segunda-feira, 10 de agosto de 2020

É necessária a fé e a confiança em maré de tempestade

 

Refere a perícopa do Evangelho de Mateus proclamada e escutada na liturgia do XIX domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 14,22-33) que, “depois de ter saciado a fome à multidão,
Jesus obrigou
(ênánkasen) os discípulos a subir (embênai) para o barco (tò ploîon) e a esperá-Lo na outra margem, enquanto despedia a multidão”.

Chamou o Padre César Costa, passionista, a atenção para o facto de Jesus ter obrigado os discípulos a fazer algo, o que acontece aqui e só aqui.

Por sua vez, Dom António Couto, Bispo de Lamego, sustenta que, no relato de Mateus, é esta a única vez em que os discípulos vão sozinhos, sem Jesus, na barca. Não obstante, recorda que, na Igreja primitiva, a barca era considerada figura da Igreja, atribuindo-se o condão de ter sido o primeiro a exprimir por escrito esta temática. Na verdade, a barca ou o barco surge inúmeras vezes como um dos lugares em que o Mestre está e se movimenta no meio dos discípulos e a sós com eles. É espaço que Jesus condivide só com os discípulos, não entrando ali mais ninguém.

Entretanto, Jesus retira-se sozinho para o monte para rezar. Mateus refere-se à oração de Jesus só por duas vezes: aqui e no episódio do Getsémani (cf Mt 26,36), sendo que, em ambos os casos, a oração precede um momento de prova para os discípulos.

Desta vez, enquanto o Mestre dialoga com o Pai, os discípulos vão sozinhos em viagem pelo lago. Porém, essa viagem não é serena. É de noite e o barco, açoitado pelas ondas, navega dificilmente, com vento contrário. E os discípulos estão inquietos e preocupados, porque Jesus não está com eles, e não conseguem resolver o problema sozinhos, dado ímpeto das ondas e dos ventos em comparação com a fragilidade da embarcação. Que estas embarcações são extremamente periclitantes vê-se pela recente descoberta, na costa ocidental do Mar da Galileia, perto de Magdala, de uma barca de pesca do tempo de Jesus, com 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura – uma embarcação frágil, presa fácil das ondas. Por isso, o Papa, na sua reflexão do domingo, dia 9, aquando da recitação do Angelus com a multidão presente na Praça de São Pedro, referia que as tempestades e naufrágios eram frequentes no mar da Galileia.

O quadro refere-se à situação da comunidade a que se destina este Evangelho (que não será diferente da situação de qualquer comunidade cristã, em qualquer tempo e lugar). A noite representa a escuridão e a insegurança em que tantas vezes navegam na história os discípulos, sem saberem que caminhos percorrer nem para onde ir. As ondas que açoitam o barco são a metáfora da hostilidade do mundo, que bate insistentemente contra o barco em que viajam os discípulos. E os ventos contrários figuram a oposição do mundo à via de Jesus, via que os discípulos trilham e mostram.

Diz o Bispo de Lamego que a cena mostra que, sem Jesus, os discípulos não têm sucesso e correm perigo, o que serve de lição para os discípulos de todos os tempos, que precisam de viver sabendo que Ele está sempre presente no meio de nós, embora não de modo visível e sensível e mesmo que nos não apercebamos da sua presença. E a barca (ou barco) serve para atravessar o mar encapelado, que são as adversidades deste mundo, como a pandemia que nos aflige e condiciona nestes tempos e as perseguições que se abatem sobre os cristãos, de que são eloquente exemplo o recente assassinato do Padre Ricardo Cortez, em El Salvador, a 6 de agosto, e a morte de Dom Pedro Casaldáliga, perseguido e ameaçado em vida por causa da sua luta contra as injustiças que impiedosamente se abatem sobre os marginalizados pela pobreza e pelo não reconhecimento do seu direito à vez e à voz. Com efeito, como frisava Francisco na tarde do dia 27 de março frente à Praça de São Pedro deserta, comentando o texto paralelo de Marcos, com Jesus não é possível ainda não ter fé, ou como recordava o Padre César Costa, no dia 9 deste mês de agosto, é bom desafiar o Mestre a que faça que andemos sobre as águas, mas é importante não duvidar e fazer crescer a fé, não se contentando com uma fé pequenina.   

Os relatos de Mateus e de Marcos anotam a hora da chegada de Jesus a caminhar sobre as águas (um indicador divino): a 4.ª vigília da noite, ou seja entre as 3 e as 6 horas da manhã. Todavia, Mateus empresta ao episódio uma tonalidade própria, pois insere o diálogo de Pedro com Jesus. Também Pedro, a seu pedido, caminha sobre as águas seguindo a ordem de Jesus: “Vem!”.

Quantas vezes, na sua viagem pela história, os discípulos de Jesus se sentem perdidos e sozinhos, incapazes de enfrentar as tempestades que as forças da morte e da opressão (o mar) lançam contra eles! E é aí que Jesus manifesta a sua presença. Vai ao encontro dos discípulos “caminhando sobre o mar”. No contexto da catequese judaica, só Deus “caminha sobre o mar” (Jb 9,8b; 38,16; Sl 77,20); só Ele faz “tremer as águas e agitarem-se os abismos” (Sl 77,17); só Ele acalma as ondas e as tempestades (cf Sl 107,25-30). Jesus é, pois, o Deus que vela pelo seu Povo.

Quando os discípulos veem que alguém se aproxima, ficam com medo por julgarem que era um fantasma (phántasma). Mas Jesus, recomendando que não receiem, assume a expressão “sou Eu(egô eimí), que reproduz a fórmula de identificação com que Deus se apresenta aos homens no Antigo Testamento (cf Ex 3,14; Is 43,3.10-11); e eles ficam com a certeza de que nada têm a temer porque Jesus, o Deus que vence as forças adversas acompanha pari passu a sua caminhada histórica e dá-lhes a força para vencer a adversidade, a solidão, o descarte e a hostilidade.

Tendo desafiado Jesus, Pedro sai do barco e vai ao seu encontro; mas, assustando-se com a violência do vento, começa a afundar-se e pede a Jesus que o salve. E Jesus socorre-o, embora censure a sua pouca fé e dúvidas. Pedro caminha sobre a água como Jesus, mas não com poder próprio. O que faz assenta na Palavra de Jesus e na fé que o liga a Jesus, ou seja, faz o mesmo que Jesus enquanto permanece ligado a Jesus pela fé; mas, esmorecendo a fé, Pedro torna-se presa fácil de outras forças e sucumbirá à tempestade. Pedro como nós e nós como Pedro! Sentindo o perigo, Pedro grita: “Salva-me, Senhor!”. E logo sente a mão de Jesus a segurá-lo.

Pedro é o porta-voz da comunidade dos discípulos que vai no barco (a Igreja). O episódio reflete a fragilidade da fé dos discípulos, quando têm de enfrentar as forças adversas. Jesus comunicou-lhes o poder de vencerem os poderes deste mundo, que se opõem à vida, à libertação. Contudo, enquanto enfrentam as ondas da hostilidade, debatem-se entre a confiança em Jesus e o medo. Assim, Mateus refere-se à experiência dos discípulos que seguem o Mestre de forma decidida, mas que se deixam abalar ao chegarem as dificuldades, os sofrimentos, as perseguições. Então, começam a afundar-se no “mar” da dúvida e do desânimo. Não obstante, Jesus está para lhes dar a mão e os sustentar. E a desconfiança dos discípulos transforma-se em fé firme: “Alêthôs Theoû uiòs eî – “Tu és verdadeiramente o Filho de Deus(v. 33). É para aqui que converge todo o relato, para a confissão que reflete a fé dos verdadeiros discípulos, que veem em Jesus o Deus que vence o mar, o Senhor da vida e da história que acompanha a caminhada dos seus, que lhes dá a força para vencerem as forças da opressão e que lhes estende a mão quando eles estão desanimados não os deixando afundar.

É aqui o inverso de Mt 16,16. Em Cesareia de Filipe, quando os discípulos estavam baralhados sem saberem o que dizer de Jesus, Pedro adianta-se em nome de todos e diz: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo(Sý eî ho Khristòs ho uiòs toû Theoû toû zôntos). Aqui, depois de Pedro ter experimentado o perigo e a dúvida, são todos a proclamar comunitariamente a fé. Esta é, pois, pessoal e comunitária, ajudando a fé uns dos outros, com a palavra e com a vida.

É óbvio que os discípulos só fizeram a verdadeira descoberta de que Jesus é o Deus vencedor do pecado e da morte, após a Páscoa, quando perceberam plenamente o seu mistério (sabendo que não era “um fantasma”), sentiram a sua presença no meio da comunidade reunida, experimentaram a sua ajuda nos momentos difíceis da caminhada, compreenderam que lhes transmitia a força para enfrentarem as adversidades e a hostilidade do mundo, sentiram que Ele estava a estender-lhes a mão nos momentos de fraqueza, dificuldade, falta de fé – experiência que Mateus nos propõe.

***

Também Elias, “o fugitivo” (1Rs 19,9-13) nos surgiu nesta dominga. Porque todos o procuravam para lhe darem a morte, o profeta fugia de si, de todos e de tudo. O mundo deixou de o encantar e nem Deus parecia ser o mesmo.

Todavia, este profeta, que aparece sem pai nem mãe, apenas com Deus do seu lado (cf 1Rs 17,1-24), continua guiado e comandado por Deus, que o salva da morte no deserto, o faz subir ao Horeb (cf 1Rs 19,5-8) e o liberta das suas amarras, fazendo-o sair para fora do escuro e do medo (cf 1Rs 19,11) e, abrindo à sua frente um caminho novo, tenro e frágil, como o que espera o bebé a sair do ventre materno.

Assim, Elias, recém-libertado, assiste no Horeb à sequência teofânica: vento forte, terramoto, fogo – manifestações desatualizadas de Deus. Deus não estava no rugido do vento, no estrondo do terramoto, na voragem do fogo. Esteve no troar dos trovões do Sinai para Moisés receber as tábuas da Lei, como esteve na sarça-ardente para receber o mandato de ir libertar o Povo da escravidão do Egito. Mas agora estava “na brisa suave, na brisa ligeira, na brisa nova, na brisa nascente, na brisa fecunda, na brisa do Espírito (vd canção de Acílio Mendes e Maria Hermínia Laia Paulo), ou como diz Dom António Couto, “Elias ouve a voz de um fino silêncio! (1Rs 19,12b). É a voz dum “cortante silêncio, voz de Deus que arde e opera dentro de nós”. Também Jeremias sentia a Palavra de Deus a arder-lhe no coração como um fogo devorador, encerrado dentro dos ossos (cf Jr 20,9). Já Moisés descobrira a chama viva, que ardia no meio da sarça e não queimava, mas chamava (cf Ex 3,2-4). E os dois discípulos de Emaús sentiram o coração a arder devido à Palavra que abria caminho onde não havia caminho (cf Lc 24,32).

Ora, se Elias encontrou a Palavra nova na voz de um fino silêncio e o autor da Carta aos Hebreus compara esse “fino dizer” ou “escrever” a uma espada de dois gumes, um bisturi, que opera e limpa a esclerose do coração (cf Jo 15,3) e o zelo estéril, que rasga o âmago do homem e lhe deixa soltas as pregas do coração (cf Heb 4,12; Ap 1,16), agora os discípulos sentem a presença de Deus em Jesus no turbilhão das ondas e na fúria dos ventos, como hão de sentir a força de Deus nas línguas de fogo do Pentecostes subsequentes à como que rajada de vento (cf At 2,2.3).

Na verdade, há que encontrar Deus, não onde o queremos encontrar, mas onde Ele quer que O encontremos, na certeza de que Ele é desconcertante, mas Se compraz em estar convosco para nos ajudar e Se deliciar com a nossa presença amiga e festiva. Por isso, há que ter fé sempre e mostrar absoluta confiança na tempestade, na epidemia, na perseguição e no martírio; é preciso animar os débeis, os que que sofrem, os descartados, aqueles e aquelas a quem o mundo nega a vez e a voz. É do lado desses que Deus está preferencialmente. E se abraçarmos a pobreza?

2020.08.10 – Louro de Carvalho

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