A Lei n.º 19/2020, de 29 de maio, estabelece medidas
excecionais e temporárias de resposta à pandemia da covid-19 no âmbito cultural
e artístico, festivais e espetáculos de natureza análoga, procedendo à segunda
alteração ao Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 março, alterado pela Lei
n.º 7/2020, de 10 de abril.
Entre os artigos que adita ao predito decreto-lei, destaca-se o art.º 5.º-A, sobre festivais e espetáculos
de natureza análoga, que estabelece, entre outras coisas, que “é proibida, até
30 de setembro de 2020, a realização ao vivo, em recintos cobertos ou ao ar
livre, de festivais e espetáculos de natureza análoga declarados como tais no
ato de comunicação feito nos termos do Decreto-Lei
n.º 90/2019, de 5 de junho (n.º 1); que tais espetáculos “podem excecionalmente ter lugar, em
recinto coberto ou ao ar livre, com lugar marcado, após comunicação nos termos
do número anterior e no respeito pela lotação especificamente definida pela
Direção-Geral da Saúde em função das regras de distanciamento físico que sejam
adequadas face à evolução da pandemia da doença covid-19 (n.º 2); e que o Governo pode, fundamentado em recomendação
da Direção-Geral da Saúde, “antecipar o fim da proibição ou prorrogar a proibição
consagrada no n.º 1, através de decreto-lei” (n.º 3).
O Presidente da República, aquando da promulgação a 26 de
maio, apresentou uma justificação para promulgar a lei em referência, como se
pode ler na página da Presidência da República:
“O
presente diploma, na versão final aprovada pela Assembleia da República, só
proíbe, até 30 de setembro, o que os promotores qualificam como festivais e
espetáculos de natureza análoga.
“Quer isto dizer que,
se uma entidade promotora definir como iniciativa política, religiosa, social o
que poderia, de outra perspetiva, ser encarado como festival ou espetáculo de
natureza análoga, deixa de se aplicar a proibição específica prevista no presente
diploma.
“Por outro lado, mesmo
os assim qualificados festivais e espetáculos de natureza análoga podem
realizar-se desde que haja lugares marcados e a lotação e o distanciamento
físico sejam respeitados.
“Atendendo a este
quadro legal, ganham especial importância a garantia do princípio da igualdade
entre cidadãos, a transparência das qualificações, sua aplicação e fiscalização
e a clareza e o conhecimento atempado das regras sanitárias aplicáveis nos
casos concretos.”
***
Sendo assim,
os comunistas planeiam a Festa do ‘Avante!’ de 4 a 6 de setembro para 100 mil pessoas
e usam a referida nota do Presidente da República como prova de que não gozam
de “qualquer exceção” nas limitações impostas pela pandemia. Garantem que o PCP
com a realização da Festa não só está dentro da lei como não põe em causa as
medidas de segurança decretadas para evitar o contágio por covid-19. Além disso,
como assegura uma nota inscrita no site oficial da Festa do ‘Avante!’, “a
atividade política não está suspensa”.
Na referida nota, os comunistas explicam os motivos por que avançam
com este megaevento, quando o país enfrenta a maior pandemia do século; esclarecem
que serão garantidas “todas as medidas sanitárias”; recordam a “reconhecida
responsabilidade do PCP” na realização de iniciativas de massas; entendem que o
cancelamento da Festa seria “soçobrar a uma ofensiva reacionária que, tendo
êxito, cedo passaria para outros patamares de limitação de liberdade e
direitos”; E, citando a nota de Marcelo sobre a lei que limita os espetáculos e
concertos, vincam:
“O próprio Presidente da República afirmou
que ‘se uma entidade promotora qualificar como iniciativa política, religiosa,
social o que poderia, de outra perspetiva, ser encarado como festival ou
espetáculo de natureza análoga’, deixa de se aplicar a proibição específica
prevista no presente diploma’.”.
Porém, o PCP não cita, a restante mensagem do Presidente, que
impõe aos responsáveis a fixação de “lugares marcados” e o respeito pela
“lotação e o distanciamento físico”. Prefere dizer que “o povo português sabe
que pode contar com o PCP e o seu sentido de responsabilidade em todos os
momentos da história e que irresponsabilidade não é realizar a Festa “com todas
as regras de segurança em articulação com as entidades competentes”.
De férias em Porto Santo,
Marcelo recusou comentar o ‘Avante!’, mas sabe-se que tem considerado a gestão
política do PCP nesta matéria “incompreensível” e contraproducente para o
próprio partido, como foi o 1.º de Maio para a CGTP. Fonte próxima de Marcelo opina
que, politicamente, para o PCP, é um erro forçar a ideia de manter a lotação de
100 mil pessoas, opina, pois outros eventos como a Fórmula 1 estão muito abaixo
da lotação máxima e o futebol arrancará sem público. O Presidente manter-se-á
reservado evitando afrontamento prematuro com o PCP, mas poderá pronunciar-se
mais perto do evento, considerando a avaliação da DGS ou se a Festa coincidir
com um pico da pandemia. Não obstante, em Belém comenta-se que a posição do PCP
também não favorece o Governo, que terá dificuldade em dialogar com um partido
mais imprevisível que antes.
Entretanto, Alexandre Araújo, membro do secretariado do
comité central e responsável máximo pela organização da Festa, na conferência
de imprensa de apresentação do ‘Avante!’, apontou que, a menos de um mês da
abertura das portas, o espaço da Quinta da Atalaia ainda está a ser montado e que
os comunistas estão “desde a primeira hora” em articulação com as autoridades
de saúde. O facto de terem acrescentado 10 mil metros quadrados de área é um
sinal de que o espaço chega para albergar os “habituais 100 mil visitantes” que
o PCP recebe todos os anos.
O Governo transferiu a
responsabilidade de avaliar as condições da realização da Festa para a DGS, que
admite proceder a alguns “ajustes” nos planos traçados pelo PCP e diz que, em
breve, serão enviadas “sugestões sobre a organização” da Festa. Nos dias antes
da abertura das portas, será feita no local uma vistoria conjunta das forças de
segurança, autoridades de saúde e ASAE e só então os comunistas poderão ter luz
verde para avançar com a Festa.
***
Por seu turno, João Carvalho, diretor do Festival Paredes de
Coura, um dos cancelados devido à covid-19, diz que, se se a Festa do “Avante!”
acontecer “da mesma forma que nos anos anteriores, é uma absoluta injustiça” e deixa-o
“com uma indignação enorme”. E classifica uma festa destas com 100 mil
pessoas como “uma vergonha nacional e internacional”.
O promotor tem “muito respeito pelo PCP”, mas lembra
que, em maio, “o Governo proibiu o setor de trabalhar”, porque as normas
propostas tornaram os eventos inviáveis, pelo que agora não crê que o Governo e
as autoridades de saúde permitam tal “aglomerado de gente”. Confessa não
conhecer nenhum evento no mundo que neste momento tenha mais de 15 mil pessoas”.
E acredita que “o PCP é responsável”, tal com o Governo o é.
Ana Moitinho, da agência Radar dos Sons, com opinião diferente, pensa que “é mais fácil não
correr riscos nem ter trabalho” e que, se há condições e vontade política, não
vê problema. Depois, a responsável da Radar
dos Sons, que tem no catálogo artistas que atuarão na Festa, diz:
“Há pessoas na cultura a passar sérias
dificuldades e que têm de trabalhar. O ‘Avante’ é uma boa oportunidade para
isso. Se as regras da DGS se alterarem, claro que pode não ser exequível.”.
O PCP apontou para a existência de uma “campanha de
quase criminalização”, com o “objetivo político” de afastar os visitantes.
“Estão a embirrar por ser uma festa política, mas o ‘Avante’ ultrapassa essa vertente.
É uma festa cultural” – defende Ana Moitinho.
Vasco Sacramento está a produzir uma “festa cultural”,
o Festival F, que organiza desde 2016
através da promotora Sons em Trânsito, cancelado devido à pandemia. A solução
foi criar as Noites F, um conjunto de
20 espetáculos em Faro entre 13 de agosto e 13 de setembro. O cartaz é 100%
português e tem música, humor e magia. Mas, como explica, não tem nada a ver
com o ‘Avante’, pois o que vão fazer “é fechar uma praça e fazer espetáculos
com lotação limitada a mil pessoas”. Considerando o PCP um partido institucionalista,
que deve saber cumprir as regras, pensa que, “a correr bem, pode ser um passo
importante para a retoma do setor”.
Álvaro Covões (diretor da Everything is New, que organiza o NOS Alive) e
Roberta Medina (Rock in Rio), ainda não se pronunciaram. E Luís Montez, diretor da
Música no Coração, empresa por trás
do MEO Sudoeste e do Super Bock Super Rock, preferiu não
comentar o tema.
O fadista Camané e o vocalista Adolfo Luxúria Canibal
são dois dos músicos que irão atuar no evento comunista. Camané, acreditando
que vão cumprir as regras, pois “há imenso espaço e não iriam avançar sem
estarem preparados”, diz que “é preciso uma experiência para se perceber como
poderão ser os concertos nos próximos tempos, neste contexto do vírus, e o ‘Avante’
pode servir para isso”. Por sua
vez, Canibal pensa: “Se a DGS diz que sim, quem sou eu para discordar? Não sou médico nem
tenho conhecimentos para decidir.”. Mais diz que, até 4 de setembro, “as
coisas podem melhorar ou piorar, não há certezas”, e não acredita que o Governo
“deixe passar” possíveis “aproveitamentos” por parte da organização.
Paulo Ventura, manager de artistas e promotor do Vilar
de Mouros, “na expectativa”, adverte:
“Em países como a Alemanha estão a fazer
concertos-teste, com cada vez mais gente, para perceber como os eventos de
massas podem funcionar e sabendo que podem criar focos de infeção. Mas quem lá
vai sabe que é um teste. O PCP não disse nada disso. (…) “A consciência do partido é que deve ditar o
que vai fazer. É sem dúvida uma festa política, e não um festival de música,
mas de certeza que não querem ficar associados a um possível surto. E alguém
acredita que vão lá estar 100 mil pessoas?”.
***
Devo dizer
que o Presidente só é obrigado a explicar-se quando veta diplomas do Parlamento.
E nada o obriga a explicar-se quando promulga. Não cabe ao Presidente enquanto
titular dum órgão de soberania interpretar a lei. A interpretação autêntica
desta cabe ao legislador. E a interpretação com vista à aplicação cabe aos
tribunais. Se quer fazer uma interpretação doutrinal como professor de direito,
deve lembrar-se de que há muitos outros, não lhe convindo misturar a condição de
professor com a de Chefe de Estado.
É óbvio que
o PCP, tentando constituir-se em exceção, desta vez não precisa de o fazer:
basta-lhe escudar-se na aludida nota presidencial e assegurar, com base na experiência
de liderança de massas, o cumprimento das regras sanitárias. E Marcelo saberá
que pela boca morre o peixe?
São mais
prudentes os líderes religiosos que não forçam a realização de festas e
procissões, com cobertura na declaração presidencial, podendo arriscar a
garantia do cumprimento das regras, nomeadamente do distanciamento físico. Mas,
preferindo não usar a foice o martelo (mesmo de 2 metros cada)
para conseguirem os objetivos,
parecem imitar a paciência de Deus: aproveitam para doutrinar os fiéis,
promovem os atos de culto com participação controlada e, em vez das procissões
com pessoas, fazem-nas com imagens. E de modo análogo fazem outros promotores,
que esperam indignados por esta falsa igualdade novos tempos para agir, com exceção
dos que têm artistas participantes na Festa ou que esperam para ver como vai
ser o desempenho do PCP.
Miguel Sousa
Tavares diz que é Trump ao contrário, só que esse é o Presidente dos EUA e não
um partido de massas tentar marcar agenda para afirmar a sobrevivência política.
Seria melhor
se a lei portuguesa fosse mais igual para todos. Attamen, Marcellus dixit et Antonius Costa pro bono pacis oboediit!
2020.08.08 –
Louro de Carvalho
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