sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Declarações de António Guterres ex-ACNUR

O engenheiro António Guterres (ex-Primeiro-Ministro socialista e ex-alto comissário da ONU para os Refugiados) participou como orador convidado na sessão de abertura do Seminário Diplomático 2016, que decorreu no Museu do Oriente nos dias 5 e 6, tendo prestado declarações a que já fiz referência noutro texto.
Depois, na Grande Entrevista da RTP 3, fez declarações no atinente à sua relação com a vida política e com a problemática dos migrantes e refugiados.
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Na sua relação com a política, declarou que o retorno a um papel interventivo na política portuguesa é um “capítulo fechado” da sua biografia. Ao invés, quanto ao futuro, disse querer ter “ter um período de reflexão, um tempo para a família”, garantindo não ter “intenção” de se dedicar à vida política portuguesa.
Por algum tempo, especulou-se sobre a possibilidade de Guterres se candidatar à Presidência da República, o que acabou por não se confirmar. E, agora, tendo cessado funções como ACNUR, ainda que o pretendesse, já não iria a tempo.
Sobre a hipótese de voltar a ocupar um cargo na vida política ativa portuguesa, pronunciou-se nos termos seguintes:
“Não tenho qualquer intenção de voltar vida política portuguesa, esse capítulo que está encerrado. Foi uma fase muito importante da minha vida... Normalmente não se deve voltar atrás, há que andar sempre para a frente”.

E, quanto à solução de Governo encontrada à esquerda, defendeu que é “perfeitamente legítima e constitucional”.
Por outro lado, justificou a sua indisponibilidade para uma candidatura à presidência da República com o facto de o exercício desse cargo não se identificar com a sua “forma de estar no mundo”. Admitiu ter “consciência” de que desiludiu muitos “correligionários do PS” ao ter recusado candidatar-se a Presidente da República, mas defendeu-se dizendo que as pessoas devem “fazer aquilo para que têm vocação” e que não se podia trair a si próprio.
Nesta senda, e por sentir “alguma dívida para com o PS” onde pontificou durante 10 anos, o antigo líder socialista garantiu que não irá apoiar nenhum candidato antes de o seu partido se pronunciar nesse sentido. A este respeito, pronunciou-se pelo conveniente recato:
“Por sentir uma dívida [para com o PS] é que manterei um grande recato nesta campanha. Não tenho intenção de apoiar qualquer candidato antes de o meu partido se pronunciar, porque já criei complicações não sendo candidato e não quero criar complicações adicionais”.

Diz que é um homem de ação e sobre a função presidencial adianta:
“Acho que o Presidente da República é um árbitro e o que eu gosto mesmo é de jogar à bola”.
Não parece que o engenheiro que foi Primeiro-Ministro de 1995 a 2002 possa reduzir a função presidencial à de mera arbitragem, como não é líquido que o Presidente chegue a ser árbitro nalguns setores da atividade presidencial.
O Presidente da República, segundo o art.º 120.º da CRP, “representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”.
Isto significa que a sua função não é de mera arbitragem, já que não compete ao árbitro garantir a unidade e a eficácia de cada uma das equipas que jogam nem representá-las e, muito menos, comandá-las.
É certo que o Presidente jura cumprir e fazer cumprir a Constituição (cf CRP, art.º 127.º/3.), o que pode parecer ser função de árbitro que cumpre e faz cumprir regras, mas o Presidente também jura desempenhar fielmente as funções em que fica investido (id et ib). Tais funções ou competências são desempenhadas na relação com outros órgãos (CRP, art.º 133.º), para a prática de atos próprios (CRP, art.º 134.º) e nas relações internacionais (CRP, art.º 135.º). E há disposições relativas à promulgação e veto, bem como em relação à solicitação de fiscalização prévia da constitucionalidade dos diplomas da Assembleia da República e do Governo.
A função presidencial é mesmo caraterizada pela ação sobretudo, no atinente à magistratura de influência. Porém, escapam-lhe as funções de árbitro na apresentação de cartão amarelo e/ou vermelho, que não se espelham no veto, pois os diplomas legais podem ser confirmados pelo Parlamento, quase todos por maioria absoluta, nem com a demissão do Primeiro-Ministro (muitíssimo excecional) e a dissolução da Assembleia da República, que, apesar de ser uma decisão solitária, sofre períodos de defeso e exige a consulta do Conselho do Estado.
Sendo assim, não percebo como é que Guterres carateriza com tão grande ligeireza as funções de presidente.
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Porém, Guterres falou também sobre os candidatos à presidência da República. Disse que não tem intenção de se pronunciar sobre o candidato que apoia nas presidenciais deste ano antes de o PS dar indicação sobre qual será o ‘seu’ candidato, por alegadamente não querer “criar problemas adicionais” ao partido, explicitando:
“Não tenho nenhuma intenção de apoiar nenhum candidato sem o meu partido se pronunciar. Tudo dependerá daquilo que o PS fizer. Tenho a obrigação de não criar problemas nem gerar atenções para mim.”.

Também neste aspeto, se revela distraído, porque a direção do Partido deu liberdade de apoio público aos seus militantes em relação a este ou àquele candidato, sobretudo na dialética entre Sampaio da Nóvoa, que parecia agradar ao secretário-geral, e Maria de Belém, cuja candidatura foi imposta por um grupo significativo dentro do PS. Isto é, o Partido já se pronunciou pela liberdade de apoio público. A primeira versão até falava em liberdade de voto, mas levou a uma correção, pois o voto é livre e secreto.
Quanto a eventual 2.ª volta, Guterres perde tempo em dizer que para essa se pronunciaria, pois, como é óbvio, o PS mandará votar a qualquer candidato que se oponha a Marcelo.  
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Após 10 anos de liderança do ACNUR, Guterres faz um balanço positivo e afirma que, se a Europa “se organizasse”, conseguiria lidar “com relativa facilidade com a crise de refugiados”.
Com efeito, no final de dezembro, deixou para trás a liderança do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – período “privilegiado” em que “não podia ser um homem de gabinete”. Sobre o seu exercício, explicou:
“É uma experiencia que nos obriga muito a estar no terreno. O mais importante é criar as condições para uma ação efetiva no terreno e depois arranjar soluções. Em cada ano ajudamos 100 mil pessoas a sair de campos de refugiados e de outras situações e os trouxemos para países desenvolvidos. Sei que é uma gota de água no oceano”.

Esclareceu que a crise dos refugiados é um problema crescente nos últimos anos, frisando que só há pouco tempo o problema chamou à atenção dos países desenvolvidos, pois “os ricos só se dão conta dos pobres quando estes lhes entram em casa”. A este propósito, lembrou que em dez das onze reuniões da ONU em que participou teve dificuldade em ser ouvido. Em 2015, foi completamente diferente, tendo andado “numa correia por todo lado”. E justifica:
“Até à primavera/verão do ano passado, o mundo não ligou muito à parte humanitária. O que aconteceu foi que os refugiados pela primeira vez vieram em número significado para o norte global”.

Sobre a necessidade de a Europa se organizar para conseguir lidar com as crises que tem de enfrentar, disse que “a falta de organização da Europa favoreceu” a índole caótica deste movimento. Porém, garantiu que sempre fora um europeísta convicto e advertiu que “a Europa não tem futuro se não tiver unidade”. Por outro lado, sublinhou que a Europa recebe um número insignificante de refugiados em comparação, por exemplo, com o Líbano. E mesmo assim tem falhado na resposta à crise.
Ao longo da entrevista em causa, de quase uma hora, o ex-ACNUR referiu vários números, que parece ter na ponta da língua, de que os mais importantes são: quando assumiu a liderança deste organismo da ONU, em 2005, havia 38 milhões de refugiados no mundo e a tendência era para baixar; em 2015, quando deixou o cargo, o número passou para 60 milhões e continua a crescer.
No entanto, falou de números apesar de não gostar de falar de números, como justificou:
“Detesto falar de números, porque detrás de cada número estão pessoas, estamos a falar de pessoas que sofrem, pessoas que têm vidas muito complicadas, e apesar de tudo os números dão uma imagem da dimensão do problema”.

Foi também aos números que recorreu quando criticou a resposta, ou falta dela, por parte da Europa à crise de refugiados provocada por vários conflitos, mas com particular incidência na guerra da Síria. O termo de comparação é o Líbano, país na fronteira com a Síria, do qual se estima que tenha, de momento, de um quarto a um terço da população composta por refugiados:
“Estamos a falar de um milhão de pessoas que entrou na Europa durante um ano, ou seja, menos de dois por cada mil habitantes da Europa. Quando no Líbano temos um para cada três habitantes.”.

Depois, vincou que “há uma enorme quebra de solidariedade” na Europa e apontou a Alemanha como a grande exceção a esta regra, vaticinando: “Se a Alemanha tivesse fechado as fronteiras como a Hungria, teríamos tido uma calamidade”.
E, sublinhando o valor dos portugueses, destacou a “grande capacidade de resolver problemas”, considerando que “somos um povo extraordinário mas que ainda não conseguiu encontrar a melhor forma de se organizar internamente e dentro desse quadro”.
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O ex-Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, que cessou funções com a viragem do ano e que foi sucedido pelo italiano Filippo Grandi, também falou dos atentados de Paris, afirmando que estes atentados geraram “o pânico” e anotando:
“De repente com o que aconteceu em Paris, gera-se uma situação de pânico e começamos a ver os governos a tomar, cada um deles, medidas restritivas. E de alguma forma cada um procurando que as suas condições de acolhimento de refugiados sejam um bocadinho pior do que as do vizinho.”.

No entanto, opina que, em casos como este, “é necessário reconhecer que o problema do terrorismo cresceu em casa”, devido às comunidades que foram mal integradas na Europa.
Sobre a Europa, discorre:
“A Europa é uma comunidade multiétnica, multicultural e multirreligiosa e tem que compreender isso. Ser um continente multiétnico, multicultural e multirreligioso é bom, mas requer um investimento, que muitas vezes não existiu”.

Apesar de admitir que “evidentemente podem existir (…) riscos de infiltração” de terroristas entre migrantes, Guterres diz que estes “são muito mais facilmente controláveis” do que aquilo que se acredita ser a verdadeira origem do terrorismo na Europa:
“O problema do terrorismo hoje na Europa é muito mais um problema crescido internamente, em casa. Há enormes comunidades nos países europeus, comunidades que foram integradas por vezes de forma deficiente, com situações de descriminação.”
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É de notar que Guterres não desliga da política ativa. Ele desliga é da política ativa portuguesa.
Se, por um lado, rejeita claramente um regresso à política portuguesa, não fecha a porta a uma eventual candidatura ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas ou a um outro cargo de relevo internacional, mas também pediu tempo para refletir:
“É cedo para pensar nessas coisas, até porque não depende de mim, depende de muitos fatores e é um processo muito complexo. Neste momento quero ter algum período de reflexão em relação a mim próprio”.

Ou seja, “é muito cedo para pensar” na ONU. Guterres agora quer “gozar um pouco a família e depois ponderar em relação ao futuro qual a melhor forma de poder aproveitar as capacidades” que ainda tem”.
Não deixa de se posicionar como verdadeiro político, muito embora não lhe quadrem as desculpas esfarrapadas para se furtar à candidatara presidencial (tão esfarrapadas como a obrigação invocada por Marcelo em candidatar-se por dívida sua para com o país) ou ao apoio declarado a um dos candidatos. Porém, o seu lado político bom espelha-se bem no horror aos números mas, em contraponto, na sua apresentação por estarem em causa as pessoas.

2016.01.08 – Louro de Carvalho

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