Di-lo Dom
António Couto, Bispo de Lamego, segundo o Jornal
da Madeira, deste dia 15, a propósito da Solenidade da Assunção da Virgem
Santa Maria, em que se proclama o Evangelho da Visitação de Maria a Isabel e
Maria entoa o seu Magnificat (Lc 1,39-56).
O Cardeal Dom António Marto, que presidiu, ao final da manhã de hoje, no
Recinto de Oração do Santuário de Fátima, à Missa da solenidade, apresentou
Nossa Senhora como a mulher da alegria e o Mistério de hoje como “motivo de
conforto e consolação na luta entre o bem o mal”, “beleza do nosso
destino glorioso com Deus” e caminho de esperança para a cura de um “mundo
enfermo das pandemias sociais do individualismo, da indiferença e da corrupção”.
Embora o
dogma da Assunção tenha sido definido recentemente (1 de novembro de 1950, pelo Papa
Beato Pio XII com a Constituição Apostólica Munificentissimus
Deus), a fé dos
cristãos fez desta a maior e mais antiga festa de Maria, a Santa Mãe de Deus,
ainda que com diferentes denominações, mas com os mesmos os conteúdos, em toda
Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Quantas igrejas, paróquias e dioceses
a têm como Padroeira! E o recanto Peninsular português, terra de Santa Maria, não
é exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de
Deus e esperança da nossa frágil humanidade, que nos comunica a sua alegria
interior.
No
Oriente, é a festa da koímêsis, “dormição”; no
Ocidente, é a festa da análêmpsis, “assunção”. De modo semelhante, o Oriente denomina de aspasmós, “saudação” o episódio que preenche o Evangelho desta solenidade, que o Ocidente
denomina de visitatio (énteuxis), “visitação”, seguido da exsultatio (angallíama), “exultação”, tal como o episódio
que precede e motiva esta “visitação” ou “saudação” é designado no Ocidente por
nuntiatio (angelía), “anunciação”, e no Oriente por euangelismós, “evangelização”
(Lc 1,26-38). E o Bispo de Lamego diz poética e teologicamente:
“Verdadeiramente
é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito,
música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João
Batista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando
David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1Sm 22ss), um dia
dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as
cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.”.
Melhor que o
vento, Maria calcorreia caminhos pelos montes, saúda Isabel e canta as grandes
maravilhas de Deus no Magnificat (Megalýnei). Isabel bendiz Maria e o fruto do seu
ventre, não sem, antes, João Batista, haver dançado ao som dessa “música
inefável” no ventre materno. De facto, como diz Dom António Couto, Maria, ao
percorrer caminhos sobre os montes, faz-nos evocar o mensageiro de boas
notícias de Isaías (Is 52,7): “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas
novas a Sião”. E faz-nos evocar o amado do Cântico dos Cânticos (Ct 2,8), cantado pela amada: “A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes”. Assim,
Ela é a mensageira do Amor formoso, é a Senhora da Paz ou a Arca da Aliança, que
guarda em Si e transporta o Príncipe da Paz. Por isso, a aclamação de Isabel “Bendita és tu entre as mulheres e bendito o
fruto do teu ventre”, lembra o duplo “Bendito”
na aclamação de Judite (Jdt13,18). E a alegre pergunta de Isabel, “De onde me é dado que venha ter comigo a Mãe
do meu Senhor?”, estabelece o paralelo com a pergunta do admirado de David,
“De onde me é dado que venha ao meu
encontro a Arca do Senhor?” (2Sm 6,9), tal
como a prematura “dança de João” atualiza a adulta “dança de David” diante a Arca
do Senhor (2 Sm
6,5.14.16.21). E aqueles
“cerca de três meses” de permanência de Maria em casa de Zacarias e de Isabel,
regressando depois a sua casa, mais que a indicação de que Maria terá assistido
ao nascimento de João, que é narrado a seguir, evoca o episódio da permanência da
Arca do Senhor, por cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2Sm 6,11), o que remete para Maria como Arca
da Aliança, como é aclamada pelo Povo de Deus na ladainha lauretana.
E esta “Arca da Aliança” que
aparece no Apocalipse (Ap, 11,19) é a dupla figuração de Maria, a
portadora, guarda e acompanhante materna de Cristo, e da Igreja de que Maria é
mãe, protótipo e membro eminente, sendo que também a Igreja, por desígnio
divino, se faz mãe enquanto guardiã, cuidadora, transportadora e patenteadora
de Cristo ao mundo e do mundo a Cristo.
Fixando-nos no
cântico de Maria, é de olhá-lo
como o programa que Deus tinha começado a realizar desde o início, que
prosseguiu em Maria e que cumpre na Igreja, para todos os tempos. Com efeito,
se pela visitação que realizou na Judeia, Maria levava Jesus pelos
caminhos da terra, pela dormição e assunção, é Jesus que leva a sua e nossa Mãe
pelo caminho celeste, para o templo eterno, numa Visitação definitiva. E nós,
com Maria, proclamamos a obra grandiosa de Deus, que chama a humanidade a juntar-se
a ele pelo caminho da ressurreição. Em Maria, Ele já realizou a sua obra na
totalidade; com Ela, nós proclamamos: “dispersou
os soberbos, exaltou os humildes”. Humildes são os e as que creem no
cumprimento das palavras de Deus e se põem a caminho, os e as que acolhem até
ao mais íntimo do seu ser a Vida nova, Cristo, para O levarem ao nosso mundo.
Deus debruça-se sobre eles e cumpre maravilhas neles.
***
O Livro do
Apocalipse (Ap 11,19; 12,1-6.10) mostra, como se disse, como grande
sinal a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, a Igreja, Maria, grávida de um
Filho que nasceu, o sinal eloquente da presença viva e ativa de Deus no meio de
nós, a convocar-nos para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Na verdade,
no Livro, composto no ambiente das perseguições que se abatiam sobre a jovem e ainda
tão frágil Igreja, o profeta cristão evoca estes acontecimentos em linguagem
codificada, com os animais terrificantes a figurarem os perseguidores. E as suas visões revelam que Deus
arranca os seus fiéis de todas as formas de morte. Por transposição, a visão do
sinal grandioso é aplicada a Maria e à Igreja.
A Igreja, o novo Israel, representada pelo sinal
grandioso da mulher, como o sugere o número doze (as estrelas), nasce do lado adormecido de Cristo na cruz, novo Adão,
e pelo batismo torna-se a mãe dos novos filhos com a nova humanidade, fecundada
pelo Espírito, renova a Terra. O Dragão, que se divisa no Apocalipse como sinal
de matiz contrário ao da Mulher, é o perseguidor, que põe tudo em ação para
destruir o recém-nascido da mulher, que figura Cristo e todos os seus
seguidores – os filhos no Filho. E a sua ação tem a vantagem de nos manter unidos e atentos
no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem
toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte
onde brilha a esperança: “Agora
cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu
Cristo” (Ap 12,10).
E Maria é o protótipo e membro exemplar desta Igreja, de que é Mãe.
Assim, o destruidor não terá a última palavra, pois o
poder de Deus está em ação para proteger o seu Filho. E, nós, proclamando esta
mensagem na Assunção, reconhecemos que, no seguimento de Jesus e na pessoa de
Maria, a nova humanidade já é acolhida junto de Deus.
É, efetivamente,
o que nos ensina Paulo no final da 1.ª Carta aos Coríntios (15,20-27) trazendo um fulgurante selo de luz e
de esperança para a celebração deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à
vista a poeirada da iniquidade, falsidade e morte, vendo-se já em Maria, como
protótipo dos discípulos e seguidores de Jesus, a “assunção” da nossa frágil humanidade
em Cristo e, por Ele, até ao Pai. “Cristo foi ressuscitado (egêgertai:
perfeito passivo de egeírô) dos mortos, primícias (aparchê) dos que adormeceram” (1Cor 15,20). Ora, Ele, como o primeiro e
primícias dos ressuscitados, representa-nos e inclui-nos a todos, constituindo
a promessa e a certeza de que todos ressuscitaremos, pois, Nele, a morte foi
vencida para todos. Nestes termos, a nossa esperança fundamenta-se na certeza
deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá sentido a todos os acontecimentos
da Vida de Jesus, ao Antigo Testamento, à Igreja e à vida de todos os homens.
E não podemos esquecer que a
Assunção é uma forma privilegiada de Ressurreição, pois tem a origem na Páscoa
de Jesus e manifesta a emergência da nova humanidade, em que Cristo é a cabeça,
como novo Adão. Assim, todo o capítulo 15
da Carta paulina em referência é uma longa demonstração da ressurreição. E a
passagem escolhida para a solenidade da Assunção apresenta uma espécie de
genealogia da ressurreição e uma ordem de prioridade na participação neste mistério.
O primeiro é Jesus, que é o princípio da nova humanidade. Assim o apóstolo
designa-O como o novo Adão, mas distingue-O em absoluto do primeiro; este levou
a humanidade à morte, ao passo que o novo conduz para a vida os e as que O
seguem.
Embora o apóstolo não evoque Maria, se proclamamos
esta passagem na Assunção, é porque reconhecemos o lugar eminente da Mãe de
Deus no grande movimento da ressurreição.
E Dom António
Couto refere um lugar em Jerusalém que guarda esta memória. Descendo ao vale do
Cédron, que corre a Oriente da cidade, e deixando à direita o Getsémani e a
Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão
de Jesus, “chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada”,
o que resta duma grande Igreja construída pelos Cruzados. Por trás da fachada, uma
escadaria leva a uma cripta situada nas entranhas do vale. Aí se guarda um túmulo
do século I em forma de banco escavado na rocha, que a tradição cristã identifica
com o túmulo de Maria e que se apresenta degradado devido à tentação dos
peregrinos que não têm resistido a retirar um pedacinho da rocha que esteve em
contacto com o corpo santo da Bendita entre todas as mulheres. Na Solenidade da
Assunção, a escadaria escura fica iluminada como um tapete de luz, mercê das
velas que os fiéis colocam em cada degrau. E diz o Bispo de Lamego que, embora
direcionada para um túmulo, “a sensação que se cria é que aquela escadaria
descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua
coeli, ‘porta do céu’, como também cantamos na litania de Maria”.
***
Por fim, apraz-me
recordar, com Dom António Marto, que, “na luta que travamos entre o bem e o
mal, Maria não nos deixa sós”, mas a Senhora da Fé e da Esperança, intercede
por nós junto de Jesus com o clamor de Caná, “Não têm vinho”; e, na sua enorme caridade, está sempre connosco,
caminha connosco, luta connosco e adverte-nos, “Fazei o que Ele vos disser” (vd Jo 2,3.5). “Põe Ela em nós a esperança de vencer e não sucumbir à força do mal e
do pecado; põe em nós a confiança incondicional em Deus, que nos leva a esperar
confiadamente no futuro que Deus reserva para nós”. Mais: cria-se para nós uma
grande responsabilidade. Com efeito, “a exemplo de Maria, também cada um de nós
é chamado a ser obra-prima de Deus”, pois, “na Sua elevação aos Céus, Maria
proclama-nos que nada se perde do vamos construindo no nosso mundo de bom, de
belo, de justo, de santo, de verdadeiro e de autêntico, e que tudo isso será
assumido na glória com Deus”. E isto motiva-nos para o perpétuo Magnificat! Seja.
2020.08.15 – Louro de Carvalho
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