sábado, 15 de agosto de 2020

Levantou-se apressada movida pela boa notícia e pelo amor

 

Di-lo Dom António Couto, Bispo de Lamego, segundo o Jornal da Madeira, deste dia 15, a propósito da Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria, em que se proclama o Evangelho da Visitação de Maria a Isabel e Maria entoa o seu Magnificat (Lc 1,39-56).

O Cardeal Dom António Marto, que presidiu, ao final da manhã de hoje, no Recinto de Oração do Santuário de Fátima, à Missa da solenidade, apresentou Nossa Senhora como a mulher da alegria e o Mistério de hoje como “motivo de conforto e consolação na luta entre o bem o mal”,  “beleza do nosso destino glorioso com Deus” e caminho de esperança para a cura de um “mundo enfermo das pandemias sociais do individualismo, da indiferença e da corrupção”.

Embora o dogma da Assunção tenha sido definido recentemente (1 de novembro de 1950, pelo Papa Beato Pio XII com a Constituição Apostólica Munificentissimus Deus), a fé dos cristãos fez desta a maior e mais antiga festa de Maria, a Santa Mãe de Deus, ainda que com diferentes denominações, mas com os mesmos os conteúdos, em toda Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como Padroeira! E o recanto Peninsular português, terra de Santa Maria, não é exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade, que nos comunica a sua alegria interior.

No Oriente, é a festa da koímêsis, “dormição”; no Ocidente, é a festa da análêmpsis, “assunção”. De modo semelhante, o Oriente denomina de aspasmós, “saudação” o episódio que preenche o Evangelho desta solenidade, que o Ocidente denomina de visitatio (énteuxis), “visitação”, seguido da exsultatio (angallíama), “exultação”, tal como o episódio que precede e motiva esta “visitação” ou “saudação” é designado no Ocidente por nuntiatio (angelía), “anunciação”, e no Oriente por euangelismós, “evangelização” (Lc 1,26-38). E o Bispo de Lamego diz poética e teologicamente:

Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Batista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1Sm 22ss), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.”.

Melhor que o vento, Maria calcorreia caminhos pelos montes, saúda Isabel e canta as grandes maravilhas de Deus no Magnificat (Megalýnei). Isabel bendiz Maria e o fruto do seu ventre, não sem, antes, João Batista, haver dançado ao som dessa “música inefável” no ventre materno. De facto, como diz Dom António Couto, Maria, ao percorrer caminhos sobre os montes, faz-nos evocar o mensageiro de boas notícias de Isaías (Is 52,7): “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião”. E faz-nos evocar o amado do Cântico dos Cânticos (Ct 2,8), cantado pela amada: “A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes”. Assim, Ela é a mensageira do Amor formoso, é a Senhora da Paz ou a Arca da Aliança, que guarda em Si e transporta o Príncipe da Paz. Por isso, a aclamação de Isabel “Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre”, lembra o duplo “Bendito” na aclamação de Judite (Jdt13,18). E a alegre pergunta de Isabel, “De onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?”, estabelece o paralelo com a pergunta do admirado de David, “De onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?(2Sm 6,9), tal como a prematura “dança de João” atualiza a adulta “dança de David” diante a Arca do Senhor (2 Sm 6,5.14.16.21). E aqueles “cerca de três meses” de permanência de Maria em casa de Zacarias e de Isabel, regressando depois a sua casa, mais que a indicação de que Maria terá assistido ao nascimento de João, que é narrado a seguir, evoca o episódio da permanência da Arca do Senhor, por cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2Sm 6,11), o que remete para Maria como Arca da Aliança, como é aclamada pelo Povo de Deus na ladainha lauretana.

E esta “Arca da Aliança” que aparece no Apocalipse (Ap, 11,19) é a dupla figuração de Maria, a portadora, guarda e acompanhante materna de Cristo, e da Igreja de que Maria é mãe, protótipo e membro eminente, sendo que também a Igreja, por desígnio divino, se faz mãe enquanto guardiã, cuidadora, transportadora e patenteadora de Cristo ao mundo e do mundo a Cristo.

Fixando-nos no cântico de Maria, é de olhá-lo como o programa que Deus tinha começado a realizar desde o início, que prosseguiu em Maria e que cumpre na Igreja, para todos os tempos. Com efeito, se pela visitação que realizou na Judeia, Maria levava Jesus pelos caminhos da terra, pela dormição e assunção, é Jesus que leva a sua e nossa Mãe pelo caminho celeste, para o templo eterno, numa Visitação definitiva. E nós, com Maria, proclamamos a obra grandiosa de Deus, que chama a humanidade a juntar-se a ele pelo caminho da ressurreição. Em Maria, Ele já realizou a sua obra na totalidade; com Ela, nós proclamamos: “dispersou os soberbos, exaltou os humildes”. Humildes são os e as que creem no cumprimento das palavras de Deus e se põem a caminho, os e as que acolhem até ao mais íntimo do seu ser a Vida nova, Cristo, para O levarem ao nosso mundo. Deus debruça-se sobre eles e cumpre maravilhas neles.

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O Livro do Apocalipse (Ap 11,19; 12,1-6.10) mostra, como se disse, como grande sinal a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, a Igreja, Maria, grávida de um Filho que nasceu, o sinal eloquente da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, a convocar-nos para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Na verdade, no Livro, composto no ambiente das perseguições que se abatiam sobre a jovem e ainda tão frágil Igreja, o profeta cristão evoca estes acontecimentos em linguagem codificada, com os animais terrificantes a figurarem os perseguidores. E as suas visões revelam que Deus arranca os seus fiéis de todas as formas de morte. Por transposição, a visão do sinal grandioso é aplicada a Maria e à Igreja.

A Igreja, o novo Israel, representada pelo sinal grandioso da mulher, como o sugere o número doze (as estrelas), nasce do lado adormecido de Cristo na cruz, novo Adão, e pelo batismo torna-se a mãe dos novos filhos com a nova humanidade, fecundada pelo Espírito, renova a Terra. O Dragão, que se divisa no Apocalipse como sinal de matiz contrário ao da Mulher, é o perseguidor, que põe tudo em ação para destruir o recém-nascido da mulher, que figura Cristo e todos os seus seguidores – os filhos no Filho. E a sua ação tem a vantagem de nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: “Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo(Ap 12,10). E Maria é o protótipo e membro exemplar desta Igreja, de que é Mãe.

Assim, o destruidor não terá a última palavra, pois o poder de Deus está em ação para proteger o seu Filho. E, nós, proclamando esta mensagem na Assunção, reconhecemos que, no seguimento de Jesus e na pessoa de Maria, a nova humanidade já é acolhida junto de Deus.

É, efetivamente, o que nos ensina Paulo no final da 1.ª Carta aos Coríntios (15,20-27) trazendo um fulgurante selo de luz e de esperança para a celebração deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeirada da iniquidade, falsidade e morte, vendo-se já em Maria, como protótipo dos discípulos e seguidores de Jesus, a “assunção” da nossa frágil humanidade em Cristo e, por Ele, até ao Pai. “Cristo foi ressuscitado (egêgertai: perfeito passivo de egeírô) dos mortos, primícias (aparchê) dos que adormeceram” (1Cor 15,20). Ora, Ele, como o primeiro e primícias dos ressuscitados, representa-nos e inclui-nos a todos, constituindo a promessa e a certeza de que todos ressuscitaremos, pois, Nele, a morte foi vencida para todos. Nestes termos, a nossa esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá sentido a todos os acontecimentos da Vida de Jesus, ao Antigo Testamento, à Igreja e à vida de todos os homens.

E não podemos esquecer que a Assunção é uma forma privilegiada de Ressurreição, pois tem a origem na Páscoa de Jesus e manifesta a emergência da nova humanidade, em que Cristo é a cabeça, como novo Adão. Assim, todo o capítulo 15 da Carta paulina em referência é uma longa demonstração da ressurreição. E a passagem escolhida para a solenidade da Assunção apresenta uma espécie de genealogia da ressurreição e uma ordem de prioridade na participação neste mistério. O primeiro é Jesus, que é o princípio da nova humanidade. Assim o apóstolo designa-O como o novo Adão, mas distingue-O em absoluto do primeiro; este levou a humanidade à morte, ao passo que o novo conduz para a vida os e as que O seguem.

Embora o apóstolo não evoque Maria, se proclamamos esta passagem na Assunção, é porque reconhecemos o lugar eminente da Mãe de Deus no grande movimento da ressurreição.

E Dom António Couto refere um lugar em Jerusalém que guarda esta memória. Descendo ao vale do Cédron, que corre a Oriente da cidade, e deixando à direita o Getsémani e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, “chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada”, o que resta duma grande Igreja construída pelos Cruzados. Por trás da fachada, uma escadaria leva a uma cripta situada nas entranhas do vale. Aí se guarda um túmulo do século I em forma de banco escavado na rocha, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria e que se apresenta degradado devido à tentação dos peregrinos que não têm resistido a retirar um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo santo da Bendita entre todas as mulheres. Na Solenidade da Assunção, a escadaria escura fica iluminada como um tapete de luz, mercê das velas que os fiéis colocam em cada degrau. E diz o Bispo de Lamego que, embora direcionada para um túmulo, “a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, ‘porta do céu’, como também cantamos na litania de Maria”.

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Por fim, apraz-me recordar, com Dom António Marto, que, “na luta que travamos entre o bem e o mal, Maria não nos deixa sós”, mas a Senhora da Fé e da Esperança, intercede por nós junto de Jesus com o clamor de Caná, “Não têm vinho”; e, na sua enorme caridade, está sempre connosco, caminha connosco, luta connosco e adverte-nos, “Fazei o que Ele vos disser(vd Jo 2,3.5). “Põe Ela em nós a esperança de vencer e não sucumbir à força do mal e do pecado; põe em nós a confiança incondicional em Deus, que nos leva a esperar confiadamente no futuro que Deus reserva para nós”. Mais: cria-se para nós uma grande responsabilidade. Com efeito, “a exemplo de Maria, também cada um de nós é chamado a ser obra-prima de Deus”, pois, “na Sua elevação aos Céus, Maria proclama-nos que nada se perde do vamos construindo no nosso mundo de bom, de belo, de justo, de santo, de verdadeiro e de autêntico, e que tudo isso será assumido na glória com Deus”. E isto motiva-nos para o perpétuo Magnificat! Seja.

2020.08.15 – Louro de Carvalho

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