sábado, 8 de agosto de 2020

Sobre fórmulas alternativas à prescrita para a celebração do Batismo

 

Como consta do boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, de 6 de agosto, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) publicou uma Nota de 24 de junho do corrente ano, pela qual responde a dúvidas sobre a validade de fórmulas alternativas à prescrita nos livros litúrgicos para exprimir a forma do Batismo no ato da sua celebração, tendo as respostas sido aprovadas pelo Santo Padre em audiência concedida ao Cardeal Luis F. Card. Ladaria, SI, Prefeito da CDF, a 8 de junho.

Com efeito, como refere a Nota, assinada pelo Prefeito e pelo Secretário Giacomo Morandi, Arcebispo titular de Cerveteri, houve recentemente, celebrações do Sacramento do Batismo ministrado com as palavras: “Em nome do papá e da mamã, do padrinho e da madrinha, dos avós, dos familiares, dos amigos, em nome da comunidade, nós te batizamos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. 

Por isso, foram pedagogicamente formuladas duas questões: “É válido ou Batismo conferido com a fórmula ‘Nós te batizamos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo’?”; “As pessoas para quem foi celebrado o Batismo com esta fórmula devem ser batizadas de modo absoluto?”. À primeira foi dada resposta negativa; à segunda foi dada resposta afirmativa.

A modificação da fórmula sacramental vinca o valor comunitário do Batismo, frisando a participação da família e dos presentes e evitando a ideia da concentração do poder sacral no padre em detrimento dos pais e da comunidade, que a fórmula do Ritual Romano alegadamente transmitiria. Evidencia-se aqui, por motivos discutíveis pastorais, a antiga tentação de substituir a fórmula transmitida pela Tradição cristã por outras julgadas mais idóneas. Já Santo Tomás de Aquino, ante a questão “utrum plures possint simul baptizare unum et eundem(se vários podem batizar ao mesmo tempo uma só e a mesma pessoa), respondeu negativamente, por se tratar de prática contrária à natureza do ministro. Por sua vez, a SC (Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium), reconduzindo, no rasto de Agostinho, a celebração do Sacramento à presença de Cristo no sentido de que Ele lhe transfere a sua virtus para lhe dar eficácia e, sobretudo, para indicar que o Senhor é o protagonista do acontecimento que se celebra, reitera que “sempre que alguém batiza, é Cristo quem batiza” (SC, 7). Na verdade, a Igreja, quando celebra um sacramento, age como Corpo que opera inseparavelmente da Cabeça, sendo Cristo-Cabeça quem age no Corpo eclesial por ele gerado no mistério da Páscoa (SC, 5). Deste modo, a SC desenvolve e interpreta a doutrina da instituição divina dos Sacramentos proclamada pelo Concílio de Trento, sendo que os dois concílios harmonicamente se complementam “ao declararem a absoluta disponibilidade do septenário sacramental para a ação da Igreja”. De facto, os Sacramentos, instituídos por Cristo, são confiados à Igreja para que os conserve e ministre. Por isso, incumbe à Igreja, aprovada pelo Espírito Santo como intérprete da Palavra de Deus, determinar os ritos que exprimem a graça sacramental de Cristo, embora não lhe caiba determinar os fundamentos do seu existir: a Palavra de Deus e os gestos de Cristo.

Nestes termos, compreende-se como no curso dos séculos a Igreja tem conservado com zelo a forma celebratória dos Sacramentos, sobretudo nos elementos que a Escritura atesta e permite reconhecer com evidência o gesto de Cristo na ação ritual da Igreja. Assim, a SC adverte que ninguém, “mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua iniciativa, adicionar, suprimir ou mudar seja o que for em matéria litúrgica(SC, 22 §3), pois isso “não constitui um simples abuso litúrgico, como transgressão duma norma positiva, mas um vulnus infligido à comunhão eclesial e à possibilidade de reconhecimento da ação de Cristo, que nos casos mais graves torna inválido o Sacramento, já que a natureza da ação ministerial exige transmitir com fidelidade o que se lê (cf 1Cor 15,3). Efetivamente, na celebração dos Sacramentos, o sujeito é a Igreja-Corpo de Cristo unida à Cabeça-Cristo, que se manifesta na assembleia concreta reunida, a qual é ministerial – não colegial – pois nenhum grupo pode fazer de si mesmo Igreja, mas tornar-se Igreja por um chamamento que não surge internamente da própria organização. Portanto, o ministro é sinal-presença d’Aquele que reúne e o lugar de comunhão de cada assembleia litúrgica com a Igreja inteira. Ou seja, o ministro é sinal exterior de subtração do Sacramento ao nosso arbítrio e da sua pertença à Igreja universal. É por isso que o Concílio de Trento proclama a necessidade de o ministro ter a intenção de fazer o que a Igreja faz, intenção que não pode circunscrever-se ao nível interior, com o risco de derivas subjetivistas, mas se exprime exteriormente com a matéria e a forma do Sacramento, manifestando o ato a comunhão entre o que o ministro realiza na celebração do Sacramento e o que a Igreja faz, unida à ação de Cristo. Por isso, é fundamental que a ação sacramental se realize não em nome próprio, mas na pessoa de Cristo, que está na Igreja, e no nome da Igreja. Logo, o ministro não tem autoridade de dispor da fórmula, por motivos de natureza cristológica e eclesiológica, nem pode declarar que idade deve ter o batizando, em nome dos pais, padrinhos, familiares ou amigos, e nem mesmo em nome de assembleia reunida para a celebração, porque o ministro age enquanto sinal-presença da ação de Cristo, que se realiza num gesto da Igreja. Assim, quando diz “Eu te batizo ...”, não age como funcionário, mas ministerialmente  como sinal-presença de Cristo, que age no seu Corpo, dando a graça e dando à assembleia litúrgica a manifestação “de genuína natureza da verdadeira Igreja” (SC, 2), pois “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é sacramento de unidade, isto é, povo santo, reunido e ordenado sob a direção dos bispos(SC,26). Ademais, alterar a fórmula sacramental significa também não compreender a natureza do ministério eclesial, que é serviço a Deus e ao seu povo e não exercício dum poder que leve à manipulação do que foi confiado à Igreja com ato que pertence à Tradição. No ministro do batismo deve estar, pois, radicada a consciência de agir na comunhão eclesial e a convicção que Santo Agostinho atribui ao precursor, o que afirmou que haveria em Cristo uma propriedade tal que, apesar da multiplicidade de ministros, santos ou pecadores, que batizariam, a santidade do Batismo só seria atribuída Àquele sobre quem desceu a pomba e do qual foi dito: “É Ele que batiza no Espírito Santo(Jo 1,33). E Santo Agostinho assegura:  

Batize Pedro, é Cristo quem batiza; batize Paulo, é o Cristo quem batiza; batize até mesmo Judas, é Cristo quem batiza” (S. Augustinus, In Evangelium Ioannis tractatus , VI, 7).

Certamente, na celebração “pais, padrinhos e toda a comunidade são chamados a desempenhar um papel ativo, um verdadeiro ofício litúrgico”, mas isto, segundo a determinação conciliar, implica que “cada um, ministro ou fiel, desempenhando seu próprio ofício, realize somente e tudo o que, pela natureza do rito e segundo as normas litúrgicas, é de sua competência” (SC, 28).

Concluindo, o Batismo ministrado com uma fórmula modificada arbitrariamente não é válido e os que o receberam desta forma devem ser batizados “de modo absoluto”, ou seja, repetindo o rito de acordo com as normas litúrgicas.

Já em 2008, a CDF havia respondido a duas perguntas sobre a validade de Batismos conferidos com fórmulas arbitrariamente modificadas: “Eu te batizo em nome do Criador, e do Redentor e do Santificador” e “Eu te batizo em nome do Criador, e do Libertador, e do Sustentador”. A resposta foi como a de agora: o Batismo não era válido e os que foram batizados com essas fórmulas tinham que ser batizados “de modo absoluto”.

É de recordar que o sacramento é um sinal eficaz da graça de Cristo, ou seja, produz em quem o recebe aquilo que significa. Mais, embora o ministro deva ser santo ao tratar com as coisas santas, o sacramento produz a graça em virtude da obra realizada, independentemente da santidade efetiva do ministro, ou como diz o Concílio Tridentino produz a graça ex opere operato. É óbvio que o sacramento, sendo ação de Cristo, é ação da comunidade, mas não da comunidade no sentido meramente humano, como a família, a roda dos amigos ou o grupo social ou profissional, nem mesmo da comunidade educativa. É a comunidade eclesial enquanto convocada por Deus e reunida em nome e em torno de Cristo. Por isso, o Papa Bento XVI determinou que nos ritos iniciais do Batismo, em vez de “É com muita alegria que a comunidade cristã te (vos) recebe”, se dissesse “É com muita alegria que a Igreja te (vos) recebe”. É, de facto, o ministro que age in persona Christi e a Igreja, como comunidade reunida ou representada, aceita o pré-neófito em seu seio, tornada verdadeira mãe.

É sabido que, além do ministro, é essencial ao sacramento a matéria e a forma. No caso do Batismo, a matéria é a água, que, em circunstâncias normais, deve ser benzida, e a forma. Ora, o problema está na forma, já que a matéria é coisa pacífica, desde que seja mesmo água e não outro líquido como vinhos, cervejas coca-colas ou aguardentes. E a forma exprime-se por uma fórmula, como se viu, que é fixada pela autoridade da Igreja, segundo critérios bíblicos, da tradição ou da boa doutrina, decorrente esta dos peritos e validada pela autoridade eclesial.   

Não me repugnaria que a autoridade eclesial validasse as fórmulas rejeitadas em 2008, por manterem a índole trinitária da forma do Batismo e as atribuições teologicamente dadas por apropriação a cada uma das pessoas divinas, mas a autoridade eclesial escuda-se muito na sua renitência! Já a fórmula a que dá resposta a Nota em referência, além de ser desviante em relação ao espírito da forma, é pirosa e não constitui uma mais-valia.

Que a autoridade da Igreja pode modificar fórmulas está patente do novo cerimonial da Confirmação. Com efeito, no rito tridentino, dizia-se ao fazer a cruz na fronte do confirmando: “Signo te signo crucis et confirmo te chrismate Salutis in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti(Eu te assinalo com o sinal da cruz e te confirmo com o crisma da Salvação em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo). E agora diz-se com grande simplicidade: “Recebe por este sinal o Espírito Santo, o dom de Deus”. Também no Sacramento da Reconciliação, embora mantendo a essência da fórmula absolutória, a Liturgia enriqueceu-a com um belo e doutrinal preâmbulo:

Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

Porém, não é qualquer um que pode, a critério pessoal, alterar a essência da fórmula, embora possa esclarecê-la prévia ou posteriormente com alguma admonição, mas sempre radicada na doutrina da fé e não em conveniências afetivas ou sociais. Um pouco como sucede na ciência: qualquer nova teoria ou inovação tem de ser validada pela respetiva comunidade, no nosso caso, a Igreja, que é, simultaneamente comunitária e ministerial, igualitária e hierárquica, institucional e carismática, sacramento do encontro com Cristo e comunidade em saída para a missão.

2020.08.07 – Louro de Carvalho

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