele,
pois foram mais de 40 anos de caminhada amiga a viver na mesma casa, na missão
de São Félix. E, em nota, ressaltam que as causas que o bispo defendeu na sua
trajetória de 50 anos dedicados aos mais simples representam muito para a
região do Araguaia “e para a resistência dum povo que ainda vive diversos
conflitos fundiários e de violação dos direitos humanos”.
Até aos
últimos dias de vida, os freis agostinianos dedicaram-lhe atenção e cuidados em
tempo integral, com o apoio de médicos e equipa de enfermagem, principalmente
nos últimos anos, quando a sua saúde já estava muito fragilizada.
O palco do velório
é em três locais: Batatais (SP), onde o
corpo foi velado no dia 8, a partir das 15 horas, na capela do Centro
Universitário Claretiano, unidade educativa dirigida pelos Claretianos, com
Missa neste domingo aberta ao público em geral e transmitida ao vivo pelo link
https://youtu.be/spto8rbKye0, disponível para à transmissão por outros veículos
de comunicação; em Ribeirão Cascalheira (MT), onde o corpo será velado no Santuário dos Mártires, a partir do dia 10; e
em São Félix do Araguaia (MT), onde o
corpo será velado no Centro Comunitário Tia Irene e se procederá ao seu sepultamento.
Foi um outro
Dom Helder Câmara, “a voz dos que não têm voz”!
***
Pedro Casaldáliga, CMF, nascido Pere Casaldàliga i Pla, em Balsareny, Província de Barcelona, a 16 de fevereiro de
1928, radicado no Brasil desde 1968, é conhecido pela defesa dos
direitos humanos, especialmente dos povos indígenas e marginalizados, e pelas
suas posições políticas e religiosas a favor dos mais pobres, em torno do que
escreveu três dezenas de livros.
Ingressou, em
1943, na Congregação Claretiana (Congregação dos Missionários Filhos
do Imaculado Coração de Maria, abreviadamente CMF: Cordis Mariae Filiii) e recebeu a ordenação sacerdotal a 31 de maio de 1952,
em Montjuïc, Barcelona. Depois de ordenado, foi professor num colégio
claretiano em Barbastro, assessor dos Cursilhos de Cristandade e diretor
da Revista Iris.
Em 1968,
mudou-se para o Brasil para fundar uma missão claretiana no Estado do Mato
Grosso (MG), região com alto grau de analfabetismo,
marginalização social e concentração fundiária, onde eram comuns os
assassinatos. Logo no primeiro dia, encontrou no local quatro bebés mortos
deixados em caixas de sapato diante da sua casa para serem enterrados. Muitas
vezes, sem vinho e hóstia, improvisava as missas com cachaça e bolacha.
Foi
nomeado Administrador Apostólico da Prelazia de São Félix do Araguaia
(MG) a 27 de abril de 1970, ano em que publicou a primeira
das denúncias que o tornariam conhecido no país e fora dele, intitulada “Escravidão e Feudalismo no norte de Mato
Grosso”, a denunciar a situação da região de escravatura contemporânea, e
enviada às autoridades da Igreja e do Governo, pelo que passou a ser acusado de
agente comunista. Todavia, o Papa São Paulo VI nomeou-o Bispo da Prelazia
de São Félix do Araguaia (MG) a dia 27 de
agosto de 1971. A sua ordenação episcopal deu-se a 23 de outubro de
1971, pelas mãos de Dom Fernando Gomes dos Santos, Arcebispo de Goiânia,
de Dom Tomás Balduíno, OP, e Dom Juvenal Roriz, CSSR.
A sua
atividade como bispo teve as seguintes caraterísticas: evangelização sem colonialismos,
vinculada à promoção humana e à defesa dos direitos humanos dos mais
pobres; criação de comunidades eclesiais de base com líderes que
sejam fermento entre os pobres; encarnação na vida, nas lutas e esperanças
do povo; e estrutura participativa, corresponsável e democrática na diocese.
Outra caraterística marcante da sua atuação como bispo foi o facto de preferir
não utilizar os tradicionais trajes eclesiásticos: em vez da mitra, um
chapéu de palha; no lugar do báculo um cajado indígena; em vez do
anel de ouro, um anel de tucum (uma espécie de palmeira espinhosa) – que acabou por se tornar símbolo da Teologia da
Libertação.
Na década de
1970, ajudou a fundar o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Adepto da Teologia da Libertação, adotou como
lema para sua atividade pastoral: Nada possuir, nada carregar, nada
pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. É poeta, autor de várias
obras sobre antropologia, sociologia e ecologia.
Dom Pedro
foi alvo de inúmeras ameaças de morte. A mais grave, em 12 de outubro de 1976,
ocorreu em Ribeirão da Cascalheira (Mato Grosso). Ao ser informado que duas mulheres estavam a ser
torturadas na delegacia local, dirigiu-se até lá acompanhado do padre jesuíta
João Bosco Penido Burnier. Após forte discussão com os polícias, o padre
Burnier ameaçou denunciá-los às autoridades, sendo então agredido e, em
seguida, alvejado com um tiro na nuca. Após a missa de 7.º dia, a população
seguiu em procissão até a porta da delegacia, libertando os presos e destruindo
o prédio. Ali foi erigido, 10 anos depois, o Santuário dos Mártires da
Caminhada.
Mas houve outras ameaças. No início de dezembro de 2012, deixou a sua
residência em São Félix do Araguaia e foi levado por polícias federais para local
não revelado em razão da intensificação das ameaças de morte que lhe foram feitas
por invasores da Terra Indígena de Marãiwatsédé (norte de Mato Grosso), área ocupada pelos Xavantes até
aos anos 1960, década em que foram expulsos das suas terras para serem
ocupadas por grandes projetos agropecuários. A área foi depois comprada pela
italiana Agip, que, posteriormente, durante a Eco-92, anunciou que a
devolveria aos índios. No entanto, latifundiários, políticos e comerciantes da
região ocuparam a área e instalaram ali um povoado e os seus negócios. Vinte
anos depois, a desocupação foi iniciada, e sucedeu a intensificação das ameaças.
Por 5 vezes
foi alvo de processos de expulsão do Brasil pela ditadura militar, tendo saído
em sua defesa Dom Paulo Evaristo Arns, então Arcebispo de São Paulo, e o próprio
Papa São Paulo VI. Manteve relação tensa com o Papa São João Paulo II, ferrenho
crítico do comunismo, sendo defendido dessa vez pela CNBB. Em 1994, apoiou
a revolta de Chiapas, no México, afirmando que, quando o povo pega em
armas deve ser respeitado e compreendido. Em 1999, publicou a “Declaração de Amor à Revolução Total
de Cuba”. No ano 2000, foi agraciado com o título de Doutor Honoris
Causa pela Universidade Estadual de Campinas. Em 13 de setembro de
2012, recebeu honraria idêntica da Pontifícia Universidade Católica de
Goiás.
O seu amor à
liberdade inspirou a sua luta contra a centralização do governo da Igreja, pois
considerava que a visão de Roma é apenas uma entre as várias
possíveis e que a Igreja deveria ser uma comunhão de Igrejas. Achava que se
deve falar da Igreja que está em São Félix do Araguaia, assim como se fala da
Igreja que está em Roma, pois unidade não tem que ser sinónimo de
centralização, mas de descentralização.
Sofrendo de
Parkinson, apresentou a renúncia à Prelazia, conforme o Cân. 401 §1 do Código
de Direito Canónico, em 2005, renúncia aceite a 2 de fevereiro de 2005 pelo
Papa São João Paulo II. Porém, não perdeu a combatividade e a franqueza,
afirmando, por exemplo que o governo de Lula gosta mais dos ricos que dos
pobres, apoiando o MST e a Via Campesina, criticando a
hierarquia da Igreja que se devia abrir ao diálogo em vez de excomungar e
proibir, defendendo a ordenação de mulheres e afirmando ser contra
o celibato sacerdotal obrigatório.
Sucedeu-lhe Dom
Frei Leonardo Ulrich Steiner, OFM. Sobre as tensões no Vaticano para
a nomeação do sucessor, Dom Pedro fez questão de não deixar dúvidas a respeito:
“Há
algumas semanas, o Núncio Lorenzo Baldisseri enviou um bispo a perguntar-me
aonde eu iria, porque se eu ficasse em São Félix, causaria um constrangimento
ao novo bispo (...) Não posso deixar de dizer que sou contra o sistema atual de
nomeação de bispos que é secreto e autoritário, que não respeita a opinião das
igrejas locais. Parece-me um sistema pouco evangélico.”.
E, em
setembro de 2011, Dom Leonardo foi transferido para Brasília como Bispo
auxiliar e, para a Prelazia de
São Félix, foi nomeado Dom Adriano Ciocca Vasino.
Dele disse
Dilma Rousseff:
“É com muita tristeza que recebo a notícia
da morte de Dom Pedro Casaldáliga. Toda a sua vida foi de luta por Justiça
Social e em defesa dos mais humildes. Um homem de fé e de perseverança. Um
homem de esperança em meio à injustiça que envergonha a todos os que lutam por
dias melhores.”.
E Lula da Silva:
“Nossa terra, nosso povo perde hoje um
grande defensor e exemplo de vida generosa na luta por um mundo melhor, que nos
fará muita falta”.
***
Deus o recompense pelo serviço sofrido e inteiramente
devotado à causa do Evangelho, vendo Cristo a sofrer na pele e entranhas dos camponeses, ribeirinhos,
indígenas e quilombolas.
2020.08.09
– Louro de Carvalho
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