Refere a
perícopa do Evangelho de Mateus proclamada e escutada na liturgia do XIX
domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 14,22-33) que,
“depois de ter saciado a fome à multidão,
Jesus obrigou (ênánkasen) os discípulos a subir (embênai) para o barco (tò ploîon) e a esperá-Lo na outra margem, enquanto despedia a multidão”.
Chamou o Padre César Costa, passionista, a atenção para o facto de Jesus
ter obrigado os discípulos a fazer algo, o que acontece aqui e só aqui.
Por sua vez, Dom António Couto, Bispo de Lamego, sustenta que, no relato
de Mateus, é esta a única vez em que os discípulos vão sozinhos, sem Jesus, na barca. Não
obstante, recorda que, na Igreja primitiva, a barca era considerada figura da
Igreja, atribuindo-se o condão de ter sido o primeiro a exprimir por escrito esta
temática. Na verdade, a barca ou o barco surge inúmeras vezes como um dos
lugares em que o Mestre está e se movimenta no meio dos discípulos e a sós com
eles. É espaço que Jesus condivide só com os discípulos, não entrando ali mais
ninguém.
Entretanto,
Jesus retira-se sozinho para o monte para rezar. Mateus
refere-se à oração de Jesus só por duas vezes: aqui e no episódio do Getsémani (cf Mt 26,36), sendo que, em
ambos os casos, a oração precede um momento de prova para os discípulos.
Desta vez, enquanto o Mestre dialoga com o Pai, os discípulos vão sozinhos
em viagem pelo lago. Porém, essa viagem não é serena. É de noite e o barco,
açoitado pelas ondas, navega dificilmente, com vento contrário. E os discípulos
estão inquietos e preocupados, porque Jesus não está com eles, e não conseguem resolver o problema sozinhos,
dado ímpeto das ondas e dos ventos em comparação com a fragilidade da
embarcação. Que estas embarcações são extremamente periclitantes vê-se pela
recente descoberta, na costa ocidental do Mar da Galileia, perto de Magdala, de
uma barca de pesca do tempo de Jesus, com 8 metros de comprimento por 2,5 metros
de largura – uma embarcação frágil, presa fácil das ondas. Por isso, o Papa, na
sua reflexão do domingo, dia 9, aquando da recitação do Angelus com a multidão presente
na Praça de São Pedro, referia que as tempestades e naufrágios eram frequentes
no mar da Galileia.
O quadro refere-se à situação da comunidade a que se destina este Evangelho
(que não
será diferente da situação de qualquer comunidade cristã, em qualquer tempo e
lugar).
A noite representa a escuridão e a insegurança em que tantas vezes navegam na
história os discípulos, sem saberem que caminhos percorrer nem para onde ir. As
ondas que açoitam o barco são a metáfora da hostilidade do mundo, que bate
insistentemente contra o barco em que viajam os discípulos. E os ventos
contrários figuram a oposição do mundo à via de Jesus, via que os discípulos
trilham e mostram.
Diz o Bispo
de Lamego que a cena mostra que, sem Jesus, os discípulos não têm sucesso e
correm perigo, o que serve de lição para os discípulos de todos os tempos, que
precisam de viver sabendo que Ele está sempre presente no meio de nós, embora não
de modo visível e sensível e mesmo que nos não apercebamos da sua presença. E a
barca (ou barco) serve para atravessar o mar
encapelado, que são as adversidades deste mundo, como a pandemia que nos aflige
e condiciona nestes tempos e as perseguições que se abatem sobre os cristãos,
de que são eloquente exemplo o recente assassinato do Padre Ricardo Cortez, em
El Salvador, a 6 de agosto, e a morte de Dom Pedro Casaldáliga, perseguido e
ameaçado em vida por causa da sua luta contra as injustiças que impiedosamente se
abatem sobre os marginalizados pela pobreza e pelo não reconhecimento do seu
direito à vez e à voz. Com efeito, como frisava Francisco na tarde do dia 27 de
março frente à Praça de São Pedro deserta, comentando o texto paralelo de
Marcos, com Jesus não é possível ainda não ter fé, ou como recordava o Padre
César Costa, no dia 9 deste mês de agosto, é bom desafiar o Mestre a que faça
que andemos sobre as águas, mas é importante não duvidar e fazer crescer a fé,
não se contentando com uma fé pequenina.
Os relatos de
Mateus e de Marcos anotam a hora da chegada de Jesus a caminhar sobre as águas (um indicador divino): a 4.ª vigília da noite, ou seja
entre as 3 e as 6 horas da manhã. Todavia, Mateus empresta ao episódio uma
tonalidade própria, pois insere o diálogo de Pedro com Jesus. Também Pedro, a
seu pedido, caminha sobre as águas seguindo a ordem de Jesus: “Vem!”.
Quantas vezes, na sua viagem pela história, os discípulos de Jesus se
sentem perdidos e sozinhos, incapazes de enfrentar as tempestades que as forças
da morte e da opressão (o mar) lançam contra eles! E é aí que Jesus manifesta a sua
presença. Vai ao encontro dos discípulos “caminhando sobre o mar”. No contexto
da catequese judaica, só Deus “caminha sobre o mar” (Jb 9,8b; 38,16; Sl
77,20);
só Ele faz “tremer as águas e agitarem-se os abismos” (Sl 77,17); só Ele acalma as
ondas e as tempestades (cf Sl 107,25-30). Jesus é, pois, o Deus que vela pelo seu
Povo.
Quando os discípulos veem que alguém se aproxima, ficam com medo por
julgarem que era um fantasma (phántasma). Mas Jesus,
recomendando que não receiem, assume a expressão “sou Eu” (egô eimí), que reproduz a
fórmula de identificação com que Deus se apresenta aos homens no Antigo Testamento
(cf Ex
3,14; Is 43,3.10-11); e eles ficam com a certeza de que nada têm a temer porque
Jesus, o Deus que vence as forças adversas acompanha pari passu a sua caminhada histórica e dá-lhes a força para vencer
a adversidade, a solidão, o descarte e a hostilidade.
Tendo desafiado Jesus, Pedro sai do barco e vai ao seu encontro; mas,
assustando-se com a violência do vento, começa a afundar-se e pede a Jesus que
o salve. E Jesus socorre-o, embora censure a sua pouca fé e dúvidas. Pedro caminha sobre a água como
Jesus, mas não com poder próprio. O que faz assenta na Palavra de Jesus e na fé
que o liga a Jesus, ou seja, faz o mesmo que Jesus enquanto permanece ligado a
Jesus pela fé; mas, esmorecendo a fé, Pedro torna-se presa fácil de outras
forças e sucumbirá à tempestade. Pedro como nós e nós como Pedro! Sentindo o
perigo, Pedro grita: “Salva-me, Senhor!”.
E logo sente a mão de Jesus a segurá-lo.
Pedro é o porta-voz da comunidade dos discípulos que vai no barco (a Igreja). O episódio reflete
a fragilidade da fé dos discípulos, quando têm de enfrentar as forças adversas.
Jesus comunicou-lhes o poder de vencerem os poderes deste mundo, que se opõem à
vida, à libertação. Contudo, enquanto enfrentam as ondas da hostilidade,
debatem-se entre a confiança em Jesus e o medo. Assim, Mateus refere-se à
experiência dos discípulos que seguem o Mestre de forma decidida, mas que se
deixam abalar ao chegarem as dificuldades, os sofrimentos, as perseguições.
Então, começam a afundar-se no “mar” da dúvida e do desânimo. Não obstante, Jesus
está para lhes dar a mão e os sustentar. E a desconfiança dos
discípulos transforma-se em fé firme: “Alêthôs
Theoû uiòs eî” – “Tu és verdadeiramente o Filho de Deus” (v. 33). É para aqui que converge
todo o relato, para a confissão que reflete a fé dos verdadeiros discípulos,
que veem em Jesus o Deus que vence o mar, o Senhor da vida e da história que
acompanha a caminhada dos seus, que lhes dá a força para vencerem as forças da
opressão e que lhes estende a mão quando eles estão desanimados não os deixando
afundar.
É aqui o inverso de Mt 16,16. Em Cesareia de Filipe, quando os
discípulos estavam baralhados sem saberem o que dizer de Jesus, Pedro
adianta-se em nome de todos e diz: “Tu és
o Messias, o Filho de Deus vivo” (Sý eî
ho Khristòs ho uiòs toû Theoû toû zôntos). Aqui, depois de Pedro ter
experimentado o perigo e a dúvida, são todos a proclamar comunitariamente a fé.
Esta é, pois, pessoal e comunitária, ajudando a fé uns dos outros, com a
palavra e com a vida.
É óbvio que os discípulos só fizeram a verdadeira descoberta de que
Jesus é o Deus vencedor do pecado e da morte, após a Páscoa, quando perceberam
plenamente o seu mistério (sabendo que não era “um fantasma”), sentiram a sua
presença no meio da comunidade reunida, experimentaram a sua ajuda nos momentos
difíceis da caminhada, compreenderam que lhes transmitia a força para enfrentarem
as adversidades e a hostilidade do mundo, sentiram que Ele estava a
estender-lhes a mão nos momentos de fraqueza, dificuldade, falta de fé –
experiência que Mateus nos propõe.
***
Também Elias,
“o fugitivo” (1Rs
19,9-13) nos surgiu
nesta dominga. Porque todos o procuravam para lhe darem a morte, o profeta
fugia de si, de todos e de tudo. O mundo deixou de o encantar e nem Deus
parecia ser o mesmo.
Todavia, este
profeta, que aparece sem pai nem mãe, apenas com Deus do seu lado (cf 1Rs 17,1-24), continua guiado e comandado por
Deus, que o salva da morte no deserto, o faz subir ao Horeb (cf 1Rs 19,5-8) e o liberta das suas amarras,
fazendo-o sair para fora do escuro e do medo (cf 1Rs 19,11) e, abrindo à sua frente um caminho novo, tenro e frágil,
como o que espera o bebé a sair do ventre materno.
Assim, Elias,
recém-libertado, assiste no Horeb à sequência teofânica: vento forte,
terramoto, fogo – manifestações desatualizadas de Deus. Deus não estava no
rugido do vento, no estrondo do terramoto, na voragem do fogo. Esteve no troar
dos trovões do Sinai para Moisés receber as tábuas da Lei, como esteve na
sarça-ardente para receber o mandato de ir libertar o Povo da escravidão do
Egito. Mas agora estava “na brisa suave, na brisa ligeira, na brisa nova, na
brisa nascente, na brisa fecunda, na brisa do Espírito (vd canção de Acílio Mendes e Maria
Hermínia Laia Paulo), ou
como diz Dom António Couto, “Elias ouve a voz de um fino silêncio! (1Rs 19,12b). É a voz dum “cortante silêncio, voz
de Deus que arde e opera dentro de nós”. Também Jeremias sentia a Palavra de
Deus a arder-lhe no coração como um fogo devorador, encerrado dentro dos ossos (cf Jr 20,9). Já Moisés descobrira a chama viva,
que ardia no meio da sarça e não queimava, mas chamava (cf Ex 3,2-4). E os dois discípulos de Emaús
sentiram o coração a arder devido à Palavra que abria caminho onde não havia caminho
(cf Lc 24,32).
Ora, se Elias
encontrou a Palavra nova na voz de um fino silêncio e o autor da Carta aos
Hebreus compara esse “fino dizer” ou “escrever” a uma espada de dois gumes, um
bisturi, que opera e limpa a esclerose do coração (cf Jo 15,3) e o zelo estéril, que rasga o âmago
do homem e lhe deixa soltas as pregas do coração (cf Heb 4,12; Ap 1,16), agora os discípulos sentem a presença de Deus em
Jesus no turbilhão das ondas e na fúria dos ventos, como hão de sentir a força
de Deus nas línguas de fogo do Pentecostes subsequentes à como que rajada de
vento (cf At 2,2.3).
Na verdade,
há que encontrar Deus, não onde o queremos encontrar, mas onde Ele quer que O
encontremos, na certeza de que Ele é desconcertante, mas Se compraz em estar
convosco para nos ajudar e Se deliciar com a nossa presença amiga e festiva.
Por isso, há que ter fé sempre e mostrar absoluta confiança na tempestade, na
epidemia, na perseguição e no martírio; é preciso animar os débeis, os que que
sofrem, os descartados, aqueles e aquelas a quem o mundo nega a vez e a voz. É
do lado desses que Deus está preferencialmente. E se abraçarmos a pobreza?
2020.08.10 – Louro de Carvalho
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