terça-feira, 4 de agosto de 2020

O BES/GES: de corpo pluricelular a unicelular reproduzível por divisão

O Novo Banco (NB) continua na berlinda pelos piores motivos e parece difícil dar a volta a isto.

Sendo um dos produtos da resolução do BES como banco bom e deixando para trás o banco mau, denominado Banco Espírito Santo, fez crer que teria força anímica para funcionar com boa saúde financeira, alegadamente sem pesar na carteira dos contribuintes, pois os produtos incómodos ou os lixos ficavam por conta do banco mau.

Porém, na sequência do que todos pensávamos, o Tribunal de Contas (TdC), em recente relatório, concomitante com um relatório internacional em que Portugal não fica bem na fotografia, confirma que os contribuintes estão a entrar na solução dos inúmeros e sucessivos problemas do NB, ao arrepio do que se dizia oficialmente. E isso acontece através do Fundo de Resolução (FR), que, presidido por um vice-presidente do Banco de Portugal (BdP) e que de acionista único passou a ter uma participação de 25% após o negócio com o fundo americano Lone Star, vai injetando convenientemente as verbas em conformidade com os termos contratuais e mediante empréstimos a muito longo prazo concedidos pelo Ministério das Finanças, assim recaindo sobre os contribuintes, pelo menos, o custo de oportunidade, não se sabendo se o FR ou a entidade que lhe suceda alguma vez pagará ao Estado. Ao todo, já lá vão 8000 milhões de euros, faltando injetar 900 milhões nos termos contratuais se o exigirem os termos do mecanismo de capitalização contingente, acordado em 2017.

Só que o TdC fixa-se, a meu ver, num ponto menos interessante. Em vez de “censurar” a resolução do BES, escandalosamente exposto ao grupo GES, talvez com mais poder dilapidador que o banco e gerido superiormente pelo mesmo DDT, frisa o conflito de interesses evidenciado na resolução, pois alegadamente o supervisor BdP não podia intervir na resolução, não lhe cabendo supervisionar e intervir. Mas, logo a seguir, parece desculpar o supervisor por não ter ainda sido criada a ANR (Autoridade Nacional de Resolução). Afinal em que ficamos? Podia ou não o BdP ter criado o FR?

Se bem me lembro, o Conselho de Ministros aprovou um decreto-lei numa sexta-feira para viabilizar a resolução, complementado por um outro aprovado e promulgado no domingo para o NB entrar em funcionamento logo na segunda-feira. Ora, se o BdP interveio na resolução, foi porque o Governo de então o permitiu. E sobre isso o relatório não se pronuncia ou a comunicação social fez orelhas moucas ao caso. Porventura o TdC deveria ter apontado ao Governo e ao BdP uma sujeição servil ao BCE (Banco Central Europeu), não?

Depois, ninguém explicou de forma cabal e inequívoca – se calhar, não existe – como é que o FR vende 75% do NB ao Lone Star e aceita ficar responsável pelas perdas, ou seja, vender e pagar por vender? E é pena que o TdC não se tenha metido a analisar este aspeto.

Outros dados da evolução mostram que, tendo surgido dúvidas sobre o desempenho dos administradores do NB no atinente ao não cumprimento de objetivos, antes registando a prejuízos e aumentando remunerações e prémios, sobretudo aos gestores, o Governo pediu uma auditoria à Deloitte, cujos resultados ainda não são conhecidos. Não obstante e apesar de o Primeiro-Ministro haver garantido no Parlamento que o FR não injetaria mais dinheiro no NB antes do conhecimento dos resultados da dita auditoria, isso aconteceu com a autorização do Ministro das Finanças observando os termos contratuais, mas que alegadamente não tivera em conta a situação excecional e não avisara o Chefe do Governo, que se obrigou a pedir desculpa.

Recentemente, perante a interpelação parlamentar do líder do PSD pela venda de imóveis ao desbarato, a par do engrossamento dos prejuízos, o Primeiro-Ministro enviou uma carta à PGR para analisar a situação, quando se veio a saber que o FR autorizara tais vendas ao desbarato e sem que fosse analisada a situação do destinatário final dos imóveis, tendo aqui falhado a comissão de acompanhamento do próprio NB. O Governo pode não ter tido conhecimento formal da autorização, mas o FR tem na sua composição um representante do Ministério das Finanças, que deveria informar o Governo da iminência da deliberação. É óbvio que um banco na posse dum imóvel que servia de garanta a um crédito pouco se importa com o valor patrimonial e comercial do imóvel, desde que o preço da venda cubra largamente o crédito por satisfazer e as despesas adicionais. Só que a situação do NB é excecional. A par da sua condição de credor, tem a de devedor perante o Estado. Ora, quem hipoteca um imóvel no âmbito do crédito à habitação, não vende sem autorização do banco credor, que não a concede sem que tudo esteja devidamente estudado e garantido.

Entretanto, Diogo Cavaleiro, no Expesso online, de 3 de agosto, interroga-se sobre “o que nos dizem os prejuízos do Novo Banco” e responde que “a ‘parte boa’ já está a sofrer com a pandemia”. E é caso para perguntar o que isso da ‘parte boa’.

O articulista afirma que o NB continua mergulhado em prejuízos, que ficaram mais profundos no 1.º semestre deste ano que no de 2019. E diz que a ‘parte boa’ do banco é a que ficará quando o banco se desfizer dos ativos tóxicos, a qual até “obteve resultados positivos, mas bem abaixo do que alcançado um ano antes”.

E aqui passo a explicar o enunciado em epígrafe. O BES/GES é comparável a um gigantesco corpo pluricelular, que em termos biológicos se reproduzia por multiplicação de entes em diáspora de acordo com os interesses do grupo. Com a Resolução, o BES descolou do GES e passou a ser uma célula quase insignificante que se dividiu em banco mau e banco bom. Pensava-se que o banco mau iria resolver o problema dos lesados do BES. Mas o banco mau não tinha fundo, era um cesto roto. E, por determinação do BdP, provavelmente em articulação com o Governo, em teoria o NB teria que responder pelos danos dos descontentes, encargo que acabou por passar para o NB. E, há anos, António Ramalho decidiu dividir o NB em dois na hora de apresentar contas: o banco recorrente; e o legado. O último é o depositário da herança do BES e o causador das perdas; o outro é o da atividade que se irá manter depois de o NB se desfazer da toxicidade. E não sabemos se a reprodução por divisão celular ficará por aqui.

Assim, no 1.º semestre, o banco recorrente, o agora bom, obteve um resultado positivo de 34 milhões de euros, mas que representa uma quebra de 70% face aos 113 milhões do semestre homólogo do ano anterior, acompanhando o sucedido em todos os restantes grandes bancos nacionais: um deslize dos resultados por obra da pandemia. As imparidades para crédito, na sua maioria decorrentes da pandemia de covid-19, penalizaram os resultados, mesmo da ‘parte boa’ do que, há 6 anos, a 3 de agosto de 2014, foi considerado o ‘banco bom’ do BES.

E, na área tóxica, as perdas foram de 493,7 milhões de euros, até aliviando 3,8% em relação ao registo do 1.º semestre de 2019.

Ao todo, o prejuízo do banco ascendeu a 555 milhões de euros no 1.º semestre, para o que terá havido várias razões. Além das imparidades para crédito de 289,5 milhões, há a perda de 260,6 milhões para que o banco ajustasse o valor a que tem registado fundos de reestruturação (para onde passou alguns dos ativos tóxicos); e o banco foi prejudicado pela cobertura de risco (swaps) da taxa de juro da dívida portuguesa, no montante de 78,7 milhões de euros. Mas o NB fechou o semestre com um rácio de capital de 12%, o que terá de ser garantido por tais injeções.

Contudo, há um reforço da provisão que o NB tem reestruturação. O Expresso noticiou, no dia 1, que a instituição está a contactar 115 funcionários para r saídas até ao final do ano, a somar aos 138 que deixaram o banco entre julho de 2019 e junho deste ano, estando o quadro nos 4.855 colaboradores.

Tendo em conta os resultados, sobretudo o desempenho dos ativos que estão cobertos pelo mecanismo de capitalização contingente, o banco antecipa que poderá solicitar 176 milhões de euros ao FR – pedido que só acontecerá no fim do ano, quando houver contas de 2020 inteiro.

Ao todo, o NB poderá solicitar, como é sabido, mais 900 milhões de euros ao FR, ao abrigo do predito mecanismo que cobre ativos tóxicos, como malparado e imóveis. Tem ainda 4000 em carteira, que serão objeto de venda só depois de conhecidos os resultados da auditoria em curso.

O balanço mostra que os recursos de clientes (à cabeça, os depósitos) somaram 1,7% para 35 mil milhões e a carteira de crédito cresceu 1,4% para 27 mil milhões, sendo esta a boa notícia.

Em dezembro, 11,8% do crédito estava em incumprimento (NPL, de ‘non performing loans’), ao passo que, no fim de junho, o rácio desceu aos 10,2%. O crédito malparado ascende a 3,1 mil milhões de euros, aproximando-se, pela primeira vez, do rácio dum só dígito, marca importante para um banco que em 2016 tinha um rácio NPL insustentável de 33,4%. Não obstante, o NB mantém-se com uma das carteiras com pior qualidade do seu ativo, o que é objeto da auditoria.

Enfim, entre perdas e menos lucros, o NB passa pelos pingos da chuva, dividindo-se e repartindo as culpas dos resultados discutíveis pelo FR e pelo Estado. Que resultará da análise da PGR se tudo foi atempadamente autorizado? Que nos dirá o TdC a destempo daqui por uns anos num tempo de justiça excessivamente longo e, nestes casos, ineficaz?

E os cidadãos, nomeadamente os contribuintes, continuam a confiar estoicamente no Estado e na sua justiça, bem como no nosso sistema financeiro que nos defrauda pagando juros de miséria, cobrando juros altíssimos pelo crédito ao consumo, estabelecendo pagamento exorbitante por comissões por serviços e manutenção de conta, sem Estado que nos valha. Que remédio! Depois, queixam-se da abstenção em eleições…

2020.07.04 – Louro de Carvalho


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