quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Atitudes diplomáticas (e não só) bizarras

Ocorreram em Portugal, nos últimos tempos, umas tantas passagens bizarras a que já me referi em outras ocasiões e de que destaco: um Estado a deixar-se pisar por Bruxelas, que obrigou à venda do Banif ao Santander Totta; um Banco de Portugal a transferir imprevistamente do Novo Banco para o banco mau, com prejuízos para outros, ativos que a resolução integrara no banco que fora criado em agosto de 2014; Cavaco Silva a declarar redundantemente que é de manter a tradição de apresentação de Boas Festas de Natal independentemente do Governo que esteja em funções, quando porfiara ter empossado o atual porque não podia dissolver o Parlamento (ele, que pretendera, à face da lei, distinguir “presidente de câmara” e “presidente da câmara”, “presidente de junta” e “presidente da junta”); a Casa Civil do Presidente a avaliar com ufania o facto de, no segredo dos deuses, ter promovido a negociação da alteração de 300 diplomas antes da promulgação (normativos que hão de ter força publica e provenientes de outros órgãos de soberania) – bela atitude de transparência a adicionar à do hermetismo das contas denunciada pelo Tribunal de Contas, bem como às aquisições por ajuste direto e junto dos mesmo fornecedores, em nome da eficiência e discrição.
Isto para não falar da campanha eleitoral para a Presidência da República marcada por fenómenos também bizarros: uma candidatura alegadamente solitária, servida nos bastidores por duas poderosas máquinas partidárias; outra candidatura de partido, que a direção do partido não apoiou, insólita na eficácia, nos resultados, na resposta (ou falta dela) às provocações e nas promessas (como a dos jantares diplomáticos em lares da terceira idade); uma candidatura do “tempo novo” apoiada por alguém que, para a distanciar do atual inquilino de Belém, aponta ao candidato as mesmas caraterísticas de personalidade de Cavaco Silva; uma candidatura de franco-atirador bem posicionada em quase todo o território; e uma candidatura de forte partido eleitoralmente trucidada.
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Nestes últimos dias, a imprensa deu conta da pícara diplomacia italiana: Roma tapou estátuas de nus em sinal de respeito pelo presidente do Irão e nada de álcool servido ao jantar com o presidente iraniano. Com efeito, para evitar embaraços diplomáticos e, alegadamente num gesto de respeito pelo visitante Hassan Rouhani, presidente do Irão, num périplo oficial por Itália, todas as esculturas de nus no Museu Capitolini, em Roma, foram obrigadas a ocultar a sua atrevida nudez com um isolamento fornecido por proporcionados painéis brancos.
O predito museu foi o local escolhido para o encontro entre Rouhani e o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi, no passado dia 25 de janeiro. Porém, ao longo dos amplos corredores percorridos por ambos os estadistas, nenhuma das estátuas mais desavergonhadas ficou patente aos olhares dos ilustres e das respetivas comitivas.
Também por motivos religiosos respeitantes à religião do presidente iraniano, o islamismo, professado no seu país, não foram servidas bebidas alcoólicas no jantar oferecido em sua honra.
Embora o gabinete de Matteo Renzi se tenha esquivado a explicar a decisão, um porta-voz do Capitolini esclareceu que os pormenores da visita foram delineados pelos serviços do gabinete do primeiro-ministro.
O presidente iraniano iniciou efetivamente, no dia 25, em Itália, a sua primeira visita oficial à Europa, no contexto temporal do levantamento das sanções internacionais ao Irão. Da agenda da visita em Itália fizeram parte ainda encontros com Sergio Mattarella, seu homólogo italiano, e com o Papa Francisco. E o périplo europeu de Hassan Rouhani prosseguiu para França.
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Enquanto as autoridades de Roma e de Teerão fazem ouvido de surdo em relação à polémica das estátuas tapadas em Itália em sinal de respeito pelo presidente do Irão, João Soares, ministro da Cultura de Portugal, garante que não autorizaria semelhante gesto em Portugal, que tem por completamente “disparatado”, pelo que, em Portugal “nenhuma estátua seria tapada” para agradar a um dirigente estrangeiro.

Entretanto, Matteo Renzi foi mordazmente criticado, nos diversos quadrantes políticos, pela cedência injustificada ou motivada pelo facto de, no âmbito da visita, irem ser celebrados negócios bilaterais no valor de 17 mil milhões de euros. O governante italiano foi ainda censurado por não ter feito qualquer referência, nos discursos oficiais, à questão dos direitos humanos.
O episódio ocorrido em Roma deslustra o tradicional aforismo, “Em Roma, sê romano”, que servia de norma a determinar a aceitação das leis e modos de vida da comunidade que visitamos ou em que pretendemos inserir-nos. O aforismo conhece uma variante mais explícita e não vinculativa ao Império: na terra onde estiveres, faz como vires. E o dever de integrar cidadãos imigrantes que impende sobre os países de acolhimento e a obrigação de hospitalidade inerente ao devir comunitário não dispensam a necessidade e a conveniência de adaptação às leis, regras e usos autóctones, a menos que sejam manifestamente “inéticos”.
Por conseguinte, não vale, a título algum, acocorar a civilização e a cultura europeia (e, em concreto, a italiana, a portuguesa, a francesa…) perante qualquer civilização e cultura. Depois, a cultura europeia merece defesa, preservação e promoção e é digna de orgulho por via da sua excelsa justiça, decência e estética.
Apesar dos seus defeitos, lacunas e bizarrices e necessidade de devir humano, ela não pode ceder ao relativismo amoral ou ao moralismo estéril e desrespeitoso pelos nossos próprios valores a ponto de nos remetermos à mais vilipendiada inibição cultural e diplomática ou ao mais obtuso servilismo ao poder exógeno – concretizável a prazo na mais hedionda iconoclastia.
Conforme preservamos em ambiente “ecotopográfico” os templos e palácios greco-romanos ou as catedrais medievais e os templos, palácios e outros monumentos renascentistas, barrocos, neoclássicos, românticos e da pós-modernidade, também temos de preservar e ostentar as vistosas estátuas do nu renascentista, geradas pelo génio europeu. Torna-se aviltante cobrir as produções artísticas da história e cultura europeias para hipocritamente não ferir as suscetibilidades pseudomorais de um visitante por mais ilustre ou conveniente que seja.
Se um presidente estrangeiro não consegue tolerar a cultura de um país a visitar, que o não visite. Ou então, que desvie os olhos para não ver a vanidade (vd Sl 119) da nudez europeia. Ou será que os iranianos nascem vestidos? Será, antes, que a arte já perdeu a capacidade das liberdades artísticas e pedagógicas que se lhe reconheciam? Será inválido o esforço teológico de João Paulo II e outros, conducente à espiritualidade do corpo, preferindo-se o desconhecimento corporal?
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É óbvio que é tão obtuso o puritanismo conservador iraniano como o grotesco progressismo da província de Alberta, no Canadá, cujo governo retirou do vocabulário das escolas palavras como “pai”, “mãe” e os designativos de género “ele”, “ela”, “eles” “elas”. Para muitos, já começa a saber a arcaica a diferenciação sexual através das palavras. Não levará muito tempo que as pessoas se confessem todas do mesmo sexo, mas a perceber a diferenciação anatómica seguida de notórias diferenças psicológicas!
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Também na Itália não é inédita a falta de convivência com as raízes cristãs europeias e italianas: em escolas e outros espaços comunitários, por alegado respeito por migrantes muçulmanos e migrantes ateus, que era necessário acolher e para não traumatizar os seus rebentos, nos últimos anos eclipsaram-se os motivos cristãos na celebração do Natal.
Porém, sempre que há atentado terrorista, lá se levantam as vozes autorizadas a alertar para a necessidade de não se deixar que a oposição ao terrorismo cerceie a nossa liberdade ou o nosso modo de vida.
É certo que procedemos bem em perceber que os atentados terroristas são um ataque ao nosso modo de vida. Mas devemos também opor-nos a outros ataques ao modo de vida dito ocidental. Com efeito, há muitos europeus que os promovem, muito céleres na proteção aos muçulmanos residentes na Europa, com o risco de nos induzirem a passar a vida a abjurar a sociedade livre, próspera, diversificada e respeitadora dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos. Autoculpamo-nos de tudo: da pobreza vivida nos regimes corruptos aos atropelos aos direitos humanos pelos governos despóticos. E corre-se o risco de acontecer no terrorismo o que sucede com os casos de violação, a culpa ser das vítimas, que se puseram a jeito.
E, na Europa, os muçulmanos são protegidos duma realidade traumatizante: as mostras públicas do cristianismo, que ferem a sensibilidade islâmica. Porquê? Por humanismo, não certamente, mas por contemporização resultante da falta de compromisso religioso e por falta de sabedoria dialogal. Assim, Bruxelas, em 2011, ostentou uma gigantesca árvore de Natal e o presépio da Grand Place. Junto ao Manneken Pis, havia outro presépio de rua, e as crianças entusiasmaram-se mais com as figuras ofensivas do Menino Jesus e família do que com a mascote da cidade. Por conseguinte, em 2012, já não existiu a árvore de Natal da Grand Place, se considerar que tal símbolo de festa católica ofendia os muçulmanos residentes na Bélgica. Também em 2014, um tribunal francês em Nantes decretou a retirada de um presépio dum edifício municipal da zona envolvente, e vários outros presépios em locais públicos foram hostilizados. Na Grã-Bretanha, já é malvisto desejar Merry Christmas em vez do pan-religioso Seasons Greetings, além do ataque propagandístico que, de quando em quando, é desferido contra o nome de Deus.
E Portugal, bom aluno da Europa moderna e decente, ostenta muitas decorações públicas de Natal já desnudadas da vertente religiosa, enxameadas de motivos comerciais atinentes a outros elementos, alguns dos quais, embora com antigo sentido cristão, o foram perdendo ao longo do tempo.
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Gosto de referir que estudei a religião grega, a religião romana e outras. Não me feriram aqueles dados religioso-mitológicos nem fiquei seu aderente. No entanto, reconheço que enditaram o saber, a estética, a cultura e a ciência. Sabedoria e tolerância são o que falta, não?!

2016.01.27 – Louro de Carvalho

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