A
leitura evangélica do II domingo do tempo comum do Ano C corresponde à perícopa
do Evangelho de João (Jo 2,1-12) que relata o episódio ocorrido nas Bodas de Caná
da Galileia em que, do ponto de vista joânico, Jesus “realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos, com o qual
manifestou a sua glória, e os discípulos creram nele” (v.11).
Se na ótica dos evangelhos sinóticos os milagres
testificam sobretudo o poder e a bondade de Jesus, em João os milagres, que o
evangelista designa por “sinais”, revelam a pessoa e a missão de Jesus como
Messias. O milagre de Caná, como se pode ler acima, manifestou a sua glória e
levou os discípulos a aderirem a Ele pela fé.
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O milagre surge num contexto de casamento e é
realizado ao terceiro dia após o chamamento de Filipe e de Natanael (este confessara que o Mestre é o Filho de Deus e
Rei de Israel, vd v.1,49) e dá-se para colmatar a casual falta de vinho,
a instâncias da Mãe de Jesus. Tudo isto nos interpela no sentido de tentarmos perceber
o significado profundo e múltiplo do sinal (σεμεϊον).
O facto de ocorrer ao 3.º dia pode reportar-nos
por antecipação ao momento pascal da ressurreição; e, constituindo esta o cume
do mistério pascal assumido na economia salvífica como a nova criação, este 3.º
dia pode configurar uma alusão ao 7.º dia em que a comunidade divina (Deus Uno e Trino) festeja a obra da
criação (vd Gn 2,2.3; vd Jo 1,1-11).
Por outro lado, neste dia, inaugura-se o primeiro ciclo entre Caná e Caná (2,1 – 4,54), com a cura do funcionário real, o que levou à
fé do pai e de todos os da sua casa. Neste ciclo, Jesus revela-Se a todos: aos
discípulos (vv 1-11),
ao povo (vv 13-23), a um mestre da Lei (3,1-21), aos samaritanos (4,1-42) e aos pagãos (4,43-54).
Depois, o casamento é rampa de lançamento para a
vida numa comunidade específica – a família – e para o surgimento de nova vida.
Por isso, se faz festa, festa de Deus e festa das pessoas humanas e o sinal
desta festa e da vida em abundância que ela significa (Ele veio para que tenhamos a vida e a vida em
abundância, vd Jo 10,10) é
o vinho. E não se trata de um vinho comum, mas do vinho de melhor qualidade,
que ao invés do que habitualmente se faz, Cristo faz servir no auge da festa. É
o vinho do Reino de Deus, que o Cristo veio anunciar e trazer aos homens e para
o qual os homens se encaminham; é o vinho da Eucaristia – que, pela Palavra de
Cristo, se fará sangue de Cristo, derramado por todos para remissão dos pecados
– Eucaristia de que deriva toda a vida cristã e para a qual toda a vida cristã
converge. É a antecipação da Nova Aliança, aqui celebrada em bodas nupciais,
mas firmada na última Ceia e no Calvário no sangue de Cristo; é a inauguração
duma família, prenúncio daquela família que assentará na Palavra e no Sangue –
palavra e sangue de Jesus – em que participarão todos os crentes, todos os
redimidos, todos os que fazem o que Ele nos disser.
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Falando deste vinho, o melhor e em abundância,
estamos a enaltecer a excelência dos bens messiânicos trazidos por Jesus, a par
de outros sinais messiânicos, como a origem desconhecida de Jesus para os
judeus (9,7-27); e o desconhecimento da proveniência daquele
vinho (v. 9) – o chefe
de mesa provou a água transformada em vinho, sem saber de onde era, se bem que
o soubessem os serventes que tinham tirado a água. A alusão ao
desconhecimento por parte do chefe e ao conhecimento da origem do vinho por
parte dos serventes será uma alusão à nova família marcada pelo ineditismo de
Deus de que faz parte Maria, simultaneamente filha de Deus Pai, mãe do Filho de
Deus e dos seus discípulos e esposa do Espírito Santo, Senhor e Fonte de vida.
Por outro lado, a abundância é espelhada nas seis talhas de pedra, que foram
cheias de água (que Jesus
transformou em vinho), de 2 a 3 medidas, cada uma (a medida equivalia a uns 40 litros),
equivalendo aquela quantidade a cerca de 500 litros.
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É de ter em conta a intervenção da Mãe de Jesus:
junto do Filho, intercede dizendo que não
têm vinho (v.3),
pouco se importando com a resposta de Jesus: Que tem isso a ver contigo e comigo? Ainda não chegou a minha hora
(v.4). E continua confiante: junto dos serventes,
recomenda discretamente Fazei o que Ele
vos disser! (v.5). É
o único momento em que João regista palavras de Maria, a mãe de Jesus,
contrastando esta cena de solicitude mariana com o silêncio de aceitação de Jo
19,25-27 – junto da cruz, em que Ela nos é dada explicitamente como mãe.
Tem de considerar-se o poder de intercessão de
Maria: o Filho fez-lhe a vontade e continuará a fazer-lha; os serventes daquele
tempo também, aderindo à recomendação discreta de Maria, fizeram a vontade de
Jesus. Resta saber se nós hoje continuamos a acreditar na intercessão materna
de Maria e, atendendo à sua recomendação, fazemos a vontade de Cristo.
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Cristo alega
não ter chegado ainda a sua hora. Que hora? A hora dos milagres, a hora da sua
entrega final pela vida do mundo, a hora da sua glória/glorificação (vd 1,14; 4,21.23;
7,30; 12,23.27; 17,1)? Porém, a
hora dos milagres, se ainda não tinha chegado, foi antecipada tendo em conta a
necessidade, a intercessão materna e a oportunidade da revelação messiânica.
Não é, pois, fora de sentido salvífico que a Igreja vê em Caná a terceira
epifania do Senhor, subsequente à dos magos e à do Batismo de Jesus – celebradas
ainda há pouco tempo.
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Devemos
ainda considerar o tratamento dado por Jesus à mãe – o vocativo “mulher” (em grego: γύναι). O paralelo com o mesmo vocativo em Jo 19,26 faz
pensar na alusão a Maria como nova Eva, a mãe de todos os discípulos, de todos
os viventes (vd Gn 3,20) junto a
Cristo novo Adão. Não parece que Jesus tenha mostrado desinteresse, mas apelo
para a autoridade do Pai no atinente à sua hora (vd 4,34; 5,19.30.36; 12,27).
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Também hoje,
dia 17, o Papa Francisco comentou este passo do Evangelho da janela do seu
escritório no Palácio Apostólico do Vaticano antes da recitação do Angelus com os fiéis e peregrinos
reunidos na Praça de São Pedro.
Salientou o facto de “o prodigioso evento” ter
ocorrido “em Caná, um vilarejo da Galileia, durante uma festa de casamento em
que participaram Maria e Jesus, com seus primeiros discípulos”. Para Jesus não
é relevante a projeção do local, mas o que lá se passa e a mensagem que
pretende legar.
E sublinhou duas coisas: as circunstâncias em que
decorreu o milagre; e os seus efeitos. A Mãe fez notar ao Filho a falta do
vinho, que Jesus, “apesar de ter dito que sua hora não havia chegado”, colmatou
atendendo o pedido intercessor da Mãe e dando “aos cônjuges o melhor vinho de
toda a festa”. Por outro lado, o evangelista destaca que este fora o “início
dos sinais realizados por Jesus”, que “manifestou a sua glória e os seus
discípulos creram nele”.
Depois, assumiu os milagres como “sinais
extraordinários que acompanham a pregação da Boa Nova, a fim de despertar ou
reforçar a fé em Jesus”. E, quanto ao milagre de Caná, referiu a evidência de “um
ato de benevolência por parte de Jesus para com os recém-casados” e “um sinal
da bênção de Deus sobre o matrimónio”. Daqui inferiu que “o amor entre o homem
e a mulher é uma boa maneira de viver o Evangelho”, de “percorrer com alegria
no caminho da santidade”.
Porém, estendeu a finalidade do milagre a “toda pessoa
humana”, que “é chamada a encontrar o Senhor de sua vida”. A fé cristã, aqui
professada pelos discípulos, “é um dom que recebemos no Batismo e que nos
permite encontrar Deus”. É uma fé que “passa por momentos de alegria e de
tristeza, de luz e de escuridão, como em toda experiência autêntica do amor”.
Mas Francisco tira uma conclusão curiosa a partir das
palavras de Jesus aos serventes: “Enchei as vasilhas de água” e “Tirai agora e levai ao chefe de mesa” (vd 2,7-9). Efetivamente fizeram tudo o que Ele disse: encheram-nas
até cima e levaram-nas ao chefe de mesa. No entanto, a narração das bodas de Caná – disse Francisco – “convida-nos
a redescobrir que Jesus não se nos apresenta a nós como um juiz pronto a condenar as
nossas culpas, nem como um comandante que nos obriga a seguir
cegamente suas ordens”. Manifesta-se, antes, como o “Salvador
da humanidade, como nosso irmão mais velho, filho do Pai, como aquele que
responde às expectativas e promessas de alegria que habitam no coração de cada
um de nós”.
Depois de nos lançar umas pertinentes interrogações de
meditação – Realmente conheço o Senhor
assim? Sinto-o próximo de mim e da minha vida? Respondo-lhe à altura daquele
amor esponsal que Ele, todos os dias, manifesta a mim e a todos os seres humanos?
– recordou a dimensão pessoal e comunitária da caminhada da fé:
“Trata-se de
perceber que Jesus nos busca e nos convida a dar-lhe espaço no fundo do nosso
coração. E neste caminho de fé com Ele, não estamos sozinhos: recebemos o
dom do Sangue de Cristo.”
Em seguida, alertou para o simbolismo das “grandes
ânforas de pedra cheias de água” cheias até cima (Jesus não é
de meias medidas: enche-nos completamente) que
prontamente “Jesus transforma em vinho” (v. 7), sem alardes de espetáculo:
“São um sinal da passagem da antiga para a nova aliança: em vez da água
utilizada para o ritual de purificação, recebemos o Sangue de Jesus, derramado
sacramentalmente na Eucaristia e de maneira cruenta na Paixão e na Cruz. Os
Sacramentos que emanam do Mistério pascal infundem em nós a força sobrenatural
e permitem-nos experimentar a infinita misericórdia de Deus”.
Finalmente, apresentou
“a Virgem Maria, modelo de meditação das palavras e das obras do Senhor”, a discreta,
mas eficaz intercessora – para que “nos ajude a redescobrir com fé a beleza e a
riqueza da Eucaristia e dos outros Sacramentos, que tornam presente o amor fiel
de Deus por nós”. E garantiu que, assim, podemos “enamorar-nos sempre mais e
mais do Senhor Jesus, nosso Esposo, e encontrá-Lo com as lâmpadas acesas da
nossa fé alegre, tornando-nos suas testemunhas no mundo”.
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E quem assim
perora, tem autoridade moral e doutrinal para recomendar a todos, nomeadamente
a migrantes e refugiados: “Não deixeis
que vos roubem a esperança e a alegria de viver”.
É a força robusta
da fé alimentada pela Palavra, pelos sacramentos (Batismo,
Eucaristia e matrimónio), nutrindo-se
da relação amorosa com Deus e com os irmãos!
2016.01.17 – Louro de Carvalho
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