O engenheiro António Guterres (ex-Primeiro-Ministro
socialista e ex-alto comissário da ONU para os Refugiados) participou como orador convidado na sessão de
abertura do Seminário Diplomático 2016,
que decorreu no Museu do Oriente nos dias 5 e 6, tendo prestado declarações a
que já fiz referência noutro texto.
Depois, na Grande Entrevista da
RTP 3, fez declarações no atinente à sua relação com a vida política e com a problemática
dos migrantes e refugiados.
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Na sua relação com a política, declarou
que o retorno a um papel interventivo na política portuguesa é um “capítulo
fechado” da sua biografia. Ao invés, quanto ao futuro, disse querer ter “ter um
período de reflexão, um tempo para a família”, garantindo não ter “intenção” de
se dedicar à vida política portuguesa.
Por algum tempo, especulou-se sobre a possibilidade de
Guterres se candidatar à Presidência da República, o que acabou por não se confirmar.
E, agora, tendo cessado funções como ACNUR, ainda que o pretendesse, já não
iria a tempo.
Sobre a hipótese de voltar a ocupar um cargo na vida política
ativa portuguesa, pronunciou-se nos termos seguintes:
“Não tenho
qualquer intenção de voltar vida política portuguesa, esse capítulo que está
encerrado. Foi uma fase muito importante da minha vida... Normalmente não se
deve voltar atrás, há que andar sempre para a frente”.
E, quanto à solução de Governo encontrada à esquerda,
defendeu que é “perfeitamente legítima e constitucional”.
Por outro lado, justificou a sua indisponibilidade para
uma candidatura à presidência da República com o facto de o exercício desse
cargo não se identificar com a sua “forma de estar no mundo”. Admitiu ter
“consciência” de que desiludiu muitos “correligionários do PS” ao ter recusado
candidatar-se a Presidente da República, mas defendeu-se dizendo que as pessoas
devem “fazer aquilo para que têm vocação” e que não se podia trair a si próprio.
Nesta senda, e por sentir “alguma dívida para com o
PS” onde pontificou durante 10 anos, o antigo líder socialista garantiu que não
irá apoiar nenhum candidato antes de o seu partido se pronunciar nesse sentido.
A este respeito, pronunciou-se pelo conveniente recato:
“Por sentir
uma dívida [para com o PS] é que manterei um grande recato nesta campanha. Não
tenho intenção de apoiar qualquer candidato antes de o meu partido se
pronunciar, porque já criei complicações não sendo candidato e não quero criar
complicações adicionais”.
Diz que é um homem de ação e sobre a função
presidencial adianta:
“Acho que o
Presidente da República é um árbitro e o que eu gosto mesmo é de jogar à bola”.
Não parece que o engenheiro que foi Primeiro-Ministro
de 1995 a 2002 possa reduzir a função presidencial à de mera arbitragem, como
não é líquido que o Presidente chegue a ser árbitro nalguns setores da
atividade presidencial.
O Presidente da República, segundo o art.º 120.º da CRP,
“representa
a República Portuguesa, garante a
independência nacional, a unidade do Estado e o regular
funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência,
Comandante Supremo das Forças Armadas”.
Isto significa que a sua função não
é de mera arbitragem, já que não compete ao árbitro garantir a unidade e a eficácia
de cada uma das equipas que jogam nem representá-las e, muito menos, comandá-las.
É certo
que o Presidente jura cumprir e fazer cumprir
a Constituição (cf CRP, art.º 127.º/3.), o que pode parecer ser função de
árbitro que cumpre e faz cumprir regras, mas o Presidente também jura desempenhar
fielmente as funções em que fica
investido (id et ib). Tais funções ou competências são desempenhadas na
relação com outros órgãos (CRP, art.º 133.º), para a prática de atos próprios
(CRP,
art.º 134.º) e nas relações
internacionais (CRP, art.º 135.º). E há disposições relativas à promulgação
e veto, bem como em relação à solicitação de fiscalização prévia da
constitucionalidade dos diplomas da Assembleia da República e do Governo.
A função
presidencial é mesmo caraterizada pela ação sobretudo, no atinente à
magistratura de influência. Porém, escapam-lhe as funções de árbitro na
apresentação de cartão amarelo e/ou vermelho, que não se espelham no veto, pois
os diplomas legais podem ser confirmados pelo Parlamento, quase todos por
maioria absoluta, nem com a demissão do Primeiro-Ministro (muitíssimo
excecional) e a
dissolução da Assembleia da República, que, apesar de ser uma decisão
solitária, sofre períodos de defeso e exige a consulta do Conselho do Estado.
Sendo assim,
não percebo como é que Guterres carateriza com tão grande ligeireza as funções
de presidente.
***
Porém, Guterres falou também sobre os candidatos à presidência
da República. Disse que não tem intenção de se pronunciar sobre o candidato que
apoia nas presidenciais deste ano antes de o PS dar indicação sobre qual será o
‘seu’ candidato, por alegadamente não querer “criar problemas adicionais” ao
partido, explicitando:
“Não tenho
nenhuma intenção de apoiar nenhum candidato sem o meu partido se pronunciar.
Tudo dependerá daquilo que o PS fizer. Tenho a obrigação de não criar problemas
nem gerar atenções para mim.”.
Também neste aspeto, se revela distraído, porque a
direção do Partido deu liberdade de apoio público aos seus militantes em
relação a este ou àquele candidato, sobretudo na dialética entre Sampaio da
Nóvoa, que parecia agradar ao secretário-geral, e Maria de Belém, cuja
candidatura foi imposta por um grupo significativo dentro do PS. Isto é, o Partido
já se pronunciou pela liberdade de apoio público. A primeira versão até falava
em liberdade de voto, mas levou a uma correção, pois o voto é livre e secreto.
Quanto a eventual 2.ª volta, Guterres perde tempo em
dizer que para essa se pronunciaria, pois, como é óbvio, o PS mandará votar a qualquer
candidato que se oponha a Marcelo.
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Após 10 anos de liderança do ACNUR, Guterres
faz um balanço positivo e afirma que, se a Europa “se organizasse”, conseguiria
lidar “com relativa facilidade com a crise de refugiados”.
Com efeito, no final de dezembro, deixou para trás a
liderança do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – período
“privilegiado” em que “não podia ser um homem de gabinete”. Sobre o seu
exercício, explicou:
“É uma
experiencia que nos obriga muito a estar no terreno. O mais importante é criar
as condições para uma ação efetiva no terreno e depois arranjar soluções. Em
cada ano ajudamos 100 mil pessoas a sair de campos de refugiados e de outras
situações e os trouxemos para países desenvolvidos. Sei que é uma gota de água
no oceano”.
Esclareceu que a crise dos refugiados é um problema
crescente nos últimos anos, frisando que só há pouco tempo o problema chamou à
atenção dos países desenvolvidos, pois “os ricos só se dão conta dos pobres
quando estes lhes entram em casa”. A este propósito, lembrou que em dez das
onze reuniões da ONU em que participou teve dificuldade em ser ouvido. Em 2015,
foi completamente diferente, tendo andado “numa correia por todo lado”. E justifica:
“Até à
primavera/verão do ano passado, o mundo não ligou muito à parte humanitária. O
que aconteceu foi que os refugiados pela primeira vez vieram em número
significado para o norte global”.
Sobre a necessidade de a Europa se organizar para
conseguir lidar com as crises que tem de enfrentar, disse que “a falta de
organização da Europa favoreceu” a índole caótica deste movimento. Porém, garantiu
que sempre fora um europeísta convicto e advertiu que “a Europa não tem futuro
se não tiver unidade”. Por outro lado, sublinhou que a Europa recebe um número
insignificante de refugiados em comparação, por exemplo, com o Líbano. E mesmo
assim tem falhado na resposta à crise.
Ao longo da
entrevista em causa, de quase uma hora, o ex-ACNUR referiu vários números, que
parece ter na ponta da língua, de que os mais importantes são: quando assumiu a
liderança deste organismo da ONU, em 2005, havia 38 milhões de refugiados no
mundo e a tendência era para baixar; em 2015, quando deixou o cargo, o número
passou para 60 milhões e continua a crescer.
No entanto, falou
de números apesar de não gostar de falar de números, como justificou:
“Detesto falar de números, porque detrás de cada número
estão pessoas, estamos a falar de pessoas que sofrem, pessoas que têm vidas
muito complicadas, e apesar de tudo os números dão uma imagem da dimensão do
problema”.
Foi também
aos números que recorreu quando criticou a resposta, ou falta dela, por parte
da Europa à crise de refugiados provocada por vários conflitos, mas com
particular incidência na guerra da Síria. O termo de comparação é o Líbano,
país na fronteira com a Síria, do qual se estima que tenha, de momento, de um
quarto a um terço da população composta por refugiados:
“Estamos a falar de um milhão de pessoas que entrou na
Europa durante um ano, ou seja, menos de dois por cada mil habitantes da
Europa. Quando no Líbano temos um para cada três habitantes.”.
Depois,
vincou que “há uma enorme quebra de solidariedade” na Europa e apontou a
Alemanha como a grande exceção a esta regra, vaticinando: “Se a Alemanha tivesse fechado as fronteiras como a Hungria, teríamos
tido uma calamidade”.
E, sublinhando o valor dos portugueses, destacou a
“grande capacidade de resolver problemas”, considerando que “somos um povo
extraordinário mas que ainda não conseguiu encontrar a melhor forma de se
organizar internamente e dentro desse quadro”.
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O ex-Alto Comissário das Nações
Unidas para os Refugiados, que cessou funções com a viragem do ano e que foi
sucedido pelo italiano Filippo Grandi, também falou dos atentados de Paris,
afirmando que estes atentados geraram “o
pânico” e anotando:
“De repente com o que aconteceu em Paris, gera-se uma
situação de pânico e começamos a ver os governos a tomar, cada um deles,
medidas restritivas. E de alguma forma cada um procurando que as suas condições
de acolhimento de refugiados sejam um bocadinho pior do que as do vizinho.”.
No entanto, opina que, em casos como este, “é necessário
reconhecer que o problema do terrorismo cresceu em casa”, devido às comunidades
que foram mal integradas na Europa.
Sobre a Europa, discorre:
“A Europa é
uma comunidade multiétnica, multicultural e multirreligiosa e tem que
compreender isso. Ser um continente multiétnico, multicultural e
multirreligioso é bom, mas requer um investimento, que muitas vezes não
existiu”.
Apesar de
admitir que “evidentemente podem existir (…) riscos de infiltração” de
terroristas entre migrantes, Guterres diz que estes “são muito mais facilmente
controláveis” do que aquilo que se acredita ser a verdadeira origem do
terrorismo na Europa:
“O problema do terrorismo hoje na Europa é muito mais
um problema crescido internamente, em casa. Há enormes comunidades nos países
europeus, comunidades que foram integradas por vezes de forma deficiente, com
situações de descriminação.”
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É de notar que Guterres não desliga
da política ativa. Ele desliga é da política ativa portuguesa.
Se, por um
lado, rejeita claramente um regresso à política portuguesa, não fecha a porta a
uma eventual candidatura ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas ou a um
outro cargo de relevo internacional, mas também pediu tempo para refletir:
“É cedo para pensar nessas coisas, até porque não
depende de mim, depende de muitos fatores e é um processo muito complexo. Neste
momento quero ter algum período de reflexão em relação a mim próprio”.
Ou seja, “é muito cedo para pensar” na ONU. Guterres agora quer “gozar um pouco a família e depois
ponderar em relação ao futuro qual a melhor forma de poder aproveitar as
capacidades” que ainda tem”.
Não deixa de se
posicionar como verdadeiro político, muito embora não lhe quadrem as desculpas
esfarrapadas para se furtar à candidatara presidencial (tão
esfarrapadas como a obrigação invocada por Marcelo em candidatar-se por dívida
sua para com o país)
ou ao apoio declarado a um dos candidatos. Porém, o seu lado político bom
espelha-se bem no horror aos números mas, em contraponto, na sua apresentação
por estarem em causa as pessoas.
2016.01.08 – Louro de Carvalho
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